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[EDITORIAL - página A-2]:
Pagu, uma árdua saga de utopias
Não são freqüentes as
ocasiões em que o principal editorial de A Tribuna deixa de focalizar os assuntos mais importantes do momento, em nossa região, no País e no
mundo, para concentrar-se em alguma personalidade específica, e falar de sua vida e sua obra. Hoje é um desses dias excepcionais, que o jornal julga
válido servir para uma reflexão especial sobre essa notável figura de mulher, cujo centenário de nascimento transcorre neste 9 de junho.
A deferência se justifica plenamente, seja em razão da destacada presença de Patrícia Galvão, a
Pagu, no ativismo político, na literatura, no teatro, no jornalismo, e até na vanguarda do processo de liberação feminina e dos costumes, no
Brasil, durante um largo período do século passado, seja também pela estreita ligação que ela manteve com A Tribuna, e com as cidades de
Santos e São Vicente, onde morou, e que tanto amou.
Relembrar a vida de Pagu é rever uma extraordinária saga de aventuras, militância, coragem,
entrega, equívocos e sofrimento. E generosidade, também, ou acima de tudo. Pois quem a conheceu de perto não hesita em dizer que, no fundo, foi a
sua generosidade que desencadeou as demais situações e sentimentos. Ela queria um mundo melhor, mais justo e mais igualitário, sem as misérias que
desde sempre o caracterizam. Esse desejo converteu-se num ideal, e foi este que lhe forjou a ideologia e a levou à arena partidária, exatamente em
sua área mais radical, mais intransigente e, igualmente, a mais artificial de todas.
Acreditou no comunismo como instrumento de transformação do mundo por aquilo que o comunismo
prometia, padeceu horrores com ele, por seu engajamento numa causa inglória, porém, não tardou a convencer-se de que, se a comunhão universal
continuava consistente como objetivo, aquele não era o caminho para alcançá-lo. Desiludida, cansada, cheia de amargura, recolheu as armas.
Mas as feridas nunca se fecharam: permaneceram como testemunho imorredouro de sua guerra santa
contra os moinhos de vento da espoliação, da opressão, da exclusão e dos preconceitos, de todas as formas. Em síntese, uma grande utopia, mas, não
fossem as utopias, não fossem as pessoas que enxergam mais longe, que erram aqui e acertam ali, que tropeçam e se levantam, a humanidade não teria
chegado ao ponto onde chegou.
Patrícia Galvão foi uma mulher à frente de seu tempo. Buscava a inovação e repudiava a mesmice.
Por isso, quando abandonou a atividade política passou a priorizar a cultura, da qual em verdade nunca se afastara. Foi para o reino das coisas
novas que ela se dirigiu. Assim fez na literatura, como romancista e contista, assim também no teatro, que considerava a mais relevante das
manifestações artísticas, por retratar com maior fidelidade os sentimentos humanos.
Então, nesta Cidade, ela liderou movimento para dotá-la de uma sala de espetáculos, e organizou
grupos de amadores que apresentaram peças memoráveis, muitas inéditas no Brasil e de um alto nível que de lá para cá jamais voltou a ocorrer entre
nós.
Era uma época, aquela, do final dos anos 50 ao início dos 60, de grande efervescência cultural em
Santos. Cacilda Becker saiu daqui para as ribaltas mais celebradas, e a ela se seguiram tantos outros que depois assumiram posições de prestígio no
teatro nacional, Plínio Marcos inclusive. Na literatura, Narciso de Andrade e
Roldão Mendes Rosa faziam poesia de primeiríssima linha, rompendo velhos cânones do gênero. Lúcio Menezes brilhava com
seus pincéis e, no cinema, a agitação ficava por conta de Maurice Légeard, outro espírito indomado, à cuja volta
se reuniam os cinéfilos santistas. No meio deles, até ser vencida pela doença, Patrícia Galvão era uma espécie de referência, de rumo. Ela sabia das
coisas. Ela conhecia o caminho.
A memória de Pagu merece ser evocada, sobretudo porque, em não poucos aspectos, e a
despeito de eventuais restrições que lhe pudessem ser feitas no plano raso do comportamento social, ela sem dúvida serve de exemplo. Perenizou-se
como paradigma de conduta contra a acomodação, a intolerância, a covardia, a mesquinhez e o oportunismo, e a favor das liberdades e da dignidade
humana. O reconhecimento veio tarde, mas veio. Hoje, a visão que se tem dela é de uma mulher admirável, que cumpriu um papel desbravador, não em
proveito individual, mas coletivo. Parte desse papel foi exercido nestas páginas, e A Tribuna tem muito orgulho disso.
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Patrícia
Vera Leon
Editora de Cultura
Ela era tão plural que nasceu Patrícia, virou Pagu e entre uma persona e outra
assumiu várias. Foi Patsy, Mara Lobo, Arel, Gim e uma inocente Miss Boa. Faces reveladas de Patrícia Galvão,
perfis que apenas deixam entrever uma natureza que era um constante vir a ser, inquietação que lhe valeu um Olimpo na terra e, ao mesmo tempo,
negou-lhe a paz.
Aliás, que palavra é essa, que permite a cada um vesti-la segundo seus sonhos e princípios, e de
fora se cobra dela um senso comum? Como se pudéssemos ter, todos, o mesmo conceito de paz.
Ouso dizer que Patrícia já nasceu inquieta. Fico curiosa para saber como era ela no berço, com o
que se distraía naquelas horas intermináveis em que os bebês brincam com os dedinhos? Berrava de fome, tinha medo do escuro ou choramingava por
colo? Olhando a trajetória da sua vida curta, sua braveza e destemor parecem dizer que nunca precisou de colo. Mas o olhar quase sempre triste e a
vida abreviada por um câncer fazem pensar que lhe faltou um ninho onde não precisasse carregar um rótulo, uma bandeira.
Caminhou cedo? Apostaria que sim, porque vasto era o mundo e seus pés precisavam conhecê-lo,
atravessar fronteiras e derrubar portas por onde ela pudesse passar qual uma inspiração de Florbela Espanca, a poetisa portuguesa de alma igualmente
tumultuada:
"Porque
o meu reino fica para além...
Porque trago no olhar os vastos céus
E os oiros e clarões são todos meus!
Porque eu sou Eu e porque Eu sou
Alguém".
Quando Pagu nasceu, o mundo vinha de uma convulsão. Escravos soltavam-se das correntes
porque sua liberdade havia, enfim, sido proclamada. A própria República gritava sua independência e os movimentos modernistas sugeriam que mais nada
seria como antes. Foi neste pulsar que nasceu a menina, aos 9 de junho, com suas antenas mercurianas a captar que seu reino sempre seria para além.
Fez a Escola Normal, em São Paulo, mas olhando daqui, no viés do tempo, nada parece ter sido muito
normal. Se ainda não é fácil (algum dia será?) ser mulher hoje, o que terá sido, há 100 anos, para Patrícia, namorar aos 11 anos, deixar pai e mãe
quando as asas nem tinham plumagem, casar com quem não queria, amar quem não devia (quem disse?)?
E, extremo gesto, abandonar seu pedaço de gente, sua metade adorada, saudade perene, filho que
nenhum dos ídolos de Patrícia tomou o lugar? Todas pagamos um preço por nossos ventres que alimentam vidas. É da vida que assim seja, que coloquemos
de pé a cria, mas ela deixa o concreto, o ser humano parido, e vai para o reino além, embaixatriz da Antropofagia. O que mais, antropofagicamente,
foi "comido" de Patrícia? Duvido que alguém responda. Só ela soube das peles que perdeu.
Nesses tempos de celebração, muito material tem passado por nossas mãos, aqui no jornal. Fotos de
toda uma vida. Seus escritos, seus parceiros, suas apostas, suas perdas, e tantas conquistas. Nesta parede em que sua história desfila em branco e
preto, me chama a atenção a boca de Patrícia, os cantos caídos, como de uma menina prestes a chorar. Um beicinho. Tingido de vermelho, no batom da
também ela Pasionaria. Mas um beicinho, daqueles que a gente faz quando os reinos são assustadores. |