CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA -
Ribeiro Couto
Rui Ribeiro Couto (3)
Uma análise da obra de Rui Ribeiro Couto foi feita em
2006 pelo jornalista e crítico literário Alessandro Atanes, em sua coluna Porto Literário, no site
PortoGente, a propósito do lançamento naquele ano de obra com poemas deste santista
ilustre:
RIBEIRO COUTO
O embaixador melancólico e a cidade que se repete em cinza
Texto publicado em 18 de dezembro de 2006 - 01h02
por Alessandro Atanes (*)
Dentro da coleção Melhores Poemas, a editora Global traz de volta às estantes
das livrarias os poemas de Ribeiro Couto, reunidos pelo pesquisador José Almino, da Fundação Casa de Rui Barbosa, responsável também pela
apresentação da obra do poeta, contista e embaixador nascido em Santos.
Apesar da temática, da ironia e da coloquialidade modernistas, José Almino destaca que
Couto preferiu o lirismo das paisagens à poética do movimento deflagrado pela Semana de Arte Moderna de 1922: "o
poema-piada, a celebração da vida urbana, da velocidade, uma auto-satisfacão ufanista diante da cultura e da linguagem popular, vividas por alguns
modernos como fonte de inspiração e matéria-prima privilegiada para a criação literária".
Esse lirismo de Ribeiro Couto se desenrola por meio de duas imagens principais: a
chuva e os dias cinzentos, que garantem o tom de melancolia não importa em qual fase de produção desse poeta nascido nesta cidade de muita garoa,
chuvas de verão e dias acinzentados, uma melancolia que se repete em cada cidade que o poeta conhece, tanto como viajante sentimental quanto
embaixador, como vemos em Invocação do Porto Natal:
O porto em que nasci! Era eu menino
Quando uma vez me viste, olhos no mar,
Pedir ao mar incerto o meu destino.
O mar ouviu-me. Meu destino é errar.
Por onde eu vá, seguindo esse destino,
Entre eu e minha mãe existe o mar.
Enfim, se o barco em que eu voltar um dia
Deva ir ao fundo, que suceda tal
Em frente ao porto a que eu tão bem queria.
E que meu corpo inerte, no balanço
Da onda encontrando o embalo maternal,
Possa no mesmo porto achar descanso.
Essa é a melancolia que Couto leva a qualquer outra cidade ou país objeto de seus
poemas. Vejamos:
Recife: "Não és Veneza, ingênuo Recife dos rios
inquietos/Não és Veneza, nem tuas casas (oh, quantas cores!)".
Rio de Janeiro: "E no peito de todos um confuso
entusiasmo de felicidade".
São Paulo: "Pensa agora um momento naquele pobre
padre,/Há quatrocentos anos, nestas mesmas colinas,/Sozinho, perdido entre as ínvias florestas, /Iniciando em Deus os bugres desconfiados/E fundando
o espírito de tudo que vês."
São Vicente: "Agora, nas praias que os coqueiros ainda
enfeitam,/Os bangalôs dos engenheiros ingleses/Dormem no calor da tarde."
Suíça: "Afonso, ela á tão calma e branca, esta
Suíça!/Dá vontade de ser pastor nas suas montanhas./No entanto eu sei que no teu peito (e no meu peito)/Sua mão de enfermeira é fria, é fria."
Nova Iorque: "Os buildings, à noite, são altos de
morro,/Janelas sem sono de nações perdidas,/Queimando exiladas nas negras alturas."
França: "É domingo de sol neste burgo de França./
Século XIII. O carrilhão chamando à missa."
Nem falamos da série Chão antigo, com poemas sobre terras portuguesas:
Alentejo: "É tudo chuva, é tudo rio./Nadando vão outros
rebanhos./Fidalgos do reino algarvio/Oferecem barcos estranhos./Aquele é o Infante Dom Henrique,/Pelo chapéu o reconhece:/Em Sagres, no rochedo a
pique,/Interroga o mar que escurece."
Um dos mais conceituados críticos literários do Brasil, Wilson Martins, escreveu que a
sensibilidade de Couto foi formada, desde o início, "entre a saudade da casa paterna e a solicitação do mundo".
É assim, entre o porto natal e os portos da vida, que Ribeiro Couto canta sua
melancolia na estrofe final de Lamentação do Caiçara:
O bem esperado ainda hoje o não tenho,
Mas pelo mundo andei e até me perdi.
Agora, a um outro cais é que cismar eu venho
E fica noutro mar o porto em que nasci.
Irão até ele estas ondas que passam ligeiras?
Levarão meu corpo a uma praia com palmeiras?
Se levarem, posso morrer aqui.
A coletânea reúne poemas das obras O jardim das
confidências (1915-1919), Poemetos de ternura e de melancolia (1919-1922), Um homem na multidão (1921-1924), Canções de amor
(1922-1925), Província (1926-1928), Noroeste e outros poemas do Brasil (1926-1932), Cancioneiro de Dom Afonso (1932-1939),
Cancioneiro do ausente (1932-1943), Entre mar e rio (1943-1946) e Longe (poemas reunidos em 1961).
Referências:
Ribeiro Couto. Coleção
Melhores Poemas. Seleção de José Almino. São Paulo: Global, 2002.
(*)
Alessandro Atanes é jornalista, servidor
público do município de Cubatão e mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo. |
O mesmo jornalista já havia escrito, meses antes,
em sua coluna no mesmo site:
PORTO E MEMÓRIA
Uma infância em torno do porto
Texto publicado em 07 de agosto de 2006 - 23h48
por Alessandro Atanes (*)
A memória é matéria fugidia, sujeita à ação do tempo e às distorções daquele que
lembra. Mesmo assim, o uso do registro pessoal não é descartado pela pesquisa nas ciências sociais. A História de Vida e a História Oral, por
exemplo, demonstram a utilização do depoimento e da trajetória pessoal como formadores do discurso científico histórico.
Apesar de estarem sujeitas aos problemas indicados acima, as duas modalidades de
pesquisa, alerta Teresa Maria Frota Haguette em Metodologias Qualitativas na Sociologia, são ferramentas de pesquisa utilizadas com objetivos
específicos, principalmente quando o pesquisador se depara com um campo de estudos já bem desbravado. A História de Vida e a História Oral podem
abrir portas da pesquisa, dando novos contornos ao objeto, ou definindo novas hipóteses e questões oferecidas pela confrontação de seus conteúdos
com os documentos mais usuais.
As duas ferramentas valem para o historiador ou outro cientista social se,
principalmente, forem tomadas em conjunto, para que visões parciais de um determinado depoimento ou biografia possam ser confrontados com o "conjunto
de depoimentos que informam o todo de um determinado projeto de pesquisa".
Isso tudo é para apresentar o poema "Santos", de Rui Ribeiro Couto (1898-1963),
poeta santista, jornalista, romancista, diplomata, que utiliza a memória para poetizar sua infância e ligá-la ao cotidiano do porto. Se a História
Oral e a História de Vida as distorções devem ser evitadas, já a poesia conta com o deságio da memória para oferecer suas imagens (senão seríamos
todos Funes, o Memorioso, personagem de Jorge Luis Borges que para lembrar tudo que fez em um determinado dia precisava de um outro dia
inteiro).
Primeiro, vamos acompanhar a primeira parte do poema:
"Nasci junto do porto, ouvindo o barulho dos
embarques
Os pesados carretões de café
Sacudiam as ruas, faziam tremer o meu berço.
Cresci junto do porto, vendo a azáfama dos embarques.
O apito triste dos cargueiros que partiam
Deixava longas ressonâncias na minha rua.
Brinquei de pegador entre vagões das docas,
Os grãos de café, perdidos no lajedo,
Eram pedrinhas que eu atirava noutros meninos.
As grades de ferro dos armazéns, fechados à noite,
Faziam sonhar (tantas mercadorias!)
E me ensinavam a poesia do comércio.
Sou bem teu filho, ó, cidade marítima,
Tenho no sangue o instinto da partida,
O amor dos estrangeiros e das nações,
Ó, não me esqueças nunca, ó, cidade marítima,
Que eu te trago comigo por todos os climas
E o cheiro do café me dá tua presença."
A primeira lembrança do narrador, dos carretões de café que faziam seu berço tremer,
ou são fruto da imaginação (a distorção a favor da força da poesia) ou do relato de um adulto recuperado pela memória do poeta. É uma memória da
memória, ou memória ao quadrado, que multiplica a sensibilidade da forma poética.
Logo a seguir, são os versos que remetem às brincadeiras de rua, a brincadeira de
pegador entre os vagões, os grãos de café para tacar como "pedrinhas" nos outros meninos. Uma infância nas margens do porto bem diferente daquela
descrita por Plínio Marcos em Querô, uma reportagem maldita (leia aqui O
porto dos pequenos expedientes).
Já as duas estrofes finais do poema de Ribeiro Couto revelam a
figura do diplomata que tem no sangue o "amor dos estrangeiros e das nações", figura formada desde a infância com os apitos dos cargueiros que
deixavam ressonâncias pelas ruas e acabaram por alimentar o "instinto da partida", que, por sua vez, não consegue deixar para trás a cidade natal
lembrada a cada gole de café. Na verdade, o título de outro poema do autor, desmente a expressão cidade natal. Rui Ribeiro Couto não tem
cidade natal, tem porto natal.
Referências:
O poema "Santos" foi publicado em:
Rui Ribeiro
Couto. Noroeste e Outros Poemas do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933.
O trecho recortado acima do poema "Santos" e outros poemas de Rui Ribeiro Couto
podem ser lidos em Novo Milênio, do colega colunista Carlos Pimentel. Outro site, o
Portocidade também traz trechos do poema e obras de outros poetas que trataram do porto, mas
as páginas com as reproduções não abriram até a data desta atualização.
Teresa Maria
Frota Haguette. Metodologias Qualitativas na Sociologia. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1990.
O conto "Funes, o memorioso" é de:
Jorge Luis
Borges. Artifícios. In: Obras Completas I. São Paulo: Editora Globo, 1998.
Outros artigos em Porto Literário sobre memória e história:
A
memória e a história em Navios Iluminados, de 30 de maio de 2006; e
A
orelha do livro e um prêmio da Academia, de 23 de maio de 2006
(*)
Alessandro Atanes é jornalista, servidor
público do município de Cubatão e mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo. |
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