O Conto da Madrugada
"E assim vivi até os quinze anos. Nessa idade li o meu primeiro
romance. Um romance de amor. Aliás, eu não posso compreender que existam romances que não sejam de amor. Não é em torno do amor que tudo se passa? Ora, quando li esse livro, deu-se uma transformação no meu modo de pensar e de sentir. Tive
necessidade de amar, de ter alguém dentro do coração. O amor é isso apenas, não acha, mocinho? O resto, lá é amor!
"Mas, já lhe disse que minha mãe se chamava Paula? Bonito nome, não? Eu tinha uma grande vontade de chamar-me Paula. Para mim é o mais belo dos nomes.
Minha mãe tinha naquela época uns quarenta anos, andava muito acabada, os cabelos quase brancos. E era a melhor das mães. Lavava e passava para fora. Pois com esse sacrifício, vivendo de um trabalho tão rude, deu-me uma boa educação. Pensa que não
falo um pouco de francês e que não sei música?
"Morávamos numa casa velha, quase arruinada, num arrabalde.
"Essa casa tinha um quintal muito grande. As árvores davam muita fruta e muita flor. Nos dias de sol, eu... Ora, isso não tem importância no caso.
Para que dizer-lhe que nos dias de sol eu não saía de cima das árvores, a pular de galho em galho, balançando-me, a cantarolar, muito alegre? A gente só é feliz - li isso num livro, parece - quando imita os pássaros: quando ama ou quando canta.
"Eu devia ter, por esse tempo, uns dezesseis anos. Um dia, olhando para o quintal do vizinho, vi um rapaz que sorria para mim, observando os meus
movimentos. Como estivesse trepada numa árvore, fiquei furiosa porque provavelmente ele vira as minhas pernas. Mas no dia seguinte estávamos conversando por sobre o muro, arranhando os braços nas roseiras.
"Foi o meu primeiro namorado. Propriamente, foi também o único. Tinha vinte anos, era um vadio de marca maior, cheio de defeitos. Eu não quis saber de
nada! Os romances que tinha lido agitavam-se em minha imaginação e eu precisava de um herói, ou qualquer coisa assim.
"Ele não queria casar comigo. Propôs que fugíssemos. Fugi. Não pense que foi à noite, pé ante pé, um embrulhinho de camisas na mão trêmula: foi à
tarde, numa bela tarde em que eu saíra para ir à loja. Não sei o que aconteceu a minha mãe. Como somos ingratas! Veja o senhor, mocinho, se um homem quando ama é capaz de fazer metade do que faz uma mulher apaixonada! Tenha paciência: nessa
história de amar, somos superiores.
"O meu amante levou-me logo para uma cidade longe. E foi só depois de um mês que me deu vontade de chorar. Então chorei muito. Creio que menos por
saudade que por desilusão. O primeiro passo, porém, estava dado e eu disse comigo: "É o destino!" Quando nós, mulheres, queremos justificar uma tolice injustificável, exclamamos a quem nos censura: "É o destino. Seja o que Deus quiser". Mocinho,
somos umas sem-vergonhas!
"Foi só muito depois que eu acreditei nos defeitos do meu amante, dos quais diversas pessoas, no tempo do namoro, me avisavam. Bebia que era uma
lástima. Libertino até a raiz dos cabelos. Eu só sei o que tive de aturar!
"E o jogo! Era a sua paixão principal. Jogava até o último vintém. Depois lá se ia o relógio, os botões dos punhos - tudo! Um dia, fazia oito meses
que eu tinha fugido com ele, quis jogar-me também! Imagine que levou lá em casa um sujeito para jantar, avisando-me, com piscadelas de olho, que eu devia tratá-lo muito bem. Durante o jantar, o sujeito começou com histórias de pé por debaixo da
mesa. E sabe o que fez o Joãozinho? Ao fim do jantar disse que tinha um negócio a tratar e retirou-se. Fiquei eu com o sujeito! Era demais! Em resumo: tive que sumir do João. Empreguei-me como arrumadeira numa casa rica.
"Devo dizer-lhe que eu era alegre, bonita, e regularmente elegante. Hoje, sim, não valho mais nada...
"Ao fim de seis meses o dono da casa, um velhote maroto, marido de uma senhora bravia, agarrou-me elo pescoço, quando, certa manhã, fui espanar os
móveis da sala de visitas. Disse-me uma porção de coisas: promessas de joias, vestidos de seda... A mulher chegou na ocasião e - nem gosto de me lembrar do resto. Pobre da arrumadeira! Gritou-me toda espécie de insultos, mesmo os mais baixos. E fui
para o olho da rua. Eu que fazia tantos projetos naquela casa rica: ajuntar dinheiro... casar.. procurar a mamãe, coitada! Fosse o que Deus quisesse. Está escrito: nem todos podem ser felizes!
"Expulsa, de trouxa às costas, andei pelas ruas da cidade, pobre vítima do crime de ser um pouco bonita... E quem encontrei logo? O meu primeiro
amante. Coitado! Estava bêbedo. Infeliz Joãozinho! Lembro-me como se fosse hoje: sujo, roto, barba grande, caído na escadaria de uma igreja, e dois garotos mexendo nele com a pontinha do pé. Dava nojo a quem o visse. A mim o que me deu foi pena. Já
não era o belo rapaz simpático que aos vinte anos, alegre e sadio, falava comigo por cima do muro, indiferente aos arranhões das roseiras. Pois vou dizer-lhe sem acanhamento: apesar de encontrá-lo naquelas condições, senti acordar dentro de mim a
mesma ternura de outrora, mais forte agora porque ele se tornara mais desgraçado do que eu. Despertei-o. Insultou-me. E fomos amar num morro que havia perto...
"Tornamos a morar juntos. Que quer, mocinho? O senhor não conhece as mulheres. Nós temos sempre uma gratidão pelo homem que nos tornou mães pela
primeira vez. Sim, porque eu também já fui mãe, não pense o senhor que não fui. É verdade que o meu filho nasceu morto, antes do tempo, por causa de um pontapé que o Joãozinho lhe deu, ainda no ventre. Mas enfim, de qualquer maneira, fui mãe. Não
sou como muitas, por aí, que não dão nada...
"Fomos os dois viver juntos novamente. Alugamos um cubículo numa casa de cômodos. Durante o dia, naquela casa, que ermo! Apenas, como sinal de vida,
uma modinha cantada não se sabia ontem, e, numa janela ou noutra, um pé de manjericão, um vidro vazio, uma camisa de mulher estendida... À noite, entretanto, pelos corredores, viam-se vultos. Desconfio de que ali havia "coisa". Talvez uma fábrica
de moeda falsa.
"Enfim, chego logo ao ponto principal: um senhor que habitava o quarto vizinho, e que aliás eu não tinha visto nunca, entrou-me um dia pelo quarto
adentro. O meu amigo saíra, já se vê. Esse senhor era comerciante de fumos, e solteiro. Ajoelhou-se aos meus pés, afirmou-me um amor infinito. Que a paixão nascera de espiadelas pelo buraco da fechadura. Ri-me.
"Era um senhor de cinquenta anos, gordote, papudo, moreno, de bigodes pretos muito grossos, torcidos para cima. Propôs-me uma viagem, não sei para
onde, mas sei que com muito dinheiro. Tive a tentação... Tive o ímpeto de acompanhá-lo fosse ao fim do mundo! Creia, mocinho, que eu gostava bem do Joãozinho. No entanto, a fome... Eu passava até fome... Qual, o senhor não conhece a vida, mocinho!
"Sujeito de bom coração, aquele gordote. Parece que deixou sobre a mesa do meu quarto, quando saímos, uma nota de quinhentos mil-réis para o
Joãozinho. O rapaz não saiu perdendo grande coisa, não.
"Viajamos. Gostava muito de mim, o sr. Macedo. Eu lhe tinha muito respeito. Para lhe dar, numa palavra, uma ideia clara do nosso modo de vida, basta
dizer=lhe que nunca me habituei a chamá-lo senão por "senhor".
"Um dia, indo nós do Rio de Janeiro para o Havre, o comandante do navio francês em que fazíamos a viagem teve a fantasia de se apaixonar por mim. E
embora eu lhe opusesse uma resistência em que ia muito de gratidão ao sr. Macedo, não consegui impedir essa coisa tão bela que é um abraço em pleno mar. Foi só um abraço. O sr. Macedo, infelizmente, surpreendeu-nos. Para ele, para os seus
princípios de negociante de fumos, era o suficiente.
"Estávamos perto de Lisboa. À noite, o sr. Macedo foi falar comigo, todo confuso, suando frio, vexado como se fora ele que me tivesse traído... E,
desculpando-se muito, esfregando as mãos peludas, comunicou-me, pedindo desculpas, que ia regressar às pressas ao Brasil, por causa de um parente que lhe morrera. Deu-me dinheiro e beijou-me as mãos. Quando saiu vi que lhe pingara uma lágrima nos
bigodes... Que ridículo!
"Em Lisboa tive sorte. Entre como corista para uma companhia portuguesa que vinha ao Brasil representar O Casamento da Velha etc. As colegas
não me queriam bem. Explica-se: eu era uma corista bonita e instruída. O senhor sorri? Não é falta de modéstia, não pense. A gente não adianta nada com ser pretensiosa.
"Fui subindo, na companhia. Um dia, um tenor deu um tiro num barítono por minha causa. No teatro, é a consagração. Cheguei a prima-dona da companhia.
Como eu tivera bons começos de música e canto, os papéis me eram fáceis. Possuía uma voz realmente linda, a julgar pelos aplausos constantes das plateias e pelas crônicas dos críticos teatrais e adjacências. Recebia no meu camarim, sempre,
numerosos admiradores de todas as idades, velhos com dinheiro, moços sem ele. Eu triunfava de todas as maneiras.
"Minha mãe, nunca ouvi falar dela. Talvez tivesse acabado por algum recolhimento de mendigos. Pobre! Pensa que eu tenho o coração duro? Passemos
adiante, mocinho...
"O que cortou a minha carreira foi esta navalhada no rosto, de quase um palmo. Foi a minha desgraça, sempre e sempre, ter nascido um pouco bonita...
Havia na companhia um casal de bailarinos espanhóis. Ele se apaixonou por mim. E a pequena deu-me a navalhada que me levou um pedaço de nariz e marcou-me para sempre. Era uma espanholita sardenta e magra. Tinha tanto de magra e sardenta, quanto de
feia. Que golpe terrível! Perdoei, já se vê. Eu, que sou fraca de ânimo, tive sempre uma grande admiração pelas mulheres que vão até o crime por causa do homem de que gostam. Perdoei-lhe tudo. Hoje, aliás, ela está ali adiante, no 37... Até as
pedras se encontram, não é?
"Afinal, mocinho, esta navalhada, cortando-me a face e o nariz, cortou-me a carreira também. Os empresários não contratam um gênio com uma navalhada
destas no rosto. E eu percebi então que nunca tivera linda voz, como pensava" Era bonita, isso sim. Era bonita. Mas, com tal defeito, eu não encontraria facilmente quem batesse palmas à minha voz banal nem me chamasse de Vênus divina, como
uma vez um repórter, numa crítica. Decaí rapidamente. Veio a fome de novo...
"Pode dizer-me que horas tem? Três da manhã? Muito obrigada. O resto é fácil de imaginar: fui caindo, caindo, caindo...
"Não me beije, peço-lhe. Beijos na boca, está louco? Centenas, milhares de bocas já me beijaram antes da sua... Vá, não profane esses lábios de
dezoito anos. Dezoito anos? Eu logo vi. Não podia ter mais. Olhe, eu podia ser sua mãe! Tenho idade para isso. Lisonjeiro! Não se fie no pó de arroz e no carmim. Veja as minhas rugas...
"O senhor tem noiva? Ah! Pois lhe: ser bonita é uma desgraça. É a maior desgraça que pode acontecer a uma mulher, depois da desgraça de ser feia...
Não, não me beije. Os beijos na boca ficam para a sua noiva, só, só para ela. Quer que apague a luz?" |