Imagem: reprodução parcial da matéria original
Centrifugismo
urbano
Um grande bairro em formação - A obra da Light - A descentralização das indústrias e o
aproveitamento das forças vivas da natureza - Perigos do centripetismo urbano - O testemunho de Saint-Hilaire - Oportunas observações de Devas
Stanton sobre o urbanismo intensivo - O recuo da povoação vicentina
O sopé da serra do Paranapiacaba, em sua extensão imensurável,
é uma das maravilhas do território paulista, que a febre do urbanismo intensivo e a especialização agrícola do café vedaram, por longo tempo, aos
olhos da gente mais empreendedora do país.
Apenas os agricultores de bananas para lá convergiram, empenhados em descobrir os melhores tratos
de terra para o cultivo da excelente e rendosa musácea: e como essa lavoura, até bem pouco, esteve relegada para um grupo de homens laboriosos, mas
não equiparados socialmente aos dos poderosos lavradores do Estado - a classe cafeeira desfruta os foros de verdadeira e bem organizada aristocracia
rural em S. Paulo - só no começo deste ano da graça de 1925, um pedido de informação emanado do Ministério da Agricultura, a respeito daquelas
terras, fez generalizar certo movimento de interesse pelas mesmas.
Muito antes do tempo em que tal se verificava, três homens altamente empreendedores, os srs.
Anthero Correa, dr. Henrique Dumont Villares e Eusébio Pinto de Carvalho, já para lá haviam lançado as vistas, antevendo, por subitânea e simultânea
indução prática, o grandioso futuro da privilegiada zona.
O agravar-se, dia a dia, da situação em que se encontram a população e as indústrias de S. Paulo,
motivada pela longa estiagem em que lhes fez minguar as fontes vitais - água, força e luz - acentuou a importância daquela faixa territorial servida
por grandes e caudalosos mananciais, que resistem à mais implacável das secas.
Coincidindo o ponto de vista de vários homens de negócios em torno da zona opulenta, de um momento
para outro ei-los a marchar na mesma direção, inspirados pelos mesmos objetivos.
O dr. Henrique Dumont Villares, expressão vibrante de uma família de engenheiros notáveis, entre
os quais se aponta o glorioso aviador patrício Alberto Santos Dumont, entra de adquirir, logo, grandes tratos confrontantes com a área em que se
encontra a Empresa Fabril do Cubatão, importante monumento da atividade paulista, a fim de instalar um bairro industrial; a
Light lá está lançando os fundamentos de uma poderosa usina elétrica; os srs. Anthero Correa e Euzébio Pinto de Carvalho
empreenderam já a abertura de duas grandes vilas à margem da estrada Vergueiro e no sopé da serra majestosa.
Convidados, por nímia gentileza daqueles cavalheiros, a escrever a história da região, eis-nos
palmilhando lugares poetizados pela lenda, cheios de sugestões amáveis da primeira idade da nossa pátria.
Em verdade, o Brasil colonial bem poucos recantos oferece tão prestigiados pela História como o
Cubatão. Lá está, invadido pelo mato, um trecho do Caminho do Padre José, que se presume ter sido aberto ou
consertado pelo venerável padre José de Anchieta.
Mas, naquele ambiente de tradição, é bem de notar, o viajante não respira hoje a desoladora
bafagem que os lugares históricos exalam. A terra não foi revolvida pelo homem, de sorte a apresentar aspectos de exaustão desconsoladora,
transmitindo aos visitantes a melancolia do passado. Tudo é força e juventude. A floresta imensa da montanha arremessa para o ar puro os zimbórios
catedralescos das árvores seculares; antes de chegar ao sopé, deleita-se o observador na contemplação da estrada, muito limpa e muito branca,
separando as duas glebas verdejantes; à esquerda, o local das futuras vilas Bruncken e Nova Califórnia; à direita, os terrenos onde se edificarão,
também, duas vilas.
A baixada, para lá do rio Cubatão, está coberta de capoeirões,
demonstrando que as terras tiveram cultura. Entre a antiga e a nova estrada, vêem-se as ruínas de um velho engenho de açúcar.
Ao percorrer esses lugares, vamos recordando a opulência colonial que rolou pelo pendor da serra,
vamos rememorando, sobretudo, o esforço, inconcebível hoje, dos primeiros povoadores. Por fortuna, pouco havia que tivéramos sob os olhos a obra
famosa de Antonil, onde se historia, com abundância de pormenores verdadeiramente assombrosa, as culturas do açúcar, tabaco e ouro, que eram, no
gracioso dizer de frei Paulo de S. Boaventura, "mais doces de possuir no Reino que de cavar no Brasil".
Que o local denominado Cubatão serviu de pouso fácil aos paulistas, quando demandavam a nascente
vila do porto de Santos, comprovou-o frei Gaspar da Madre de Deus, nas suas Memórias: "Teve
(a vila do porto de Santos) o seu nascimento junto do outeirinho de Santa Catarina, e na sua adolescência ainda não passava do ribeiro do Carmo para
o Ocidente; mas ao depois de se aumentar o comércio com a vila de São Paulo e povoações de Serra acima, aos poucos se foi estendendo para Oeste;
porque os paulistas, quando vinham a Santos, alugavam as casas mais próximas do porto de Cubatão, e mercavam nas primeiras lojas, onde achavam os
gêneros que lhes eram necessários".
Largo período jazeu a população cubatense no mais lastimável abandono. A cidade de Santos, no seu
desdobrar vertiginoso, constituindo-se à margem do estuário um formidável empório comercial, fez confluir ao seu coração a seiva que começava a
latejar nos arredores. Não é daqui o fenômeno. Em todos os grandes centros de atividade humana estamos assistindo a uma sorte de centripetismo
coletivo, dando em conseqüência o sacrifício dos núcleos circunjacentes, que são fatalmente anulados.
O foco central como que os insula num lastimável marasmo vegetativo, que se acentuará tanto quanto
a facilidade de transportes permitir o deslocamento das forças vivas desses pequenos povoados para os grandes. É o que se observa em Niterói, cidade
de vagaroso progresso em face da tumultuosa capital da República. Em Portugal, há tempos, certo escritor anotava, com exuberância de pitoresco, que
as populações dos arrabaldes próximos de Lisboa, hortelões, carrejões (N.E.: carregadores),
ferreiros e outros mesteirais (N.E.: artesões),
permaneciam imobilizados secularmente em estado de cultura muito mais rudimentar do que o das afastadas províncias, contrastando com a esplendorosa
quermesse de civilização que se acha a alguns quilômetros de seus casebres. Mesmo em São Paulo, ainda hoje vamos encontrar os resíduos rejeitados
pelo urbanismo selecionador no bairro de Santo Amaro.
Eis como explicar o atraso em que se empedrara o Cubatão, para onde, nestes últimos tempos, mercê
dos deuses, tem convergido, não só a visão segura de alguns espíritos eminentemente realizadores na iniciativa particular, como, também, a dos
administradores do município, conforme tivemos ensejo de salientar no discurso proferido no banquete ali ofertado ao sr. cel.
Joaquim Montenegro.
De conformidade com a lição dos Estados Unidos da América do Norte, onde alguns industriais estão
operando a descentralização de suas fábricas, escarmentados já pelas funestas conseqüências morais e físicas do urbanismo intensivo, e ainda no
empenho patriótico de levar a vida e o trabalho aos pontos mais remotos - é tempo de irmos contrariando aqui a tendência para as aglomerações
coletivas, em prejuízo das localidades favorecidas admiravelmente pelas forças vivas da natureza.
A distribuição demográfica, numa área imensa como a do Brasil, não pôde nunca ser feita dentro dos
moldes harmônicos que fora de desejar. E se dissermos que a facilidade de comunicações vem contribuindo para a formação de núcleos ativos em certos
pontos e a extinção de outros, estabelecendo um verdadeiro tobogã para as nossas populações, que perdem, assim, as características que só se adquire
na estabilidade - não nos apoiamos senão no insuspeito testemunho de Saint Hilaire, que, no Serro, em Minas, deparara com uma população dotada de
apreciáveis qualidades e tão apercebida do progresso intelectual do mundo, que ao ilustre viajante francês muito surpreendeu a cultura das damas que
habitavam a vetusta cidade sertaneja.
Naqueles tempos de difícil locomoção, não se conheciam ainda os perigos do urbanismo absorvente.
Devas Stanton, no seu livro A chave do progresso universal, aponta os inconvenientes das
aglomerações urbanas, quando diz: "...os triunfos da mecânica tornaram rápidas e baratas as
comunicações; e, daí, tornar fácil o abastecimento das grandes cidades, o que antes era difícil, mas, ao mesmo tempo, removia o principal estorvo,
evitando que as indústrias e a vida urbana se manifestassem com todas as suas sedutoras atrações; as super-populações urbanas, ou antes o urbanismo,
com todos os seus horrores, foram originados realmente pelas invenções do nosso tempo. Bairros pobres onde nas cidades a miséria se patenteava e a
promiscuidade existia, é um mal muito antigo; mas o que é novo, é a sua extensão devido à proporção desmarcada que a cidade agora absorve da vida da
nação; a contínua corrente em que dezenas de milhões de indivíduos põem como preocupação principal ver como lhes é possível pagar o aluguel da casa,
alimentando-se com o que lhes sobra, o que nunca é bastante. Para estes infortunados, todos os prazeres, todas as ilusões fagueiras com que a cidade
lhes acenara, são transformados na realidade triste que o urbanismo absorvente e maléfico, irmão gêmeo do mesmo progresso, lhes reserva".
Esse quadro sombrio foi bosquejado por quem muito devia conhecer a miséria londrina. Devas Stanton
era inglês.
No Brasil, cabe a São Paulo, forja fragorosa de grandiosas iniciativas, a dissolução gradativa dos
núcleos compactos, disseminando-os em vilas arejadas e risonhas.
Tal é o fim objetivado pelos fundadores do Bairro-Jardim no Cubatão de Cima, pouco adiante do
povoado melancólico que acabamos de visionar ligeiramente.
De algum modo esse empreendimento será o refluir das forças, que se
haviam concentrado nas terras baixas, para o sopé da serra de Paranapiacaba, operando-se, destarte, o recuo histórico da povoação vicentina, tão
curiosa e memorável no seu perpétuo fluxo e refluxo civilizador.
S. Galeão COUTINHO.
(Introdução à monografia em preparo Santos nas terras altas).
Vila Bruncken - Bairro Jardim-Cubatão de Cima - corretores Maurílio Corrêa e Galeão Coutinho.
Notem-se nomes como Luís La Scala, os Villares, Albertino Moreira, Rui Ribeiro Couto
Publicado no jornal santista A Tribuna em 10 de março
de 1925, página 5
Veja também os loteamentos Vila Nova e Vila Bandeirantes, em
anúncios de 1952
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