O Padrão de Lorena exibe um painel de
azulejos mostrando as tropas de mulas que trafegavam pela região no final do século XVIII. Ao lado, uma ninfa grega, de gosto duvidoso, colocada ali
pelo prefeito de Cubatão, Ney Eduardo Serra
Foto de João Noronha/AE, e legenda,
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História revisitada entre Serra e mar
A Calçada do Lorena, recuperada pela
Sabesp, estará aberta para o público na próxima quarta-feira
Lígia Kosin
"O pior não é caminhar. É
trepar de pés e mãos, aferrado às raízes das árvores e por entre quebradas e despenhadeiros tais, que confesso que a primeira vez que passei por
aqui, me tremeram as carnes, olhando para baixo". Os paulistanos acostumados a descer e
subir a serra do Mar nos fins-de-semana dificilmente relacionariam este relato ao trajeto que fazem quase sem perceber, vindo de Cubatão. Mas é
exatamente esta a viagem que o padre Simão de Vasconcelos descreveu no século XVI.
Viagem, a bem da verdade, é eufemismo. O que acontecia na época era uma
verdadeira escalada pelos 800 metros de serra, através de trilhas em zigue-zague, abertas pelos índios. O martírio só acabou no final do século
XVIIII, quando a produção de açúcar do Interior exigiu a construção de uma estrada para permitir a exportação dos produtos pelo porto de Santos.
D. Maria I, "a Louca", autorizou e o Real Corpo de Engenheiros de Lisboa realizou uma
obra de engenharia surpreendente para a época: a Calçada do Lorena, inaugurada em 1792. E são dois trechos desta estrada, inteiramente restaurados
depois de quase oito décadas de abandono, que a Eletropaulo entrega para visitação pública na próxima quarta-feira.
Batizada em homenagem a Bernardo de Lorena, então governador da Capitania de São
Paulo, a Calçada do Lorena foi a primeira via pavimentada do país, larga o suficiente para permitir o cruzamento das tropas de mulas que subiam e
desciam a serra em mais de 180 curvas. Relatos da época indicam uma circulação de até 500 mulas por dia. Elas faziam o percurso de 3,5 quilômetros
em apenas cinco horas, algo impensável alguns anos antes.
A Calçada do Lorena foi também a primeira estrada a ter a construção precedida por um
levantamento topográfico e hidrográfico. "O trajeto não corta um único córrego e o sistema de escoamento de água é perfeito", destaca Paula Pilla,
arquiteta do Departamento de Patrimônio Histórico da Eletropaulo e uma das coordenadoras d projeto de restauração.
As partes restauradas correspondem a dois trechos que interceptam a Estrada Velha de
Santos, ou Caminho do Mar, que fica na área de propriedade da Eletropaulo, dentro do Parque Estadual Caminho do Mar. O primeiro trecho, de 200
metros, começa no Belvedere Circular - um mirante construído à beira da estrada Velha na década de 20 - e vai até a bica d'água, também à margem da
rodovia. O segundo trecho, com 180 metros de extensão, começa na bica e desce numa seqüência surpreendente de curvas sinuosas até o Padrão do
Lorena, um portal de pedra construído em homenagem ao realizador da estrada.
A Divisão de Patrimônio Histórico da Eletropaulo espera agora recursos da ordem de Cr$
4 milhões para restaurar o trecho de 900 metros que liga o alto da serra ao Belvedere. A quarta parte da estrada, do Padrão do Lorena até Cubatão,
não deverá ser restaurada, porque está em áreas da Petrobrás.
A Calçada do Lorena é uma atração à parte para quem quer conhecer um trecho do Parque
Estadual da Serra do Mar e aprender um pouco sobre a história das estradas que ligam São Paulo ao litoral. O passeio começa no Pouso do
Paranapiacaba, no km 42 da Estrada Velha de Santos, a partir de Riacho Grande, onde o visitante deve deixar o carro.
Os oito quilômetros seguintes, fechados ao tráfego, mas abertos em qualquer dia da
semana aos pedestres, ciclistas e skatistas, revelam uma série de construções erguidas pelo governador Washington Luís no centenário da
Independência, em 1922, quando a Estrada Velha de Santos foi modernizada e ficou com o trajeto atual. Abandonados durante décadas, eles foram todos
restaurados em 1982, pelo Condephaat.
Utilizado como parada para os fordecos que subiam do litoral, o Pouso fica exatamente
no ponto da serra onde se avista, pela primeira vez, o mar - aliás, o significado exato do termo Paranapiacaba. Uma enorme casa de pedras, o
pouso é comumente confundido como o local onde a marquesa de Santos se encontrava com d. Pedro I, o que jamais poderia ter acontecido em 1922.
Algumas centenas de metros abaixo, outra parada para os carros, no mesmo estilo: o
Rancho da Maioridade - que recebeu este nome em alusão ao episódio da maioridade de d. Pedro II. Logo adiante está o Padrão do Lorena, com um painel
de azulejos mostrando as tropas de mulas que subiam a serra no século XVIII. Já em Cubatão, o Pontilhão da Raiz da Serra, isolado dentro da área que
pertence à Petrobrás, e o Cruzeiro Quinhentista, são dois outros marcos da modernização da estrada.
Para quem se animar, porém, um aviso: prepare-se para encarar
algumas aquisições no parque, de gosto altamente duvidoso. Dentro do Parque Estadual, criado em 1977 e de responsabilidade do governo do Estado, o
prefeito de Cubatão, Ney Eduardo Serra, fundou no ano passado o Parque Ecológico Caminho do Mar na área que fica sob sua jurisdição. E, ali, está
fazendo tudo o que não poderia numa área tombada.
Ao lado dos monumentos históricos erguidos por Washington Luís, o parque está
recebendo quiosques de palha, churrasqueira, play-grounds e estátuas de ninfas gregas, anjos barrocos e leões romanos. Só isso já é motivo
para arrepiar os cabelos de qualquer ambientalista. Mas tem mais.
Para construir um play-ground ao lado do Padrão do Lorena, o prefeito cimentou
as ruínas do que deveria ter sido uma parada ou o acampamento dos trabalhadores que fizeram a Calçada no século XVIII. Algumas centenas de metros
abaixo, descendo a Estrada Velha, ele cimentou uma piscina natural que havia à margem da rodovia, pintando as paredes externas com motivos infantis.
Nem a flora natural da área escapou. Ao longo da Calçada, o prefeito arrancou as
marias-sem-vergonha, naturais do lugar, e mandou plantar hortênsias - uma flor tipicamente européia e que está longe de fazer parte da flora
tropical. Até agora, a resistência tem sido feita apenas no bate-boca. Os funcionários da Prefeitura de Cubatão plantam as mudas, os da Eletropaulo
arrancam.
O secretário de Meio-Ambiente de Cubatão, Pedro Tosta de Sá, diz que todas as
construções realizadas na área do parque foram aprovadas nas reuniões com representantes da Eletropaulo, do Departamento de Estradas de Rodagem
(DER), Condephaat e Secretaria Estadual do Meio-Ambiente. E afirma que as hortênsias foram escolhidas por serem plantas que dão sustentação ao solo.
Embora nem os diversos órgãos saibam exatamente a quem compete a fiscalização da área
às margens da Estrada Velha, uma coisa é certa. É terreno tombado. E o Condephaat, órgão que zela pelo tombamento, não deu qualquer autorização para
as obras, segundo o diretor da Divisão Técnica do órgão, Flávio Moraes. Ele prometeu mandar um técnico do órgão para uma vistoria no local.
A Calçada do Lorena, projetada por
engenheiros portugueses no final do século XVIII, foi a primeira estrada pavimentada do Brasil
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O Rancho da Maioridade é outro ponto de
parada obrigatória para quem se dispõe a fazer um passeio pelos velhos caminhos da serra do Mar
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A TRILHA DA HISTÓRIA - A primeira via
pavimentada a subir a serra, usada até o início do século (N.E.: século XX),
tinha 3,4 quilômetros de extensão e mais de 180 curvas
Foto de João Noronha/AE, e legenda,
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