"...em seguida, abaixando a voz, acrescentou: 'Mas passem por baixo da ponte... por
ali; nas canoas, estão os abolicionistas, vão com eles...'. Adão não resistiu e caiu de joelhos..."
Imagem: J. Wasth Rodrigues, publicada com a matéria
O sargento abolicionista da ponte do Casqueiro
Emocionante episódio da Campanha da Abolição, quando da fuga de trezentos negros
chefiados por Pai Adão
A história não conservou o nome de um sargento da
polícia, que muitos serviços prestou à campanha da Abolição, em Santos, no anonimato de quem, pela farda que envergava, tinha o dever de condená-la
e fazer-lhe oposição. Sua lembrança, portanto, é apenas ideal, mas os seus feitos principais vivem nas reminiscências da cidade e na gratidão dos
contemporâneos.
Há muitos casos ocorridos com o sargento, mas este é um dos mais pitorescos e
interessantes.
De S. Paulo, naquele ano de 1883, descera a Santos um emissário da polícia para dar
aviso da aproximação de uma grande leva de negros fugidos, ao delegado de Santos, para que este providenciasse a prisão dos fugitivos e sua
reentrega aos senhores do interior.
As escoltas de Jundiaí e Campinas diziam ser mais de quinhentos escravos, exagerando o
número, certamente, armados de foice, que obedeciam a um cativo hercúleo, de nome Adão. A polícia de Santos, cumprindo as ordens recebidas, tomou
suas medidas, e, além dos vigias escalados para Piassaguera, Quilombo e outras regiões, mandou uma forte escolta, sob o comando do nosso sargento, a
guarnecer a cabeceira da ponte do Casqueiro, com ordem de trancar a qualquer custo aquela passagem. As ordens eram terminantes: nenhum escravo
deverá transpor aquela ponte! E, assim, lá se foi para o Casqueiro a escolta de trinta homens, armados de carabinas de guerra.
Realmente, depois de longos dias de penosa marcha, por impérvias florestas e terríveis
grotões e sangradouros, serras ásperas, trancadas, agressivas, homens, mulheres, velhos e crianças, famintos, cansados, fracos, em farrapos,
trezentos escravos, míseros componentes da caravana fugitiva, sob o comando de Adão, ainda trazendo no ouvido o tropel dos perseguidores de serra
acima, surgiram na base do Cubatão, ao princípio da velha estrada que corria, para a terra livre de Santos, onde estava o
Jabaquara. Qual outro Moisés, o negro Adão caminhava à frente dos canhemboras, decidido a tudo, em defesa de "sua
gente".
Aproximavam-se os míseros da ponte do Casqueiro. Um estafeta fora mandado à frente, e
voltava ao Adão, com a triste nova de que a ponte estava guarnecida de um batalhão de polícia... armado até os dentes.
Pobre Adão! Que desconsolo apoderou-se dele; dele que tinha sido forte até ali, quando
a liberdade já sorria, a todos, após tantos e tão longos dias de fome e caminhada, após tantas mortes pela agrura do percurso. Pela primeira vez, os
companheiros viram nele uma lágrima. Aquelas crianças... aquelas mães... aqueles filhos...
Seria o que Deus quisesse, pensou Adão, e a coluna fugitiva continuou sua marcha
estropiada, arrastada, em demanda da ponte.
Ali estava agora, a algumas dezenas de metros do bando, o Casqueiro, e sobre ele,
aberta na direção de Santos, a Canaã, a ponte da Esperança... mas lá estavam também, inexoráveis, os trinta homens da polícia, armados e embalados.
O Adão surgiu na cabeceira da ponte. Vinha caindo a noite, e uns assobios estranhos
soavam lá de baixo, da ribanceira calma e profundamente silenciosa do rio.
A voz do sargento comandante estrugiu no silêncio:
- Soldados! Preparar!
O Adão viu-o encaminhar-se sozinho, em sua direção, e tremia de emoção; viu-o chegar à
distância de vinte metros e gritar novamente, para ele e sua gente:
- Aqui nesta ponte ninguém passa! São ordens! Ninguém passa! - mas, em seguida,
abaixando a voz, acrescentou:
- Mas passem por baixo dela... por ali, nas canoas, estão os abolicionistas... vão com
eles... vão com Deus!...
O Adão não resistiu, caiu de joelhos e chorou pela segunda vez:
- Deus seja louvado! - disse o negro, levantando-se e voltando para os seus.
De fato, disfarçados em pescadores, lá estavam, no rio, dezenas de abolicionistas com
suas canoas, prontos a levar os fugitivos para a terra da liberdade, para a Canaã santista, e eram eles que assobiavam de longe para os canhemboras
do Adão.
O sargento de polícia cumprira o seu dever, ao pé da letra; pela ponte, em verdade,
não passara ninguém. Não desrespeitara as ordens superiores, não desonrara sua farda e, nessa mesma noite, o "Jabaquara", o quilombo santista,
contava mais trezentos moradores, livres, inteiramente livres, como os seus libertadores. |