Página 10 do jornal A Tribuna de Santos, de 26 de fevereiro de 1984
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Nélson correu, mas o fogo levava a família
Nem uma lágrima, apenas um olhar perdido. Difícil entender a maneira fria com que Nélson Ferreira de Souza narrava a perda de
sua família: a esposa, grávida de oito meses, dois filhos, de 4 e 6 anos, e um cunhado, Nélson, que é trabalhador da área da Cosipa, estava passivo diante dos corpos carbonizados de seus familiares num dos cantos da sala improvisada do Instituto
Médico Legal, no Centro Comunitário.
A mãe e os filhos morreram abraçados, e lá estavam amontoados ao lado de outros corpos cobertos apenas com um lençol branco e com um número de identificação numa das poucas partes do corpo que restou. Agora, para os funcionários do IML eram
conhecidos apenas pelo número 36 e nada mais
Quem ouvia o modo com que Nélson relatava tudo que aconteceu na certa não entendia o porquê da tranquilidade desse homem. Chegaram até perguntar se estava sob efeito de calmantes. Mas, para os médicos que acompanharam a luta do único sobrevivente
da família Souza, sua passividade tinha uma explicação lógica: ele estava em estado de choque.
Foi nesse estado que contou cada detalhe dos momentos de desespero que passou. "Eu estava com minha família dormindo no barraco que fica nos fundos do número 301 da Rua São José, e por volta da meia noite o meu cunhado Luís César Rodrigues, o
Japão, bateu na porta para avisar que a Vila poderia ir para os ares devido a um vazamento de gasolina.
"Fiquei desesperado" – diz ele – "e acordei minha esposa e fomos para a rua ver o que realmente estava acontecendo. Antes, ainda liguei o ventilador em direção a Andréa (Andréa Carla Rodrigues de Souza, de 4 anos) e Marcelo (Marcelo Henriques
Ferreira de Souza, de 6 anos). Os dois dormiam na mesma cama, e o cheiro da gasolina era forte.
"Assim que saímos eu e a Maria (Maria de Rocil Rodrigues dos Santos, de 26 anos), notamos que nossos vizinhos já estavam saindo de suas casas. Não andamos mais do que 100 metros quando vi uma labareda de fogo atingir meu barraco", lembra Nélson.
"Corri desesperadamente com minha mulher para salvar as crianças e acordar meu cunhado Luís Carlos Correia de Azevedo, de 32 anos, que veio de São Paulo para passar o final de semana lá em casa".
Barraco desabou – No desespero de salvar os filhos, e apesar de estar grávida de oito meses, Maria foi mais rápida que o marido e entrou no barraco, quando as chamas já consumiam boa parte do imóvel.
Nelson conta que no momento que passou pela porta principal sua casa começou a cair. "Aí fiquei desesperado, pois sabia que toda minha família estava lá dentro. Gritei como um louco pedindo a Deus que não deixasse ninguém morrer. Cheguei a escutar
os gritos de minha mulher pedindo socorro, para que eu salvasse juntamente com a Andréa e o Marcelo. Mas juro que eu não podia fazer nada. O fogo consumiu rapidamente os três e mais o meu cunhado, e eu que queria morrer com eles naquela hora fui
salvo por vizinhos… Por que, meu Deus, não me deixaram ficar lá".
"Perdi tudo que um homem pode ter de maior valor na vida: perdi minha vida, e o pior: não restou nada que pudesse salvar, pelo menos de recordação; nem mesmo as fotos que tiramos recentemente para lembrar a gravidez da Maria com toda família o fogo
deixou".
Até o pagamento – Na hora do incêndio, Nélson dormia apenas de short, a única coisa que conseguiu salvar. "Pouco me importam os objetos materiais que foram destruídos ou até mesmo o dinheiro do pagamento que tinha recebido ontem.
Ninguém vai me trazer de volta a minha família!"
No desabafo, Nélson conta que tinha muitos planos, quando casou, em 1977, com Maria do Rocil. "Como todo jovem eu sempre sonhei em constituir um lar e ter uma família. Adoro crianças, e assim que saía do serviço vinha direto para casa para curtir o
meu pessoal".
Nos últimos dias Nélson era o homem mais feliz do mundo. Afinal a qualquer momento iria nascer mais um herdeiro. O que mais poderia esperar dessa vida? Já havíamos comprado todo o enxoval do bebê e até estava pensando em economizar um dinheirinho
para sair da Vila. Afinal, a família iria crescer e precisava de mais espaço. Agora, meus ideais foram destruídos e não vejo motivo para continuar vivendo…
Um processo – De uma coisa Nélson Ferreira está certo: abrirá processo contra a Refinaria Presidente Bernardes. Ele considera a empresa como a única responsável pela tragédia. "Houve negligência por parte da Refinaria e não será o dinheiro
da indenização que vai acabar com meu sofrimento. O dinheiro nem quero, prefiro até doar a uma instituição de caridade, mesmo porque não vai trazer de volta minha mulher e meus filhos".
"Tudo isso" – lamenta Nélson – "poderia ser evitado se no momento em que os moradores deram o alarme, aos funcionários da Refinaria, alguém tomasse providência. Afinal, a vida de um favelado pouco importa ao Governo, que talvez nem saiba que também
somos seres humanos…"
Inocentes, garotos brincavam nos canos
"Vamos nadar na casa amarela?" Esse era o convite comum, há 20 anos, entre meninos de Cubatão. "Você é muito pequeno e não vai pular dos canos", ouvia-se, com frequência, o
alerta dos garotos maiores, sempre admirados por sua coragem em mergulhar dos improvisados trampolins para as águas escuras do mangue.
A descrição de tais lembranças, sob o impacto emocional dos acontecimentos de Vila Socó – tragédia estúpida como todas aquelas decorrentes de falhas da superestimada tecnologia moderna – não conseguem esconder o paradoxo: os mesmos tubos que
serviram de alegria para um segmento da infância de Cubatão, hoje trazem lágrimas, dor e morte para dezenas de crianças, a maioria das vítimas do acidente.
Casa amarela era o nome que se dava ao mangue onde surgiu a Vila Socó, aludindo a uma antiga unidade de conservação do Departamento de Estradas de Rodagem – DER – perto da Via Bandeirantes e que não existe mais, tendo dado lugar a um centro
comunitário. Os canos eram o oleoduto, existente na área antes da favela surgir, e que, no trecho em que forma um arco sobre um dos córregos do mangue, era utilizado como trampolim pelos garotos.
No início da década de 60, não existia a favela e a maioria dos meninos que tinham naquele mangue uma das poucas opções de lazer, residiam na Vila Nova, bairro operário, em fase inicial de desenvolvimento e que ficava a cerca de dois quilômetros
dali. Hoje, o bairro confunde-se com a favela.
O primeiro barraco foi construído, por volta de 1962, nas imediações da casa amarela, por um operário de nome Ismael. O casebre passou, também, a servir como ponto de referência, não só para os garotos, como, também, para eventuais
pescadores, que ali deixavam suas canoas, com as quais atingiam pontos mais distantes do mangue, como os rios Casqueiro, Laranjeiras e a Ilha Casqueirinha, entre outros.
A denominação Vila Socó surgiu quando a favela já possuía cerca de 20 barracos e faz referência a uma ave muito comum na região e que, com o crescimento da favela, acabou se extinguindo, assim como os siris, caranguejos e peixes típicos de mangue,
entre eles o amborê, que vive em tocas.
Até o final dos anos 60, a favela desenvolveu-se lentamente, uma vez que o déficit habitacional ainda não era grande, na região. Os operários tinham condições de comprar terrenos na Vila Nova e iam para a Vila Socó apenas os desempregados ou
pescadores artesanais. De 1971 a 1974, a favela passou de pouco mais de 100 barracos para cerca de 500, devido ao grande afluxo de operários, atraídos pela expansão do Parque Industrial e por causa do processo de concentração urbana na Vila Nova.
No início da década de 80, o núcleo já tinha mais de mil barracos e em torno de 5 mil moradores, possuía melhorias urbanas – como água e luz domiciliares – constituindo-se, contudo, em um sério problema social. Ali constatou-se, em 1980, um dos
maiores focos de esquistossomose do Estado, o que obrigou à imunização de todos os moradores. Outros tipos de verminoses desenvolveram-se com facilidades, decorrentes das péssimas condições de saneamento.
Mais graves vão para o Setor de Queimados
Quando os 18 grandes queimados – isto é, pessoas com mais de 50 por cento do corpo atingidos pelo fogo – chegaram à Santa Casa de Santos, de madrugada, os dois médicos plantonistas
acionaram toda a equipe do Serviço de Cirurgia Plástica e Queimados, montado há alguns anos pela própria Petrobrás, já com vistas aos possíveis acidentes de grande porte na Refinaria Presidente Bernardes. Assim, os 11 especialistas do hospital
foram mantidos em seus postos, à espera de novas levas de pacientes, que entretanto não chegaram: a tragédia na Vila Socó resultaria em um número muito maior de mortos que de feridos.
O médico-chefe da unidade, Sílvio Correa da Silva, considera todos os internados em estado grave, com um mínimo de 50% de área queimada, quase totalmente em terceiro grau. Portanto, é impossível fazer um prognóstico da evolução desses casos; ele
acredita que os que sobreviverem ao choque inicial provocado pelas queimaduras, desequilibrando todo o organismo, até o limite de 72 horas, poderão ter chance de sobrevivência.
O atendimento desse tipo de queimados é bastante trabalhoso e delicado. É preciso fazer a limpeza cirúrgica dos tecidos e também os grandes curativos, em sala de cirurgia totalmente asséptica. Nos casos mais graves, é preciso fazer a canolização
das veias, para administração de sangue, plasma e soro. Cada paciente deve ser avaliado, para a prescrição médica, e permanecer protegido de contaminação.
Material suficiente – Segundo Sílvio Correa da Silva, não faltou sangue para o atendimento de urgência. No entanto, será necessária a reposição constante desse material, que é utilizado em grande quantidade durante o tratamento; portanto, os
doadores devem dirigir-se à Santa Casa durante os próximos dias.
Numa segunda fase do tratamento, deverá ser feita a eliminação dos tecidos queimados, e, dentro de três ou quatro semanas, a substituição dessas partes por enxertos de pele. A Santa Casa está equipada para toda a evolução do tratamento, que exige
um mínimo de 60 dias de internação, período que pode se estender a até 90 dias.
Devido à gravidade de todos os casos, um grande número de curiosos teve de ser afastado do Setor de Queimados, e mesmo médicos e enfermeiros que pretendiam entrar apenas para ver os pacientes tiveram a passagem impedida. Todos os pacientes da Santa
Casa correm risco de vida; muitos deles têm quase 100% do corpo atingido por queimaduras, e em 50% dessa área elas são de terceiro grau.
Das 18 pessoas que chegaram de madrugada, duas morreram antes das 11 horas, e eram esperados mais óbitos até o final do dia.
Movimento nos hospitais
O menino Wellington dos Santos, de sete anos, e um homem pardo, aparentando 45 anos, e uma criança de cerca de dois anos foram os óbitos registrados na Santa Casa de Santos até 18 horas
de ontem. Segundo o médico-chefe do Serviço de Cirurgia e Queimados, Sílvio Correa da Silva, eles apresentavam queimaduras de segundo e terceiro grau em 100 por cento do corpo, e já chegaram praticamente sem esperança de sobrevivência.
Permaneceram internadas, em estado considerado grave, 16 pessoas: Geraldo Luís Nieiro, de 23 anos; Amílton Sérgio Rodrigues, 24; Antônio Pedro da Silva Netto, 29; Waldomiro Martins dos Anjos, 51; Raimunda lves dos Santos, 43; Gilma Sessa, 51;
Marizette Senna Santana, 17; Manoel Ciríaco da Silva, 22; Vera Lúcia Pereira, 26; Luís Carlos Correa de Azevedo, 32; Antônio Carlos da Silva, 19; Maria dos Reis Farias, 41; e as crianças Luciano da Silva Rodrigues, 6 anos; e uma menina parda, de
cinco aos aproximadamente. Não houve pacientes dispensados.
Beneficência Portuguesa – A Beneficência Portuguesa recebeu alguns casos graves, que foram encaminhados para a Santa Casa, e permaneceu com duas pessoas internadas, que estão passando bem: Lucilene da Silva Rodrigues e seu filho de seis
meses, Erik Aureliano da Silva Rodrigues. Um menino de três anos, da mesma família, foi medicado e dispensado.
Hospital Oswaldo Cruz – O Hospital Oswaldo Cruz, de Cubatão, recebeu um número enorme de pessoas que foram medicadas e dispensadas, e que, no meio da confusão das primeiras chamadas para o incêndio, acabaram não sendo registradas. Os casos
mais graves foram encaminhados para a Santa Casa de Santos, e as duas pessoas que permaneceram internadas no Oswaldo Cruz estão em estado considerado regular.
Uma das vítimas internadas recebeu o primeiro atendimento, com dispensa, e depois precisou voltar, devido ao aparecimento gradativo de enormes bolhas por todo o corpo. Por isso, a direção do hospital esperava novos casos de retorno até o final da
tarde.
Às 14 horas, eram estes os internados: Regina Lúcia Nieno, de 15 anos; e Marilande Silva Magalhães, de 13 anos.
Santa Casa de Cubatão – Na Santa Casa de Cubatão, permaneceram internados, em estado considerado regular: Jarmilina Ferreira da Silva, de 6 anos; Célia Regina Baselar, de 28 anos, e seus filhos Fábio Goretti Serafim, 11 anos, e Simone
Terezinha Serafim, também de 11 anos; Iolanda Oliveira Melone, 39; Joana Maria da Silva, 75; e Mariene Gomes dos Santos, 19.
Foram medicados e dispensados: Domitila Rifino de Oliveira, José Benício da Conceição Santos, Francisco José de Carvalho, Marizette Conceição Dereto, Maria José Bonifácio Neves, Tânia Isabel dos Santos, Paulo Cândido da Silva, Marluci Cardoso
Vieira, Irene Martins dos Santos, Maria Zélia Santos Souza, Maria Joaquina da Conceição e Cícera Iraci Melone.
Lucilene salvou o seu bebê com uma colcha
"Se você vise como é feio… Mais de um quilômetro de fogo, em dois braços, gente gritando e me pedindo socorro; mas eu só pude socorrer o meu bebê de seis meses, que embrulhei numa colcha
de chenile". Assim Lucilene da Silva Rodrigues respondia às perguntas sobre como conseguiu fugir do inferno em que se transformou a Vila Socó. Com a colcha, único objeto que sobrou do barraco da família, ela conseguiu realmente salvar o
menino Erik Aureliano da Silva Rodrigues, que se encontra fora de perigo, na Beneficência Portuguesa.
O marido, Amílton Sérgio Rodrigues, e o filho mais velho, Luciano da Silva Rodrigues, de seis anos, estão internados na Santa Casa, em estado grave. Um outro filho do casal, de três anos, saiu totalmente ileso, e está sob os cuidados de uma tia.
Lucilene morava bem em frente ao cano d'água da Sabesp, no Canal. "Mas todas as casas da Vila ficavam em cima daquele cano de gasolina maldito", ela lembra. O fogo derrubou a sua casa e a de seus vizinhos, que ela não tem ideia de onde estão, ou se
estão vivos. Ela viu pessoas correndo – "o chão queimava os pés" -, e não sabe explicar como chegou a uma ambulância da Cosipa, que a levou, com os meninos, para o Hospital Oswaldo Cruz. "Só lembro que corri, até não ter mais forças".
De Cubatão, a família Rodrigues foi transferida para a Beneficência Portuguesa, mas Amílton e Luciano, considerados grandes queimados, precisaram ficar internados na Santa Casa. Lucilene teve queimaduras nos braços e nas pernas, e foi submetida a
cirurgia plástica. Erik queimou apenas os bracinhos, e passa bem.
FOTOS:
Mortos os dois filhos e a mulher, grávida de oito meses, Nélson vai acionar a Petrobrás
Feridos com mais de 50 por cento do corpo queimado estão espalhados pelos hospitais da região
O filho Erik, de seis meses, passa bem |