Dentes de animais na cultura do sambaqui de Piaçagüera
Durath P. Uchôa
Caio del Rio Garcia
IPH-USP
Preliminarmente foi efetuado um
levantamento de todo o material coletado no sítio arqueológico de Piaçagüera, Setor-A (Uchôa, D.P. 1970, p.487) (figura
1) [*].
Figura 1
Salientamos que o material sem sinais de uso só foi considerado quando associado a
sepultamentos, ao passo que as peças trabalhadas foram sempre consideradas, mesmo quando não associadas a eles. O total dessas peças atingiu a soma
de 978 dentes, distribuídos entre peixes (seláquios), mamíferos e répteis.
Foram elaborados gráficos de distribuição quantitativa porcentual e qualitativa
e distribuição geral segundo as cotas altimétricas.
O primeiro nos mostra um total de 978 dentes, sendo 609 dentes de peixes (seláquios),
perfazendo 62,27% do total, 362 dentes de mamíferos, perfazendo 37,02% do total e finalmente os répteis, contribuindo com uma parcela mínima de 7
dentes, perfazendo 0,71% do total dos dentes (figura 2).
Figura 2
Ao analisarmos os dados, inicialmente poderíamos dizer, baseados nos números, que o
grupo de Piaçagüera teria se utilizado mais dos dentes de seláquios que dos demais animais.
Esse grupo caracterizou-se por uma economia de coleta e pesca, sendo a caça praticada
em pequena escala, portanto grande parte da matéria-prima, que está sendo estudada, não é produto de sua atividade principal.
Apesar desse grupo ter praticado a pesca, não temos elementos para crer que pudessem
fazê-la em "mar aberto", pois o seu conjunto indica uma pesca pouco evoluída e as espécies de seláquios, aqui representadas, não penetram fundo nos
estuários.
Mesmo admitindo que por vezes fizessem incursões além de sua área de subsistência, não
estariam eles equipados tecnologicamente para aquele tipo de pesca. O produto existia, mas, para chegar a ele e obtê-lo, seria necessário transpor
uma barreira natural e tecnológica.
O grande número de dentes de seláquios, dentro do conjunto, pode ser explicado devido
ao fato de cada indivíduo apresentar cerca de 60 a 100 dentes utilizáveis, ao passo que os mamíferos fornecem apenas 4, isto porque, de modo geral,
só foram usados os caninos.
A utilização de dentes de animais tem se mostrado comum a todos os grupos construtores
de sambaquis. Em alguns a freqüência é maior, em outros menor, dependendo do ambiente em que foram construídos.
A comum ocorrência dessa matéria-prima é explicada pelas múltiplas finalidades a que
era destinado esse material, principalmente utilizado como utensílios e peças de adorno.
Dada a dificuldade em obter a matéria-prima, o grupo de Piaçagüera procurou
aproveitá-la ao máximo, havendo casos de reaproveitamento de peças quebradas.
Quando afirmamos que a caça era praticada em pequena escala, baseamo-nos no conjunto
de restos coletados; contudo, os de mamíferos terrestres, principalmente os de bugio (Alouatta sp.), ocorrem em porcentagem alta, o que
parece contraditório. Daí, podermos formular duas hipóteses: ou esse material foi produto de aquisição durante longo tempo ou a caça e o seu consumo
eram feitos longe do sítio arqueológico.
A primeira hipótese nos parece mais plausível, por termos observado a ocorrência de
ossos de mamíferos no sítio, além da "indústria" óssea. Isto nos leva a crer que o produto da caça fosse consumido na área do sítio, com o
aproveitamento do osso, por se tratar de matéria-prima importante.
Quanto aos répteis, no caso jacarés, só podemos chegar à conclusão de que raramente
eram caçados, talvez devido à falta de recursos técnicos, embora o ambiente circunjacente ao sítio fosse extremamente favorável à sua ocorrência,
sendo de notar que até hoje são eles caçados na região.
Contudo, podemos afirmar que os 7 dentes de jacaré não foram usados como instrumento e
sim como peças de adorno, por não apresentarem nenhum desgaste em suas faces e ápices e sim perfuração na raiz. Seis desses dentes estavam
associados ao Sep. XXX (N.E.: sepultamento número 30), dispostos em forma de colar. O
sétimo foi encontrado no material, quando estudado em laboratório, apresentando o mesmo tipo de perfuração.
Inicialmente, verificamos que a concentração dos dentes em geral se localizou nas
cotas médias do depósito, ou seja, entre 11 m e 10,30 m, tornando-se mais rara para a superfície e para a base (figura
3).
Figura 3
Essa concentração coincide com a área de convergência dos sepultamentos (Uchôa, D.,
1969). Vemos portanto que a grande maioria dos dentes estava associada a sepultamentos, denotando assim uma forte preferência e valor atribuídos a
esse tipo de material, fato também observado por outros pesquisadores em sítios do mesmo tipo (Beck, 1969), (Cunha, E. Sales, 1963), (Duarte, P.,
1969), (Guidon, 1964), e (Pallestrini, 1964).
As sondagens fora do Setor-A não revelaram outras áreas de sepultamentos. O setor
pesquisado correspondia aproximadamente ao centro geométrico do sítio e nessa área estavam concentrados os sepultamentos e com eles a maioria dos
dentes.
Portanto, essa concentração não se deu ao acaso e sim em função dos próprios
sepultamentos (Uchôa, D., 1969).
Na tabela de Distribuição Quantitativa e Porcentual do material, consideramos
não só as quantidades, mas também a identificação do material, incluindo tanto as peças com sinais de uso como as não modificadas (figura
4).
Dentes de animais
|
Espécies
|
Trab.
|
M/Trab.
|
Total
|
% Total
|
% T.Geral
|
Peixes |
Prionace glauca |
47
|
224
|
271
|
44,50
|
|
|
Galeocerdo cuvier |
19
|
189
|
208
|
34,16
|
|
|
Sphyrna diplana (?) |
8
|
79
|
87
|
14,29
|
|
|
Carcharodon carcharias |
29
|
--
|
29
|
4,76
|
|
|
Odontaspis taurus |
8
|
6
|
14
|
2,29
|
|
|
Total:
|
111
|
498
|
609
|
100
|
62,27
|
Mamíferos |
Macaco |
278
|
--
|
278
|
76,83
|
|
|
Capivafra |
48
|
3
|
51
|
14,08
|
|
|
Boto |
121
|
--
|
12
|
3,31
|
|
|
Porco do Mato |
10
|
--
|
10
|
2,76
|
|
|
Coati |
8
|
--
|
8
|
2,20
|
|
|
Paca |
2
|
--
|
2
|
0,55
|
|
|
Onça |
1
|
--
|
1
|
0,27
|
|
|
Total:
|
359
|
3
|
362
|
100
|
37,02
|
Répteis |
Jacaré |
7
|
--
|
7
|
100
|
|
|
Total
|
7
|
--
|
7
|
100
|
0,71
|
|
Total geral:
|
477
|
501
|
978
|
--
|
100
|
Figura 4
O material com sinais de uso foi dividido em duas categorias: adornos e instrumentos.
Figura 5 - Canino de bugio (Alouatta sp.) com perfuração de 3,5 mm de diâmetro,
obtida por desgaste longitudinal em ambas as faces da raiz. Peça de ornamento com 3 cm de comprimento
Adornos - Os dentes usados com maior freqüência foram os de mamíferos,
principalmente os caninos de bugio (Alouatta sp.). Pela disposição das peças em vários sepultamentos, bem como o tipo de trabalho a que foram
submetidos (perfuração da raiz), podemos dizer que foram usados como peças de colares, talvez pulseiras e outros tipos de adorno (figuras
5 e 6).
Figura 6 - Um dos sete pré-molares de bugio
(Alouatta sp.), todos eles perfurados, associados ao sepultamento III (adulto), fazendo parte do mobiliário funerário como elemento de
adorno. Peça com 0,7 cm de comprimento
Com relação aos dentes de seláquios, se distingüem os de Prionace glauca e
Carcharodon carcharias, com perfuração central, não apresentando outros sinais (figura 7).
Figura 7 - Dentículo de Prionace glauca, com perfuração central de 1 mm de
diâmetro e 0,5 cm de comprimento, provavelmente usado como adorno
O total dos dentes de Carcharodon carcharias apresentou perfuração na porção
central da placa basilar e estavam dispostos junto aos crânios dos sepultamentos, próximos à região cervical, o que nos leva a supor estivessem
suspensos por algum cordel, constituindo peça de adorno (figura 8).
Figura 8 - Dentes perfurados de Carcharodon carcharias. Dois deles apresentam
perfuração secundária para reaproveitamento da peça. Estavam associados a sepultamentos diferentes e dispostos na região cervical. A peça maior tem
4,2 cm e apresenta polimento na face interna da placa basilar
Ainda como peças de adorno ocorreram dentes de jacaré, coati, boto e onça, porém em
quantidade pouco representativa dentro do conjunto estudado (figura 9).
Figura 9 - Ao alto, à esquerda, incisivo de onça
(Panthera onca) com desgaste circular na porção superior da raiz. Comprimento 3,1 cm. Ao alto, à direita, dente de boto (Delfinideo).
Peça de adorno, com perfuração da raiz por desgaste transversal de ambos os lados. Comprimento 3 cm. Abaixo, à esquerda, canino superior de Coati (Nasua
narica) com perfuração por desgaste longitudinal da raiz em ambos os lados. Comprimento 2,5 cm. Abaixo, à direita, dente de jacaré (Caiman sp.)
com perfuração por desgaste longitudinal da raiz em ambos os lados.
Comprimento 2,8 cm
Instrumentos - No material classificado como instrumentos, destacamos os dentes
de capivara (Hydrochoerus hydrochaeris) e porco-do-mato (Tayassu pecari), entre os mamíferos.
Dos dez exemplares de dentes de porco-do-mato, cinco são caninos inferiores, muito
desgastados nas porções laterais e face interna, provavelmente usados como instrumentos para furar e raspar. (Hurt e Blasi, 1960 - pg. 86 - fig. 16
I-J), (Triburtius, Bigarella e Bigarella, 1950-51 - pgs. 315-346) (figura 10).
Figura 10 - Caninos inferiores de porco do mato (Tayassu pecan) com sinais de
uso nas faces internas, usados como instrumento. Comprimento 6,9 cm e 6,8 cm
Os incisivos de capivara apresentam também estrias de uso na face lingual e eram
usados principalmente para raspar (figura 11).
Figura 11 - Ao alto, incisivo inferior de
capivara (Hydrochoerus hydrochoeris) com perfuração por desgaste na parte implantada no alvéolo, possivelmente para manter o instrumento
preso a cordel; associado ao sepultamento XXXVII. Comprimento 9,2 cm. Abaixo, incisivo inferior de capivara apresentando traços de uso no ápice, na
face interna. Associado ao sepultamento XLIV, disposto junto ao ombro direito. Comprimento 9,4 cm
Como instrumento de corte, eram utilizados os dentes de seláquios, principalmente os
de mangona (Odontaspis taurus). Geralmente apresentam a porção de implantação (placa basilar) desgastada nas faces interna e externa e os
dentículos laterais da coroa removidos (figura 12).
Figura 12 - Dentes de Odontaspis taurus. O da esquerda ao alto apresenta a
placa basilar desgastada; o da direita não foi modificado, apenas foram retirados os dentículos laterais da coroa (comparar com o exemplar atual
abaixo). Ambos apresentam sinais de uso nos ápices das coroas. Os dentes dessa espécie nunca foram observados como elementos de adorno. O maior tem
3,2 cm de comprimento
Os sinais de uso como instrumento de corte são notados nos ápices, que se apresentam
gastos, fraturados ou lascados.
Ainda entre os seláquios, eram usados os dentes de Prionace glauca,
Galeocerdo cuvier e Sphyrna diplana (?) também como instrumento de corte (figuras 13, 14 e 15).
Figura 13 - À esquerda, um dos sessenta e cinco dentes de Prionace glauca, sem
sinais de uso associados ao sepultamento LIII, fazendo parte do mobiliário funerário. À direita, um dos quatro dentes de Prionace glauca com
perfuração central de 2,8 mm de diâmetro, apresentando preparação da superfície interna da placa basilar. Faziam parte do mobiliário funerário da
sepultura XXX, dispostos junto à região cervical, indicando possível adorno. Comprimento 2 cm
Pelo exposto, constatamos que, também no sítio de Piaçagüera, a preferência pela
matéria-prima de que estamos tratando foi marcante como adorno ou instrumento.
Dentes de animais ocorreram associados a 55% dos sepultamentos retirados.
Figura 14 - Dentes de Galeocerdo cuvier. À esquerda, um dos vinte e seis
exemplares não modificados associados ao sepultamento XXXVI. Comprimento 2 cm. À direita, com perfuração central de 2,5 mm de diâmetro, apresentando
preparação da superfície na face interna da placa basilar. Fazia parte do mobiliário funerário da sepultura XLV
Conclusões
1) Notada preferência por dentes de animais entre os construtores de sambaquis.
2) Preferência pelos dentes de mamíferos como elementos de adorno e de seláquios como
instrumentos.
3) Grande parte do material estudado figurava como material associado a sepultamentos.
4) Parte do material é procedente de outra área, anteriormente ocupada pelo grupo de
Piaçagüera, tais como os dentes de Carcharodon carcharias, Galeocerdo cuvier e Odontaspis taurus e outros elementos faunísticos
como Olivella verreauxi e Polinices hepaticus, encontrados com maior freqüência nas camadas médias do sítio.
Bibliografia
1. BECK, Anamaria - O Sambaqui de Congonhas I: relatório preliminar. Anais
do Instituto de Antropologia, Florianópolis, 1 (1):37-62, jan. 1969.
2. CUNHA, E. Salles - Sambaquis do litoral carioca: afecções dentárias.
Separata da Revista de Odontologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, (1):3-9, agos. 1963.
3. DUARTE, Paulo - O Sambaqui visto através de alguns sambaquis. In:
PRÉ-HISTÓRIA BRASILEIRA. São Paulo, Instituto de Pré-História da Universidade de São Paulo, 1968, p. 45-142.
4. GUALBERTO, Luís Antonio Ferreira - Os casqueiros de Santa Catarina ou sambaquis.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico, Rio de Janeiro, t. 96, v. 150:291-3094, 1908.
5. GUIDON, Niéde - Nota prévia sobre o sambaqui Mar Casado. In: HOMENAJE A
FERNANDO MARQUEZ-MIRANDA. Madrid, Universidades de Madrid y Sevilha, 1964. p. 176-204.
6. HURT, Wesley & BLASI, Oldemar - O Sambaqui do Macedo: A.52.B. Paraná, Brasil.
Arqueologia, Curitiba, (2):1-98, jul. 1960.
7. PALLESTRINI, Luciana - Jazida litorânea em Piaçagüera, Cubatão, Estado de São
Paulo. Revista do Museu Paulista, n.s., São Paulo, 15:357-379, 1964.
8. PALLESTRINI, Luciana - A jazida do Buracão - Km 17 da estrada Guarujá-Bertioga.
In: HOMENAJE A FERNANDO MARQUEZ-MIRANDA. Madrid, Universidades de Madrid y Sevilha, 1964, p. 293-322.
9. TIBURTIUS, Guilherme; BIGARELLA, Iris Koehler & BIGARELLA, João José - Nota
prévia sobre a jazida paleoetnográfica de Itacoara (Joinvile, Estado de Santa Catarina). Arquivos de Biologia e Tecnologia, Curitiba,
5/6:315-346, 1950-51.
10. UCHÔA, Dorath Pinto - Nota prévia sobre os sepultamentos do sambaqui de
Piaçagüera. In: ESTUDOS DE PRÉ-HISTÓRIA GERAL E BRASILEIRA. São Paulo, Instituto de Pré-História da Universidade de São Paulo, 1970, p.
487-491.
[*] A datação pelo
Carbono-14 do material proveniente do Sambaqui de Piaçagüera (conchas de Ostrea sp.) foi efetuada pelo laboratório da Isotopes Inc. com os
seguintes resultados:
Amostra A (superfície) (I-4480) 4890
± 110 AP
Amostra C (base) (I-4481)
4930 ± 110 AP
Figura 15 - Dente de Sphirna diplana (?) com perfuração central de 2 mm
de diâmetro, apresentando preparação da face interna da placa basilar e desgaste no ápice da coroa. Provavelmente usado como instrumento.
Comprimento 1,4 cm
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