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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (15-D)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é Histórias de Cidade Grande (Contos escolhidos), aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1960 pela Editora Cultrix Ltda., da capital paulista, na série Contistas do Brasil. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 41 a 50:

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Histórias de Cidade Grande

Ribeiro Couto

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A Denúncia do Sangue

Em minha viagem de há pouco à Bahia, monótona e enervante viagem a bordo de um vaporzinho intolerável, tive até Vitória a companhia sempre cara do Carlos Passos, um médico ainda jovem mas de nome já brilhante. Carlos Passos foi meu companheiro de infância, de ginásio e depois de casa, no Rio.

Durante os últimos anos de nosso curso - o meu de Direito, o dele de Medicina - moramos no mesmo sobradão da Rua das Laranjeiras, lá no fim, onde a viúva de um coronel Gomes tem a sua sossegada "pensão para famílias e cavalheiros".

Há quase vinte anos, portanto, dou-me com o Carlos. ninguém o conhece melhor do que eu. Quer dizer: não há maior pregoeiro do seu caráter, do seu talento e da sua bondade. Depois de formados, separamo-nos. Eu caí na tolice de ser juiz em Mato Grosso e ele ficou pelo Rio, no que fez muito bem. Dois anos depois de minha partida, recebi a notícia de que ele fora convidado par assistente do dr. Soeiro, o grande especialista de sífilis, assombrosamente enriquecido com a clínica. Ali estava o futuro do Carlos assegurado. Ao lado de uma celebridade como o dr. Soeiro, só podia vencer. E, com aquela vocação científica!

Disse que desde a infância nos conhecemos. É fato. E desde a infância nos estimamos. É um rapaz encantador. Apenas, nunca lhe perdoei uma coisa: a repugnância pela boemia. Carlos levou sempre essa repugnância ao extremo... É incrível: com uma saúde admirável, um organismo perfeito, foi sempre metido com os livros e nada mais... Nem mesmo aos sábados, quando os rapazes mais comportados do nosso grupo se permitiam o excesso de um cabaré, Carlos não consentiu nunca em acompanhar-nos.

Mas por que tanto rigor? Por uma razão um pouco ridícula: Carlos tinha pavor da sífilis. A simples hipótese de uma noite com uma mulher da rua, dava-lhe aflição. Ele via logo, em desfile diante da imaginação, as consequências da sífilis que pudesse contrair: a cegueira, a tabes... Por isso, Carlos Passos, aquele latagão que é um dos mais belos exemplares humanos de Minas, conservou-se quase casto até o quarto ano...

Foi aí que entrou em intimidades com uma mocinha pobre, do Meyer, a respeito de cuja excelência de saúde ele estava absolutamente certo, graças a exames repetidos que muito a deviam ter aborrecido. Então, de dois em dois domingos fazia uma toalete mais apurada e saía assobiando o Conde de Luxemburgo.

Eu caçoava:

- Lá vai o inspetor sanitário do Meyer!

Agora, ao voltar ao Rio, depois de seis anos de ausência, para tratar de uma herança na Bahia, não tive tempo de ver amigo nenhum. O vapor partia no mesmo dia da minha chegada. Que estupenda surpresa não foi, portanto, encontrar a bordo o Carlos Passos! Não mudou nada. Simplesmente, está com o ar um pouco mais severo, mais preocupado, como convém a um nome brilhante na Medicina. Abri-lhe os braços com uma alegria profunda e ele ficou um momento na dúvida:

- O Benjamim Pereira?

Eu não dizia nada, os braços abertos, comovido, à espera...

- O Benjamim Pereira? - tornou ele com o seu vago modo tímido.

Então lembrei-me: eu estava de bigodes e por isso Carlos hesitava. Exclamei:

- Eu mesmo, meu inspetor sanitário do Meyer!

Carlos caiu no meu peito. Caiu quase chorando, numa comoção maior que a minha.

- Benjamim! Benjamim do meu amor! O meu Benjamim que queria casar com a filha da viúva Gomes e ficar dono da pensão!

O vapor partia. Vinham do cais vozes de adeus. Fomos para o bar. Contamos em poucas palavras a nossa vida: eu, ainda juiz em Mato Grosso, agora a caminho de uma herança à toa, que era mais a trabalheira da viagem do que mesmo dinheiro; ele com uma clientela enorme no Rio. Ia até vitória buscar... Aí sorriu: buscar aquela mocinha do Meyer.

Fiquei estatelado, idiota.

- Quê? Continuas? Então continuam com aquela pilhéria?

Como pilhéria? Apenas a sua comodidade, a sua saúde, a sua segurança... A moça fora passar um mês em Vitória, em visita a uma avó. Ele ia buscá-la. Eram muito amigos. Tinha-a instalado numa casinha em Paula Matos. Portanto, eu podia agora chamá-lo: inspetor sanitário de Paula Matos...

Fiquei olhando Carlos Passos com uma forte inveja da sua estabilidade de nervos. Que rapaz excepcional! Por isso gozava daquele ar de atleta, daquela cores, daquela expressão de calma.

- Mas, se tens esse temperamento caseiro, tímido, com o teu horror a uma porção de coisas inevitáveis que estragam a Humanidade, por que não te casas?

Não tinha jeito de procurar uma moça. Nem jeito, nem tempo. Não cultivava relações. Repartia as horas entre o estudo e a clientela. E as moças que ele conhecia do seu consultório de especialista em moléstias do sangue não convinham...

- Aliás, afianço-te que me sinto perfeitamente bem como estou. A Aurora é uma rapariga acomodada, discreta, sóbria. Não me aborrece. Vou jantar quase todos os dias com ela. Quando não tenho nenhum trabalho urgente, passo a noite lá. Digo-te com franqueza: sinto-me às mil maravilhas, sinto-me confortável. De resto...

Aqui a sua expressão tomou aquele tom de ironia com que ele costumava atenuar o ridículo do seu pavor:

- ... é sã, como sabes absolutamente sã... Caso raro. Era necessário que tu fosses especialista par saber como essa Humanidade anda ruim. Um horror! Só lidando com ela é que se vê!

O vapor tinha já saído fora da barra há muito. Ia costeando o Estado do Rio. O mar estava calmo e a noite vinha.

Estendemo-nos em duas ótimas cadeiras preguiçosas no tombadilho. Acendi o cachimbo, ele um cigarro; ficamos a olhar o crepúsculo. Uma senhora idosa, a pouca distância de nós, fazia carantonhas de enjoo.

- Com o mar tão calmo! - comentei baixinho para Calos Passos.

E então, na doçura do ar salgado, em pleno mar, enquanto as estrelas iam picando o azulado sujo do céu, começamos a recordar a infância, depois o ginásio, depois os anos vividos na pensão da viúva Gomes.

- Não, positivamente, tu andaste a sonhar com a posse da pensão.

- Deixa disso. Até hoje não perdeste a mania?

- Ah! e não sabes? A Lolita casou.

- Casou? - perguntei um pouco emocionado.

- Casou.

- Com quem?

- Com um farmacêutico. Tu não conheces. Vivem em Niterói. Têm já quatro filhos...

- Que horror!

- Vê de que fecundidade escapaste! E em Mato Grosso não tiveste nenhum caso?

- Sabes que sou ambicioso. A única menina interessante de lá é a filha de um ex-governador que é milionário. Mas quando cheguei ela era noiva. Casou.

Falamos de mil coisas e principalmente do Rio, onde, à minha volta da Bahia, eu esperava fixar-me definitivamente.

- Estou farto de Mato Grosso! Se os cobres da Bahia me chegarem para algum arranjo, há de ser para a minha instalação por aqui. Vou advogar vou lutar. Fala-me do Rio, Carlos! Mata a minha saudade!

Carlos não tinha nada que contar do Rio. O estudo, a clientela, a Humanidade sofrendo com o sangue envenenado...

- E o dr. Soeiro? Ainda não me falaste dele.

Senti Carlos estremecer. Pensei que fosse da frescura da noitinha.

- Estás com frio?

- Não.

Passaram-se uns instantes de silêncio. Com toda a simplicidade, tornei:

- Conta-me alguma coisa do dr. Soeiro. É uma celebridade, hein? Deve ser muito interessante pessoalmente.

Em voz calma porém com um timbre estranho, Carlos passos respondeu apenas:

- Há três meses que trabalho só.

- Não estás mais com o dr. Soeiro?

- Não.

- Oh! então dou-te parabéns pela clientela que dizes ter! Fizeste carreira em pouco tempo. Na Medicina não é comum.

Novos instantes de silêncio. Arrisquei:

- A separação foi em boa paz, espero.

Carlos Passos olhou-me aborrecido.

- Não lês os jornais?

- Lei, às vezes.

A noite caíra completamente. As luzes do navio, refletindo-se n'água, faziam uma zona marginal de claridade em que as ondas ficavam nítidas, a destacarem-se do casco. Estávamos sós no tombadilho. uns viajantes jogavam no bar, às gargalhadas.

Eu percebia que Carlos Passos acomodava as ideias preparando-se para uma narrativa importante. Minha curiosidade palpitava.

- Meu caro Benjamim, eu não pretendia contar-te isto, porque é doloroso...

Interrompi-o, com uma hipocrisia impecável:

- Por Deus, Carlos, não te estou obrigando! Perguntei à toa!

- Mas agora buliste na ferida e eu contarei.

E principiou a contar. Quando o dr. Soeiro, seu professor na Faculdade, o chamou par assistente, Carlos teve uma alegria extraordinária. Não só isso representava um belo avanço na vida, como lhe permitia seguir de perto o cientista admirável que tanto soubera elevar o nome do Brasil pelos seus estudos da sífilis. Em breve, uma dedicação sem par - eu devia conhecer a sua capacidade de dedicar-se -ligava-o finalmente ao mestre. Viam-no no consultório e em casa. Essa intimidade afetuosa chegou ao ponto - o dr. Soeiro não tinha filhos - de Carlos ser considerado por ele e pela senhora como um filho. O professor devia andar pelos sessenta anos, mas d. Eulália pelos trinta e cinco.

Por isso, Carlos protestava sempre, em tom amistoso, contra o tratamento de filho:

- Por quem é, a senhora não tem idade de ser minha mãe!

O que, sobretudo, o dr. Soeiro admirava em Carlos - não era o talento, nem a aptidão, nem o caráter - era a saúde.

- És uma das raras pessoas que eu conheço no mundo que não têm o veneno... Boa raça!

Essa admiração vinha muito de um instintivo despeito, aliás. O dr. Soeiro, o grande especialista da sífilis, era um sifilítico. Sua mulher também. Aquela frescura de d. Eulália, a sua linda pele invejável, escondiam o mal. O dr. Soeiro sofria com isso.

Ao fim de dois anos e meio, quase três, Carlos tinha na casa do mestre uma intimidade absoluta. Já não era "como um filho": era mesmo "um filho". Visto que o dr. Soeiro e a mulher viviam afastados da sociedade, tais relações nunca deram que falar a ninguém. Mesmo quando o mestre fazia uma pequena viagem, a Minas ou a São Paulo, Carlos ia almoçar ou jantar com d. Eulália.

O dr. Soeiro conhecia a vida do discípulo, as suas comodidades de Paula Matos, o seu pavor indizível à sífilis...

- Continua assim. A sífilis é horrível.

Uma vez, mesmo, mostrara vontade de conhecer Aurora. Foi jantar com eles. Ficou encantado com a rapariga.

- Tão boa esta menina!

- E sã, meu caro mestre...

Ora, ao fim duns três anos, o dr. Soeiro começou a manifestar o estranho desejo de fazer um exame de sangue do assistente. Da primeira vez, Carlos tomou a coisa em ar de graça. Como o mestre insistisse, consentiu afinal.

- Por quê, mestre? Não acredita que eu tenha o sangue em bom estado?

A reação deu resultado negativo. Mas, a pretexto de que as reações falham, o dr. Soeiro tornou a pedir, tempos depois, para examiná-lo de novo.

O capricho do dr. Soeiro, entretanto, tornou-se maçante. Toda semana, repetia o pedido em ar de brincadeira. Se Carlos se esquivava, alegando que era uma tolice, o dr. Soeiro mostrava-se contrariado. Então Carlos consentia, estranhando aquilo. E o mestre no fim do exame reassumia o tom caçoísta:

- Ainda não é desta vez!

Uma noite, tendo ido, como de costume, à casa do dr. Soeiro, d. Eulália recebeu-o nervosamente, com estas palavras:

- Fez bem em vir aqui. Precisava muito falar-lhe.

Carlos esperou que ela dissesse o que era.

- Olhe - começou d. Eulália -, o senhor deve fazer uma viagem, ficar uns tempos longe do Rio, enfim, afastar-se de Soeiro. Afastar-se aqui de casa, principalmente.

Carlos espantou-se. Quis a explicação do conselho.

Então d. Eulália, quase chorando, contou-lhe que o marido, havia dois meses, principiara com crises de ciúme, insinuando que ela amava e era amada por Carlos. Da insinuação passara à acusação em cheio, brutal. E naquela mesma noite, depois do jantar, tivera a crise mais violenta de todas. Ele afirmava estar seguro do amor da mulher pelo discípulo. Estava só à espera da prova decisiva da traição. Esta prova não consistia em apanhá-los em flagrante, nem descobrir a correspondência, nada... Ele tinha outro meio de prova, muito mais perfeito e seguro. Conhecia a mulher, conhecia Carlos. Eles traíam-no. Se ainda não tinham levado a efeito a traição, isso não havia de tardar. E ele saberia. A denúncia seria dada pelo próprio sangue de Carlos...

Chegando a este ponto da narrativa, o meu querido amigo de infância parou para perguntar-me:

- Está interessante o caso?

Eu esperava o resto, de olhos fixos, todo atenção, os cabelos ao vento, no tombadilho oscilante do vapor. De baixo, do porão, vinha o rumor surdo e monótono das máquinas. E a hélice, atrás, dava a impressão de que golfões de água estivessem a se despenhar num tanque, incessantemente.

- Continue.

D. Euláliaa rogou-lhe por todos os santos que se afastasse de sua casa e mesmo do Rio, se fosse possível. O dr. Soeiro era doente. Aquilo era da doença, sem dúvida... E ele o mataria, estivesse certo. Conhecia o marido. Sob aquela aparência inalterável de calma, tinha às vezes ideias fixas, manias que o levavam à prática de espantosos absurdos. Ele o mataria...

Aí Carlos não resistiu a empregar um argumento:

- Por quê? Ele nunca poderá achar a denúncia no meu sangue.

D. Eulália olhou-o meio vexada... Ele despediu-se:

- Está bem, d. Eulália. Sou-lhe infinitamente agradecido.

Ela disse mais uma vez:

- Faça o que eu lhe peço. Afaste-se. Ponha a sua vida em segurança, a sua vida que é tão preciosa...

No dia seguinte pela manhã, Carlos estava resolvido a não sair do Rio, nem a afastar-se do mestre. Continuaria trabalhando a seu lado. Apenas, se ele insistisse nos exames de sangue, recusar-se-ia. Até que aquilo passasse. Havia de passar.

Essa atitude, certamente, não seria de pacíficos resultados para Carlos. Podia custar-lhe muito. D. Eulália tinha razão.

Mas não foi preciso nada. Nessa manhã mesmo toda a cidade soube que o dr. Soeiro enlouquecera na rua, de madrugada. A moléstia vencera o seu grande inimigo, atacando-lhe o cérebro definitivamente.

- Morreu?

- No Hospício, um mês depois.. Por isso te perguntei se não lias jornais...

Havia estrelas sobre nós. Uma viagem tranquila, doce...

- E a viúva? - indaguei com uma vivacidade cuja razão sutil o meu querido Carlos, pouco psicólogo evidentemente, não podia perceber.

- Embarcou há uma semana para a Europa. Vai passar lá o seu ano de luto fechado.

- Depois volta?

- Volta. Daqui a um ano.

O vento apagou o fósforo que Carlos riscara. Dei-lhe a brasa do meu cachimbo para que acendesse o cigarro.

- Pois bem - concluí -, então daqui a um ano deixas o cargo de inspetor sanitário de Paula Matos.

- Hein: - fez ele sem compreender.

- Além da clientela, herdarás a mulher do dr. Soeiro, que naturalmente é milionária...

Deu um pulo na cadeira de lona:

- Que sacrilégio! Uma senhora que me trata como a um filho!

- Acredito. Mas que te ama! Apesar da doença cerebral do dr. Soeiro, o ciúme dele, que não era homem de natureza violenta, devia ser baseado numa observação longa e fundamentada... Essa mulher ama-te.

- Ora, que absurdo! Depois...

Fez um silêncio discreto. E, suavemente:

- Ela é doente, segundo afirmava o marido.

- Não dizes que é linda? Linda e milionária...

- Mas, não tenho a certeza de que...

- Não tem importância. Demais, já é tempo de acabares com essa infantilidade do teu medo... é de um ridículo liquidante. Principalmente num especialista.

Ele sorriu:

- Tens razão.

E fomos tomar um aperitivo no bar do navio, á saúde do lindo futuro do meu querido inspetor...