Textos escolhidos CHUVA
A chuva fina molha a paisagem lá fora.
O dia está cinzento e longo... Um longo dia!
Tem-se a vaga impressão de que o dia demora...
E a chuva fina continua, fina e fria,
continua a cair pela tarde, lá fora.
Da saleta fechada em que estamos os dois,
vê-se, pela vidraça, a paisagem cinzenta:
a chuva fina continua, fina e lenta...
E nós dois em silêncio, um silêncio que aumenta
se um de nós vai falar e recua depois.
Dentro de nós existe uma tarde mais fria...
Ah! Para que falar? Como é suave, brando,
o tormento de adivinhar - quem o faria? -
as palavras que estão dentro de nós chorando...
Somos como os rosais que, sob a chuva fria,
estão lá fora no jardim se desfolhando.
Chove dentro de nós... Chove melancolia...
(O jardim das confidências, 1921.)
O PORTÃO
Quando à noite regresso a esta rua calada
que sabe o meu romance e esconde a minha vida,
vou antes contemplar certa casa alpendrada
e fico ali, numa atitude enternecida,
fico ali namorando a janela fechada
atrás da qual, no leito lírico, esquecida,
dorme alguém, como a princesa da balada.
Em torno à sua casa o jardim também dorme.
E do arvoredo, que ao luar tem brilhos vagos,
vem um perfume que perfuma a noite enorme,
Esse perfume espalha mãos cheias de afagos...
Fico ali... Tudo toma expressões diferentes.
Tudo toma expressões de impossibilidade...
Ao luar, tudo toma expressões diferentes.
Tudo... Principalmente o seu portão de grade
que me diz "nunca!" no cadeado e nas correntes.
(O jardim das confidências, 1921.)
A FRASE QUE SE ESQUECE
Na noite morta o céu resplandece, estrelado.
Em baixo, a confusão negra da casaria.
E eu, contemplando o céu de um veludo azulado,
nem sinto a noite, a noite morta, a noite fria!
Vem à minha memória uma frase esquecida.
Uma frase de há muito... Uma pequena frase...
Dessas que a gente vai deixando pela vida,
ditas a uma mulher que a gente amava, quase,
e que ficou também, como a frase, esquecida.
"Tu viverás em mim como um adeus distante..."
Ela era feia e desgraçada... Eu tinha pena.
Grave, não aceitei sua boca ofertante
quando ela veio um dia, humilhada e serena, Ela era feia e desgraçada... Eu tinha pena.
Como se abandonasse em meus braços, chorando,
eu, a passar-lhe a mão pelo rosto molhado,
a boca murcha, o olhar piedoso, o gesto brando,
sentimental como um poeta enamorado,
afastei-a, movendo a cabeça, negando...
Ela bem compreendeu a renúncia e a meiguice.
E porque fosse imensa a dor daquele instante,
querendo consolar a nós dois foi que eu disse:
"Tu viverás em mim como um adeus distante..."
Olhando agora o céu da noite adormecida,
pus-me a chorar, chorar silenciosamente,
sofrendo a dolorosa ironia da vida,
só porque, sem querer, me despertou na mente
aquela pobre fase esquecida... esquecida...
(O jardim das confidências, 1921.)
SURDINA
Minha poesia é toda mansa.
Não gesticulo, não me exalto...
Meu tormento sem esperança
tem o pudor de falar alto.
No entanto, de olhos sorridentes,
assisto, pela vida em fora,
à coroação dos eloqüentes.
É natural: a voz sonora
inflama as multidões contentes.
Eu, porém, sou da minoria.
Ao ver as multidões contentes
penso, quase sem ironia:
"Abençoados os eloqüentes
que vos dão toda essa alegria."
Para não ferir a lembrança
minha poesia tem cuidados...
E assim é tão mansa, tão mansa,
que pousa em corações magoados
como um beijo numa criança.
(Poemetos de ternura e de melancolia, 1924.)
NOTURNO DO CÓRREGO FUNDO
Agora, todas as noites, quando a fazenda estava em silêncio, eu escapava do quarto e ia bater na porta de Zuca,
devagarinho; com medo de acordar as crianças que dormiam ao lado.
Os relinchos de uma égua no pasto, o canto insone de um galo em distantes quintais de colonos, interrompiam as
nossas conversas sussurrantes assustavam-nos. Às vezes, um sincerro vinha vadiar pelo terreiro a sua melodia mansa e monótona: era o Pigarço, a cujo
pescoço o Tomé prendera, a meu pedido, a campânula sonora, para que eu sentisse perto de mim, à noite, a amizade vigilante do cavalo.
Eu queria um bem profundo ao Pigarço porque era o cavalo que Zuca preferia. Ela adorava as montarias em pêlo, as
corridas doidas pelo pasto afora, com um simples cabresto passado no focinho do animal. Da janela da sala de jantar, prima Emerenciana gritava:
- Essa menina se mata! Zuca! Ó Zuca !
- Sua afilhada ainda quebra uma perna aqui no Córrego Fundo. Você precisa proibi-la, - obtemperava, o primo,
inquieto. - Que é que nós iríamos dizer depois ao compadre José ?
Prima Emerenciana já tinha proibido, mas que se havia de fazer? Quando se pilhava no terreiro, a afilhada não lhe
obedecia; a atração do cavalo era mais forte. Menina do mato, acostumada a lidar com os animais - que se havia de fazer?
- Aliás é também mau exemplo para a Mariazinha, que já outro dia saiu a galope feito uma louca, na Bragada.
Zuca montava à inglesa, de pernas abertas, subitamente transformada pela sensação de domínio, liberta daquele pudor
que eu lhe conhecia para os menores gestos, imagem viva de uma adolescência audaciosa. Dizia adeus com um galho de mato à guisa de chicotinho,
esporeava o Pigarço com o salto do sapato, disparava súbito aos nossos olhos alarmados, enquanto as crianças aplaudiam: A prima Emerenciana
insistia, aos gritos:
- Zuca! Zuca! Você cai do Pigarço!
Zuca não escutava mais, cabelos ao vento, o raminho agitado na mão em triunfo.
Uma tarde eu fora esperá-la atrás do Pinhalzinho; e quando o cavalo chegou junto a mim, tomei-a nos braços,
beijei-a na boca pela primeira vez.
O soalho do corredor, às vezes, estalava. Ficávamos de ouvido alerta. Os primos teriam vindo espiar? O sangue
subia-me ao rosto, eu experimentava uma agitação confusa. A desconfiança dos primos seria o desmoronar da nossa felicidade oculta, aquele idílio
ansioso fora de horas. Aprendêramos a distinguir os menores ruídos noturnos dentro da casa, estalidos de madeira seca, furtivo perpassar de
camundongos, insônias do sabiá na gaiola da varanda, rolar manso de uma brasa no fogão da cozinha em que o fogo se extinguia. Sabíamos, pela direção
do rumor, qual das crianças se movera na cama, no quarto ao lado. Robertinho tinha mau dormir e dava surdos pontapés na parede. Mariazinha sonhava
em voz alta.
Meu conhecimento do chão era minucioso. Evitava todas as tábuas em falso, todas as asperezas que podiam magoar-me
os joelhos, todos os trechos do corredor em que o madeiramento rangia. Adivinhava no escuro os pontos da parede em que me podia apoiar sem enfiar a
mão em buracos do adobe, que sugeriam sempre a vida obscura de desconhecidos insetos.
O secreto idílio era quase inocente. Se prima Emerenciana me visse arrastar-me, como um lagarto, até o quarto de
Zuca, diria que eu a perdera. Entretanto, o mal não passava de ficarmos abraçados, as bocas unidas num beijo sem fim. A ternura com que ela se
abandonava à minha boca não lhe quebrava castidade. Parecia-me natural que assim sucedesse: seus seios contra o meu peito, as bocas presas, nosso
calor confundido, sem que um instinto mais violento rompesse a perfeição do contato. Tão poderoso quanto o meu desejo contido era o respeito que me
impunha a sua pureza inviolada.
Desde o primeiro encontro noturno que me dissera baixinho, no ouvido:
- Não pense que eu sou boba. Você me beija, mas não é para casar comigo. Não me importo.
Mais de uma vez me preveniu depois: eu não pensasse que a enganava, ela bem sabia que eu não queria casar com
ela...
Por meu lado, nunca pensei em mentir-lhe: nunca lhe falei em casar.
- Você é noivo no Rio, eu bem que sei.
Pensava em Pequetita. Devia sabê-lo por prima Emerenciana.
- Não sou noivo no Rio - informei secamente.
Como explicar-lhe que gostava dela sem cálculos, nem projetos? Eu mesmo não compreendia. Obedecia a um apelo
indefinido, sem amanhã. Só o que eu queria era chegar perto do seu corpo e respirá-lo, nada mais; parecia-me que no dom da sua meiguice o mato do
sertão anônimo estava presente e virginal.
Um dia cogitei: terá tido em Vitória uma aventura? Uma leviandade? Seria ainda "moça boa", como dizia prima
Emerenciana?
Depois que essa dúvida me mordeu, forcei a resistência de Zuca, mas inutilmente. Com um simples olhar de surpresa
ela desarmava o meu gesto. Era por ciúme, um ciúme absurdo, o desejo de ter a prova crua da verdade, que eu insistia contra o seu pudor. Com certeza
outro a possuíra. O noivado mole, sem interesse, explicava tudo: queria encobrir a falta. Por isso aceitara aquele insignificante Tobias Pinto,
fiscal da Câmara em Vitória, que viera ao Pau d’Alho tocando clarineta numa festa religiosa. Aceitara-o como aceitaria outro qualquer que gostasse
dela para casar, o primeiro telegrafista da estação que fosse solteiro, um sitiante arranjado, o Tico oficial de justiça... Eu era tolo: a fazer
tanto romance em torno de uma mocinha de roça que se perdera sem dúvida com um namorado, na Vitória.
A necessidade de saber se Zuca era "moça boa" começou a exasperar-me até a angústia. Passei a ter mau humor, a
evitá-la, a não ir mais à noite ao quarto a conversar pouco na sala de jantar. De que valia tudo aquilo?
Sem dúvida eu gostava dela. Mas para quê?
O enxoval da esperada criança ia avançando. Zuca multiplicava as faixas, os cueiros, os agasalhos de tricô, os
sapatinhos de lã, gavetas e gavetas de misteriosas roupinhas enfeitadas de fitas coloridas, enquanto prima Emerenciana, na sua gordura pejada,
movia-se teimosa pelos quatro cantos da casa nos cuidados incessantes pela vida da fazenda.
Tobias Pinto escreveu um cartão postal avisando que vinha ao Pau d’Alho no domingo seguinte para marcar o dia do
casamento. Fora promovido a fiscal de primeira classe.
Zuca partiu a fim de esperar o noivo.
Na sala de jantar da fazenda a cesta de costura era uma coisa morta que evocava tristemente os dedos ligeiros.
Lá fora, as chuvas fortes tinham caído. Pigarço errava molhado no pasto deserto, e o sincerro, tintinabulando na
noite cortada de relâmpagos, tornava pungente a solidão.
(Cabocla, capítulo XVI, 1931.)
TIA CLARICE
Tia Clarice viera surpreender-me naquele tranqüilo apartamento em que eu residia, num segundo andar da rua Silva
Manuel (que saudades da rua Silva Manuel!) e onde, há um mês, eu preparava afobadamente o meu terceiro concurso para secretário de legação.
- Clarimundo, você não é apenas meu sobrinho, é meu amigo. O assunto que nos traz aqui é da máxima importância para
mim, e talvez para você próprio...
Enquanto ela falava, a inseparável Floripes, sua amiga íntima, solteirona dedicada a obras de caridade e a intrigas
mundanas, passeava a ponta do nariz pelas imensas cartas geográficas espalhadas nas paredes.
- Clarimundo, seu desejo é ser secretário de legação, não é verdade?
Fiz um gesto desencorajado: os meus dois concursos anteriores tinham sido tão desastrosos, provavam de tal maneira
a insuficiência dos meus recursos, que quando alguém me falava no assunto eu sentia, de antemão, a insanidade de tantos esforços confusos.
- Clarimundo, vou pôr a prova a sua discrição. Não se esqueça da importância que tem a discrição na diplomacia.
Dei um suspiro fundo. Tia Clarice encarou-me com o lornhão, como se precisasse de um vidro de aumento para
surpreender na minha fisionomia os pensamentos mais recônditos.
- Pois bem, tenho um favor a pedir-lhe.
Interrompeu-se, aproximou ainda mais o lornhão do meu rosto e concluiu:
- Você vai ser o meu braço direito.
Floripes evoluía pelo gabinete. Comecei a ficar inquieto quando a vi ler uma carta em cima da mesa .
- Mas afinal, minha tia?
- Preciso de você como secretario de um club secreto.
Meu espanto foi maior. Tornou a aplicar-me o lornhão, sorrindo:
- Um clube de senhoras.
O caso era simples: as senhoras do clube precisavam de um rapaz que, além de qualidades próprias, sobretudo de
discrição, fosse relacionado na imprensa.
- Na imprensa? Mas em suma, que espécie de clube é esse?
Deu-me com o indicador um golpezinho terno na ponta do nariz .
-Mistério!
Era muito boa! Eu ia ser secretário de um clube misterioso.
- O segredo é tão grande que o próprio secretário, nos primeiros tempos, deve ignorar para que serve o clube.
Cruzei os braços, atônito. Voltei-me para Floripes, a fim de pedir-lhe o socorro de um esclarecimento; mas Floripes,
colada a um daqueles grandes mapas da parede, seguia com um dedo o território do Alasca e atravessava o estreito de Bhering.
Não houve meio de minha tia acrescentar mais nada.
- Primeiramente, aceite. Depois, irá vendo do que se trata. Por enquanto, façamos um pacto. Você será o homem da
nossa confiança. Aceita?
Entendeu-me ambas as mãos. Aceitei-as, aceitando o pacto. Era divertido. Ela apertou-me os dedos com força e
lançou-me um olhar autoritário:
- Segredo absoluto? Dedicação absoluta?
Hesitei de repente, recuando. A troco de quê, francamente, ia eu meter-me naquele mistério feminino? Fiz um gesto
mostrando os livros, os mapas, o quadro-negro... Cocei a cabeça desanimado, franzi uma careta de choro...
- O concurso? - perguntou ela adivinhando meu temor de uma nova reprovação. - Ora, não se incomode. Não é assim com
umas leituras de última hora que você há de adiantar muito.
Floripes chegara-se a nós e olhava-me com malícia.
- Se ele soubesse, hein, Clarice, quem vai fazer parte do clube...
- Sssssiu... - atalhou tia Clarice.
Não havia dúvida: um grande mistério entrara-me pela casa a dentro.
Apontando, por cima dos telhados, o panorama dos bairros montanhosos, minha tia abrangeu num gesto largo,
imaginariamente, a cidade inteira:
- Clarimundo, viva o Clube das Esposas Enganadas!
Minha perplexidade agora não tinha limites. Tia Clarice era viúva, Floripes era solteira... Por que Clube das
Esposas Enganadas? Tratar-se-ia de uma organização de espionagem ?
Floripes, metediça, embarafustara pelo meu quarto. Sumira lá dentro, mexendo em tudo, lendo as dedicatórias dos
retratos... Voltou logo, com uma idéia:
- Clarice, o clube aqui ficaria otimamente instalado.
Minha tia bateu na testa, iluminada.
- Clarimundo, você quer ser bonzinho duas vezes? Deixe que as nossas reuniões, pelo menos as primeiras, se realizem
aqui na sua casa.
Fiquei estarrecido. E meus estudos? Minha tranqüilidade? Depois, um mundo de senhoras a entrar pela casa a dentro,
a falar, a discutir - céus! Minha tia chegaria a exigir um sacrifício como aquele? Balbuciei uma esquivança...
- É preciso - continuou ela com animação - que ninguém saiba onde nos reunimos. Senão, tudo cairá por terra. Aqui,
sim, estaremos a abrigo de todas as curiosidades. Pois você deve compreender que vamos ser objeto das mais perigosas curiosidades.
Fiquei um instante silencioso, debatendo-me nas últimas dúvidas.
- Mas afinal, minha tia, quantas são ao todo as senhoras que compõem o clube?
- Por enquanto, quatro: Floripes, eu, Marieta Borba e Lúcia Moreira. Amigas íntimas, da mais inteira confiança. Mas
em nossas casas, você sabe, há visitas, há indiscretos...
- Até o fim do mês, - ajuntou Floripes, - devemos ser umas quinze. Depende.
- Quinze mulheres aqui dentro! - exclamei.
- Isso perturba a sua imaginação? - perguntou Floripes.
- Não perturba a minha imaginação, mas perturba a proprietária da casa.
- É simples, - tornou tia Clarice, - se for necessário dar explicações à proprietária, você dirá que se trata de
uma associação de caridade que estamos organizando.
- Boa desculpa! Ela não acreditará!
- Pois é preciso que acredite rematou minha tia, com o ar de quem dá por findo um assunto.
A bisbilhotice de Floripes não pressagiava nada de bom. Com certeza, por ocasião das reuniões, e principalmente na
minha ausência, abriria as gavetas, trataria de surpreender particularidades da minha vida íntima. Tinha um ar afuroante. Seria ela o detetive do
clube?
(Clube das esposas enganadas, capítulo I, 1933.) |