Imagem: reprodução parcial da página 10 do Caderno Feminino/O Estado de São Paulo
Ribeiro Couto, um poeta brasileiro
Vasco Mariz
Este artigo é uma homenagem ao grande escritor paulista – poeta,
contista e romancista – em uma época em que seu nome já começa a esmaecer. Nos anos 30 e 40, Ribeiro Couto foi uma das mais altas personalidades literárias brasileiras. Ao ser eleito para a Academia Brasileira de Letras com pouco mais de 30 anos,
era o mai jovem de seus membros titulares. Entretanto, pelo fato de haver escolhido a carreira diplomática e ter vivido quase 30 anos seguidos na Europa, sua obra foi aos poucos ficando esquecida na Pátria.
Ainda em 1958, por ocasião de seu 60º aniversário, o editor José Olympio publicou volume com suas poesias completas e a imprensa
especializada saudou-o unanimemente como o merecia. Infelizmente, faleceu poucos anos depois, sempre no Exterior, e desde então referências a seu nome e à sua obra vêm rareando. Quando procurei material no Rio de Janeiro para realizar este estudo,
em 1984, tive extrema dificuldade em localizar suas obras. Por motivo da exiguidade de espaço, abordarei apenas a poesia de Ribeiro Couto, sem com isso desmerecer sua importante contribuição ao conto e ao romance brasileiros.
Rui Ribeiro Couto nasceu em 12 de março de 1898, em Santos. À beira-mar, portanto, fato essencial para entender a sua poesia.
Infância pobre, muito cedo órfão de pai (cuja personalidade estranhamente jamais surgiu em sua poesia), ternura extraordinária pela mãe, que trabalhou duramente para educá-lo. Primeiras letras em Santos e depois estudos secundários em São Paulo.
Tinha sangue africano, fato que se esforçava por ocultar. Quando começou a ficar careca, raspou a cabeça. Ufanava-se de seu avô português.
Desde os 17 anos era jornalista em São Paulo, e aos 20, já no Rio de Janeiro, impressionara Gilberto Amado com um artigo sobre o
presidente eleito Epitácio Pessoa. Em 1919 terminou seu curso de Direito na Faculdade do Rio de Janeiro, estudo aliás iniciado em São Paulo. Viveu na antiga capital até 1922, época em que sua saúde, frágil desde os 18 anos, deteriorou-se
gravemente. Era a tuberculose que o assaltava e os médicos lhe recomendaram tratamento nas alturas de Campos do Jordão.
Antes, porém, publicara, em 1921, o seu primeiro livro de versos, Jardim das Confidências, e, no ano seguinte, três livros
de contos: Circo de Cavalinhos, A Casa do Gato Cinzento e O Crime do Estudante Batista. Ribeiro Couto, portanto, ao isolar-se na serra, em busca dos bons ares dos pinheirais, já havia feito muitos amigos e admiradores entre os
literatos da época.
Os anos seguintes alterariam profundamente a sua personalidade. O tremendo isolamento a que se submeteu voluntariamente, vivendo em
uma pequena comunidade da serra paulista, marcou de maneira indelével a sua inspiração, mas nem por isso dobrou sua vontade indomável de superar a moléstia. Já em 1924 havia melhorado e estava trabalhando como promotor público, cargo que
desempenhou até 1928, em diversas cidades de São Paulo e Minas Gerais.
Sua atividade literária se refinou com o sofrimento e a incerteza de cura: de 1924 são os Poemetos de Ternura e Melancolia
e, de 1926, Um Homem na Multidão, livrinhos de poemas que obtiveram excelente repercussão, e ainda mais Baianinha e Outras Mulheres (1927), notável sucesso como livro de contos.
Assim sendo, os seis anos em que esteve mais ou menos isolado nas alturas de São Paulo e depois de Minas Gerais representaram um
período de sofrimento físico e psicológico que acabou sendo altamente proveitoso para a qualidade da atividade literária de Ribeiro Couto.
Em 1929, já quase curado, lançava-se o menino de Santos, que tanto sonhara com terras de além-mar, à sua primeira aventura no
exterior: seus amigos arranjaram-lhe um lugar no Consulado do Brasil em Marselha, de onde ainda fez umas esticadas aos bons climas da Suíça. Em 1931, obtinha transferência para Paris. Nessa altura, a divulgação que tiveram seus livros granjeou-lhe
considerável reputação entre a intelectualidade da época no Brasil.
O romance Cabocla, em 1931, recebeu estrondosa acolhida da crítica literária, sucesso que reproduziu em 1933 com o livro de
contos Clube das Esposas Enganadas. O êxito foi tão grande que, em 28 de março de 1934, portanto com apenas 36 anos de idade, foi eleito no primeiro escrutínio para a Academia Brasileira de Letras, da qual passava a ser seu membro mais
jovem. Tomou posse em 17 de novembro de 1934 e o discurso do respeitado crítico Laudelino Freire, que o saudou com efusivas palavras, expressa bem a fama e o apreço sincero que Ribeiro Couto havia adquirido em tão pouco tempo.
Depois disso, se antes servia como funcionário administrativo do Ministério das Relações Exteriores, foi nomeado para a carreira
diplomática e mandado servir como 2º secretário na Legação do Brasil na Holanda, onde viveu cinco anos e chegou a falar fluentemente o holandês. Entretanto, essas missões no exterior afastaram Ribeiro Couto definitivamente do Brasil, onde só
regressou para curtos períodos de férias.
Nem por isso sua atividade literária diminuiu, e relaciono as obras publicadas: poesia – Canções de Amor
(1930), Noroeste (1933), Correspondência de Família (1933), Poesia (1934), Província (1934), Cancioneiro de D. Afonso (1939); romance – Prima Belinha (1940); conto – Largo da Matriz (1940) e Uma
Noite de Chuva e Outros Contos (1944); viagem e ensaio – Presença de Santa Terezinha (1934) e Chão de França (1935). Intensa atividade, portanto, mas concordo com Mário de Andrade quando afirmou que, com a saúde recuperada
e o sucesso literário, "a qualidade lírica de Ribeiro Couto baixou bem" [1].
A prolongada estada no exterior, em um país de clima sombrio como a Holanda, a explosão da II Guerra Mundial e a
permanência em Haia, cidade profundamente afetada pelo grande conflito, certamente trouxeram saudades da pátria, da tranquilidade das cidadezinhas distantes, recordações de sua mãe que amava tão profundamente. Tudo isso imprimiu nova substância à
poesia de Ribeiro Couto, que iria atingir outros patamares de "uma força lírica esplêndida, às vezes lancinante mesmo", no dizer de Mário de Andrade. Ele, que o criticara anteriormente, é o primeiro a reconhecer o mérito do Cancioneiro de D.
Afonso [2].
Em plena guerra, o Itamaraty transferiu-o para Lisboa, onde viveria intensamente a terra dos seus antepassados, durante cerca de
seis anos (1940-46). Aproximava-se dos 50 anos e a maturidade chegara. Os versos de Cancioneiro do Ausente (1943) e de O Dia Longo (1944) confirmavam a qualidade do seu estro e a habilidade no manejo dessa inspiração. Era já um outro
homem a acompanhar de perto as grandes convulsões históricas de seu tempo. Seu canto era agora diferente do poeta melancólico que duvidava de seu futuro, à sombra dos pinheirais paulistas.
Carlos Drummond de Andrade, que o conheceu em 1926 em Minas Gerais, comenta O Dia Longo
[3] lembrando que Ribeiro couto "ocupou um território privativo na poesia brasileira. Sua voz não se confunde com a de nenhum outro. O resultado são poemas de uma tal delicadeza de
expressão, de um pudor tão meigo, de uma sensibilidade tão brasileira, que resistem bravamente a todas as modas".
Couto chefiou interinamente a embaixada brasileira em Portugal de 1944 a 1946 e, uma vez promovido a ministro plenipotenciário em
1947, foi nomeado chefe de missão em Belgrado, Iugoslávia, onde os nossos caminhos se cruzaram. Lá datilografei e debati os originais de Entre Mar e Rio (1952) – ambos chegávamos de Portugal e somos descendentes de portugueses. Estava ele
nessa época (1949-51) em intensa fase de produção em francês, idioma que dominava à perfeição. Por vezes me despertava de madrugada e me lia um poema que acabara de compor, para sentir minha primeira reação, quiçá sonolenta… Se a sua poesia sempre
foi íntima e mesmo melancólica, pessoalmente ele era extrovertido, um causeur delicioso, cheio de alegria de viver. Foi um chefe admirável, um mestre na diplomacia e muito do que sei com ele aprendi.
A Iugoslávia e os Balcãs o encantavam. Aprendeu a falar servo-croata bastante bem e foi amigo pessoal do marechal Tito. Apreciava o
homem, mas detestava o regime político: disse-me mais de uma vez que esperava ficar na Iugoslávia tempo suficiente para ver o fim do governo do marechal. Não conseguiu, embora tenha passado 16 anos em Belgrado, lá se aposentando. Mas aquele período
de mais de dois anos em que convivemos intensamente, tive o prazer de com ele festejar sua promoção sur place a embaixador. Pelos versos que ajudei a datilografar receberia ele, mais tarde em Paris o prêmio internacional de poesia de 1958 –
"Les Amitiés Françaises", oferecido anualmente pela Sociedade de Poetas Franceses ao melhor livro de poesias em francês, de autoria de poeta estrangeiro. No ano anterior, encontrei-o em Florença e o acompanhei na cerimônia em que recebeu
prêmio semelhante das mãos de intelectuais italianos. Foi a última vez que o vi, mas nos carteamos ainda com frequência, pois Couto era fiel amigo de seus amigos.
Em 1958, quando completou 60 anos, seus amigos fizeram-lhe no Rio de Janeiro e São Paulo vistosas homenagens.
Manuel Bandeira, que era seu amigo íntimo desde 1919, comparou-o a Bilac: "Couto foi como Bilac – quando estrearam já tinham ambos alcançado o perfeito domínio da técnica do verso e neste sentido não se acrescentariam. Naquele tempo, Couto
cultivava na sua pessoa e na sua poesia uma disciplinadíssima discrição. Não gesticulava, não se exaltava. Mais tarde voltou gesticular, o que era muito mais conforme com seu temperamento abundante e generoso" [4]. Bandeira e Couto tinham a afinidade de que ambos foram tísicos e conseguiram vencer a doença.
No entanto, o poeta continuava ausente do Brasil e começava a ficar esquecido do grande público. Em 1960, a Editora José Olympio
publicava grosso volume de Poesias Reunidas, de Ribeiro Couto, que obteve notável repercussão. José Lins do Rego, em crônica na imprensa carioca, louva a maturidade do "poeta do amor que não mata, poeta do amor capaz de louvar a vida".
No ano seguinte, 1961, aparecia seu último livro, Longe, que contém alguns de seus melhores versos.
Dedicado à sua esposa (de quem vivia separado, mas continuavam excelentes amigos, foi o verdadeiro canto de cisne. Gilberto Amado, que ocupou sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, contou emotivamente, no discurso de posse, os últimos anos
de Ribeiro Couto, que faleceu em Paris em 30 de maio de 1963, quase totalmente cego [5]. Tinha 65 anos de idade.
Ribeiro Couto (esq.) e dois diplomatas estrangeiros, em companhia do marechal Tito
Foto publicada com a matéria
Agora que o leitor conheceu o "dia longo" de Rui Ribeiro Couto, tentarei comentar sua poesia, também com a ajuda de alguns ilustres
contemporâneos. Já disse que era homem extrovertido em contraste com seus versos de intimidade. Falta dar-lhe o físico, pelo menos das últimas décadas de sua vida: como bem o descreveu José Lins do Rego, era "um homem moreno, de olhos verdes, de
cabeça raspada à maneira de general alemão, de corpo agitado e sólido". Notável conversador, tinha um jeito autoritário extremamente persuasivo. Soltava sonoras gargalhadas e fumava sem cessar, derramando no paletó as cinzas do cigarro. Era um
homem simpático e seu encanto pessoal, profundamente humano, conquistava a todos, em todas as latitudes. Em Belgrado fascinava o corpo diplomático com sua "verve"; em Portugal era amado com sinceridade.
Tomemos agora suas Poesias Reunidas (Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1960, 450 páginas), que contém toda sua
obra poética, exceto seus versos em francês e o derradeiro livro – Longe (Editora Livros do Brasil, Lisboa, 1961, 136 páginas). Na apresentação da coletânea geral o autor esclarece: "Tivesse eu cedido à forte tentação de eliminar aqui muitos
versos da juventude, ou de recompô-los conforme a experiência da idade madura, já esta obra deixaria de ser, com exatidão e ânimo sincero, o espelho das fugitivas horas de toda uma vida". No entanto, Carlos Drummond de Andrade, na já citada
crônica, afirma que, "com Ribeiro Couto, o tempo não pôde nada. O poeta, de uma autenticidade de fonte, não tem fases, modos ou ciclos. Foi-se apurando no decorrer do dia, mas não precisou alterar em qualquer momento a linha inicial de sua melodia,
que brotara límpida e suave, terna e melancólica, e nessa pureza nativa se manteve sempre".
Prossegue Drummond: "Os poemas de Ribeiro Couto são música em surdina, são eternidades do minuto, comunicam-nos a sensação do
instante, simultaneamente fugitivo e imperecível, que é a nossa existência individual. Só temos o direito de olhar um segundo para cada forma, que no instante seguinte já se modificou, mas temos o poder de lembrar essa coisa pelo resto da vida, em
sua plenitude vislumbrada, em sua essência. E o poeta nos ajuda a fazê-lo, fazendo-o ele mesmo".
Ribeiro Couto era mesmo "o homem cordial", como Manuel Bandeira gostava de chamá-lo. Grandalhão de físico, e em geral de voz
tonitruante, quando compunha ou recitava poesia, falava baixinho num sussurro intimista. Desde o Jardim das Confidências (1915-1919) até Longe (últimos poemas) persistem os mesmos temas, os leit-motivs de sua poesia: chuva,
bruma, as tardes nostálgicas, a melancolia, o mar, o porto, a mãe, o medo de morrer cedo como o pai, o pequeno mundo da província e, finalmente, à medida que envelhecia, a saudade do Brasil, a presença da morte, a certeza do esquecimento apesar de
sua obra poética e literária.
Mário de Andrade, no artigo citado, aponta o penumbrismo inicial do autor e compara seu intimismo com o de Manuel Bandeira: "Ao
invés do intimismo de Manuel, que era irreconciliavelmente individualista, o intimismo de Ribeiro Couto se relacionava a um pequeno mundo, que, embora não atingisse expressões universalmente sociais, era de qualquer forma associativo". Na verdade,
esse intimismo estava quase sempre relacionado com o bairro, a província e o subúrbio, sem preocupar-se com os grandes problemas universais. Essa tônica persistiu no futuro, durante a II Guerra Mundial, que viveu de perto na Holanda, em Portugal e
na Iugoslávia: raramente se observa uma referência na poesia de Couto aos acontecimentos da época. A guerra não conseguiu invadir seu mundo interior.
O amor e a mulher jamais chegaram a ocupar um espaço preponderante na poesia de Ribeiro Couto. Até o fim esteve enamorado de sua
esposa, d. Menina (Anna Pereira Ribeiro Couto). Escreviam-se intensamente e sou testemunha de que o poeta tinha em alta conta os seus conselhos. No decorrer de seu "dia longo" encontramos referências a mulheres, mas de longe a maior influência
poética feminina foi mesmo a de sua mãe, presente em sua poesia até os últimos dias.
Jardim de Confidências oferece alguns de seus melhores versos. Recordo que se trata de período em que a tísica não havia ainda atingido a crise existencial. Destaco como
representativos do autor os poemas: Chuva, Solidão, A Vigília da Mãe Fatigada, A moça da Estaçãozinha Pobre, e Quando Aparece a Primeira Estrela. Afrânio Coutinho [6] o considera como "o principal responsável pelo penumbrismo no Brasil", em reação evidente às normas do parnasianismo. Romântico crepuscular, é sentimental com frequência e utiliza o verso alexandrino francês com propriedade. Manejou os
sonetos, os madrigais e o verso livre com desenvoltura.
Nos Poemetos de Ternura e Melancolia (1919-22), dedicados a Ronald de Carvalho, encontramos frases expressivas de
autocrítica, como em Surdina, por exemplo:
Minha poesia é toda mansa
Não gesticulo, não me exalto…
Meu tormento sem esperança
Tem o pudor de falar alto.
Também essa coletânea contém algumas páginas magistrais, que já caracterizavam o jovem mestre: Visita, Reflexo,
Chuva Silenciosa, Mulher Passageira e A Canção de Manuel Bandeira.
Um Homem na Multidão (1921-24) também foi "um livro de primeiro time", como bem o definiu Mário de Andrade. Estava em plena crise da enfermidade que tão gravemente o assaltou, e é provável que sua firme vontade de sobreviver, de prosseguir seu destino, o
tenha ajudado a vencer a doença, tal o rigor com que seguiu o tratamento prescrito. O livro é dedicado à sua mulher, que conheceu em São Bento de Sapucaí no período de recuperação da saúde, e, embora só inclua poemas daquela fase, veio à luz apenas
em 1926, quando a doença já deixava de esmagar o poeta. Vejo-o já a sonhar com os navios de Santos:
Ó transatlânticos com bandeiras enfeitadas,
Não é verdade que viestes para levar-me?
No poema Ventania, destaco frase eloquente:
O mar à beira do qual eu nasci,
O mar que desde menino me pôs nas veias a inquietação!
Abril é um
momento de admirável frescura na serra, que Villa-Lobos soube captar em extraordinária canção de sua série de Serestas. Em São José do Barreiro, 5º poema, lemos outras frases de análise dos seus temas:
Amo as coisas simples,
Tudo que está em roda de mim
E existe sem ninguém saber.
As Canções de Amor (1922-25) só foram publicadas em 1928 quando o perigo da tuberculose estava afastado. O poeta casara-se e o futuro parecia sorrir-lhe afinal Isso, entretanto, não serviu para manter a mesma intensidade de inspiração e concordo com Mário
de Andrade que o nível de sua poesia desceu nesta série, e nas duas obras seguintes: Noroeste e Província. Isso não quer dizer que Província seja medíocre, longe disso. E quero registrar minha predileção por Contentamento,
Largo da Matriz e Cemitério, de feitura muito feliz, quase no nível de suas primeiras obras que o consagraram. Mas faltava algo…
Noroeste e
Outros Poemas do Brasil foi publicado em 1933 e contém versos escritos de 1926 a 1932. Aqui o autor tentou a poesia épica, contando o desenvolvimento do interior de São Paulo, e… francamente não chega a convencer. O único poema desse ciclo que
me agradou foi Santos, mais versos dedicados à sua cidade natal:
Sou bem teu filho, ó cidade marítima,
Tenho no sangue o instinto da partida,
O amor dos estrangeiros e das nações.
Curado, queria correr mundo e o fez da melhor maneira possível, como diplomata. Cometeu o erro de deixar-se ficar em demasia no
Exterior e bem cedo surgiu a saudade, cada vez maior. Pretendia viver no Brasil, na Barra da Tijuca, perto do Rio de Janeiro, onde adquirira várias propriedades. Vítima da cegueira, que desenvolveu rapidamente nos últimos anos de sua carreira,
aposentou-se aos 65 anos, e quando estava em Paris, já a caminho do Rio de Janeiro, faleceu subitamente. Melhor assim, pois não mais poderia ver e apreciar as paisagens que o encantaram na mocidade.
Um dos melhores amigos de Ribeiro Couto foi Afonso Arinos de Melo Franco, seu companheiro de casa de repouso na Suíça. A ele está
dedicada a série seguinte de poemas – Cancioneiro de D. Afonso, editado em 1939, em Lisboa, abrangendo versos elaborados entre 1932 e 1939. O acontecimento foi auspicioso porque o poeta aqui recobrou o melhor de sua inspiração. Mário de
Andrade, no artigo citado no início deste estudo, registra-o: "Com o Cancioneiro, Couto readquire mais livremente o exercício de sua personalidade, nos mostra de novo o que é essencial nele e usa, com a mesma largueza da primeira frase. E
nos dá um dos seus mais encantadores livros de poesia".
Verdadeiras obras-primas ali estão, como Toadas de Wittenburgerweg, Festa na Bahia, Dengues da Mulata
Desinteressada e o magistral Violão do Capadócio, que contém a essência do tragicômico urbano.
Não há mulher ingrata
Nem há amor que mata
Amor vai, amor vem.
A de hoje é clara, a de amanhã será morena.
Se o amor que mata é o único amor que vale a pena,
Então não amei a ninguém.
Ribeiro Couto descobriu nessa etapa um sentido de humour no subúrbio carioca e sua lira ganhou uma nova corda a
valorizar-lhe o instrumento poético. Seus temas humildes do cotidiano enriqueceram-se com a série seguinte – Cancioneiro do Ausente, editado em São Paulo em 1943, com poemas compostos entre 1932 e 1943.
O livro final de poemas de Rui Ribeiro Couto, Longe, é de 1961. Foi também publicado em Lisboa e contém versos feitos na
Iugoslávia, muitos deles no período em que convivemos em Belgrado. Arrisco-me a afirmar que a tristeza e a saudade, a presença da morte próxima perpassam continuamente por estas páginas. Suas qualidades se apuram ao máximo, se condensa o seu canto
na hora de uma aposentadoria agravada por uma perda acelerada de visão.
Recordo agora palavras de Laudelino Freire, quando em 1934 o saudava em sessão triunfal na Academia Brasileira de Letras, que
frequentaria tão pouco no futuro: "Lendo-vos, sr. Ribeiro Couto, poucos serão os que não sintam vontade de chorar!" A dedicatória em Longe é eloquente e fiel ao seu único verdadeiro amor: "Para Menina, junto ao Rio Sapucaí, na Serra da
Mantiqueira". E surgem mais páginas biográficas, em poema justamente denominado Biografia:
Anos de força, andanças da aventura
O mundo! E uma canção já com voz diferente,
O escurecer do céu na tarde que não dura.
Ribeiro Couto e Menina não tiveram filhos, mas o amor que demonstrava pelas crianças, e disso fui testemunha, fê-lo escrever
delicadas rimas para Aquele que não quis nascer:
Aquele que não quis nascer
E teria a tua meiguice,
Era como se eu o sentisse
Nos meus braços adormecer.
Poemas da mais pura cepa foram escritos nesse período de maturidade: Rosas de Todo o Ano, O Adeus, O Calar e o
Dizer, Dia Longo, Vida Nova, Fim de Festa. À medida que progredia a enfermidade ocular, não deixava o poeta de registrar o trágico fato:
Um verso triste faz minha alegria.
Tenho a felicidade na mão cheia,
Nada mais vejo do que me rodeia,
Desperta tudo que então dormia.
A imagem da mãe não se esbatia e o vemos invocá-la pela última vez em Madrugada, na qual tão bem define o que significou
para ele a poesia:
É tarde, não há dúvida. Ali fora
Vejo o dia nascer, ainda indeciso,
E eu a escrever poesia até agora,
Meu veneno, meu mal, meu paraíso.
Recorda o seu "dia longo" em Chuva e Sol:
Na minha terra como na estrangeira
Fui simpatia, fui amor fecundo,
A raiz que ficou, mesmo rasteira,
Longe de mim ainda procura o fundo.
E Wilson Martins comentou a obra de Ribeiro Couto: "Sua poesia adquiriu uma densidade, uma consciência que o situam não somente
entre os grandes poetas brasileiros de nossos dias, mas ainda entre os poucos que podem ter e efetivamente têm uma audiência internacional".
Essa projeção internacional teve Ribeiro Couto certamente, nos anos 50 e 60, em Portugal, na França, na Itália, na Iugoslávia. As
edições de seus poemas em idiomas estrangeiros se sucederam: Arc-en-Ciel e Mal du Pays, publicados em Paris ambos em 1949; Lungo Giorno (Siena, 1952), Le Jour est Long (Paris, 1958), Les Jeux de l'Apprenti Animalier
(Paris, 1955, ambos editados por Pierre Seghers) e Dugi Dan (Zagreb, 1952). Isso sem repetir os livros editados em Portugal, já comentados. Recebeu vários prêmios literários na França e na Itália e, em 1944, foi eleito membro correspondente
da Academia de Ciências, de Lisboa.
Referência final e altamente expressiva para demonstrar seu êxito como poeta, acrescento como novidade: os poemas de Ribeiro Couto
interessam vivamente os compositores eruditos brasileiros, e portugueses também. Foram os seus versos postos em música nada menos de 20 vezes, o que o coloca em 7º lugar entre os poetas brasileiros mais frequentemente musicados por nossos
compositores clássicos. Villa-Lobos escreveu em 1926 duas verdadeiras obras-primas na série de Serestas, a saber: Abril e Canção do Crepúsculo Caricioso (A Canção do Carreiro), ambas gravadas e interpretadas
internacionalmente. Mas antes disso, em 1921, Lorenzo Fernandez havia musicado Solidão com bastante êxito também.
Muito mais tarde, já em 1953, Francisco Mignone compôs a magistral Festa na Bahia e Violão do Capadócio, também
gravadas. Dengues da Mulata Desinteressada foi musicada nada menos de três vezes: por Mignone, Camargo Guarnieri e Marlos Nobre. Queixa da Moça Arrependida foi posta em música por Osvaldo Lacerda e Ernesto Mahle.
Vemos assim que Ribeiro Couto soube inspirar alguns dos melhores compositores brasileiros. E não esqueçamos que, em Portugal, o
saudoso Armando Leça compôs toda uma série de canções com poemas de Ribeiro Couto, que tiveram muito êxito inclusive na Argentina, onde foram editadas. Sucesso mais recente e definitivo é a Toada, de Camargo Guarnieri – Já hoje que aqui
me vistes, um dos poemas mais expressivos de Ribeiro Couto em sua fase holandesa (Toada de Wittenburgerweg).
São meus votos que este "artigo", que recorda um dos poetas mais sentidamente brasileiros, seja o ponto de
partida para um real esforço de divulgação da obra de Ribeiro Couto junto às novas gerações brasileiras e internacionais. Couto não foi um poeta parado no tempo e seus versos aí estão para emocionar as gerações futuras.
NOTAS
[1] Mário de Andrade – O Empalhador de Passarinhos, vide excelente artigo intitulado "Um Cancioneiro", datado de 12/5/1940.
[2] Mário de Andrade – Ibidem.
[3] Carlos Drummond de Andrade – "No Dia Longo", crônica valiosa de 11 de março de 1958, em O Correio da Manhã, Rio de Janeiro.
[4] Manuel Bandeira – Crônica em O Jornal do Brasil, de 12/3/1958.
[5] Academia Brasileira de Letras – Discursos Acadêmicos (1964-65). Rio de Janeiro, publicado em 1971.
[6] Afrânio Coutinho – A Literatura no Brasil, vol. III. |