Guarás em frente à siderúrgica Cosipa: prontos para começar o acasalamento
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria
AMBIENTE
A vida retorna a Cubatão
Mangue que o homem poluiu e arrasou com as dragagens renasce transformado num
grande viveiro para mais de oitenta espécies de aves aquáticas, algumas delas vindas do Hemisfério Norte
Daniel Hessel Teich
O guará é uma ave cujas penas são tão bonitas que foram
escolhidas pelos tupinambás, os habitantes originais do litoral paulista, para confeccionar os mantos de seus chefes. Quando está pronto para se
reproduzir, sua plumagem, que já é vermelho vivo, ganha cor ainda mais forte, mais luminosa.
Depois de andar sumido da região por décadas, o guará é uma das mais de oitenta
espécies de aves aquáticas que estão transformando os mangues de Cubatão num dos mais diversificados viveiros do Brasil. É como se um mini-Pantanal
Mato-Grossense estivesse encravado num dos lugares mais degradados da costa brasileira.
Imagem publicada com a matéria
O pântano onde as aves vivem ocupa uma área de 70 quilômetros quadrados entre os
municípios de Cubatão e Santos e foi inteiramente revirado por sucessivas dragagens. Devido aos gases e aos despejos da indústria química ali
instalada, a região era considerada nos anos 80 um dos lugares mais poluídos do mundo. Impressiona como tudo isso acabou contribuindo para criar um
ecossistema em que os pássaros se sentem à vontade.
Como acontece com o guará, o verão é a época de acasalamento para as aves que vivem
permanentemente na região. Garças-azuis, graças-brancas, socós, saracuras e gaviões-asa-de telha juntam-se às centenas em ninhais instalados próximo
a pontilhões das rodovias, nos terminais marítimos das empresas e nos braços de mangue mais afastados.
É também a ocasião em que aves migratórias fugindo do inverno na América do Norte,
como os maçaricos, batuíras e águias-pescadoras, se refugiam nos lodaçais e braços de mar repletos de peixes, caranguejos e pequenos vermes com que
se alimentam. Atrás dessas aves juntas vêm as de rapina, como o falcão peregrino, que ataca os ninhos em busca de filhotes.
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria
Esse ecossistema complexo se instalou no mangue nos últimos dez anos. O período coincide com
a diminuição gradativa da poluição industrial na região. Mas a limpeza do ar e do solo não explica inteiramente o fenômeno.
O que está ocorrendo nos mangues de Cubatão é uma demonstração do espantoso poder
regenerador da natureza. O lugar tornou-se propício à reprodução de aves aquáticas, graças, sobretudo, a outra grande intervenção humana, que
alterou a geografia original do mangue.
Para instalar os complexos industriais, enormes áreas pantanosas foram aterradas, da
mesma forma como os braços de mar e rios foram dragados para que navios de grande calado pudessem passar. Milhares de toneladas de lodo foram
revolvidas do fundo do mangue para abrir um canal, o Piaçaguera, com 8 quilômetros de comprimento e profundidade entre 10 e 20 metros. A lama foi
atirada em direção às margens.
A garça branca é nativa e vive em enormes colônias
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria
Até 1988, 1,8 milhão de metros cúbicos de terra que anualmente eram dragados do canal
iam se amontoar à beira da água. Tanto que formaram praias com até 2 quilômetros de extensão, de pura lama. É lá que as aves se esbaldam, comendo
caranguejos e vermes.
O desmatamento também contribuiu para atraí-las. É improvável que tantas espécies
pudessem ter vivido ali na época em que havia mata fechada. É a vegetação rala que permite aos pássaros capturar seu alimento no solo. "A mão humana
acabou anabolizando esses viveiros", diz o biólogo Robson Silva e Silva. Ele estuda as aves do mangue há sete anos, num projeto que hoje é
patrocinado por uma indústria de fertilizantes da região.
Aves de vários pontos da América vêm comer em Cubatão.
Os talha-mares são originários da Argentina
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria
O principal estudo de história natural desse mangue, feito pelo naturalista Hermannn
Luederwaldt em 1919, revela uma fauna bem menos diversificada. O naturalista observou grande concentração de gaivotas, fragatas e umas poucas
garças. Colhereiros, aves também bastante comuns nos dias de hoje, são mencionados como raridade. Guarás e alguns tipos de marrecas nem estão no
inventário publicado com o nome de Os Manguesaes de Santos.
Luederwaldt também viu poucas espécies migratórias. Descreveu maçaricos e batuíras,
pequenas aves que vêm do Alasca numa viagem de mais de 12.000 quilômetros de distância. Não viu, no entanto, exemplares majestosos, como a
águia-pescadora, que da ponta de uma asa à da outra tem o tamanho de um homem. Comuns na Amazônia, essas aves originais do Nordeste dos Estados
Unidos fizeram de Cubatão a escala regular mais meridional na rota que percorrem fugindo do frio.
A águia-pescadora vem dos Estados Unidos
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria
É um comportamento semelhante ao do falcão peregrino, também nativo da América do
Norte. Em sua pesquisa, Silva chegou a capturar um exemplar da ave marcado por biólogos ainda no ninho, logo após sair do ovo, com um anel
registrando sua origem na região de Manitiisoq, na Groenlândia.
É no mangue da Baixada Santista que as aves migratórias engordam durante meses,
acumulando reservas para a longa viagem de volta. Apesar de viverem parte do ano na América do Sul, elas esperam chegar ao Hemisfério Norte para se
reproduzirem.
Os biguás vêm da Serra do Mar
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria
Por todo o planeta se encontram exemplos de áreas mortalmente devastadas que florescem
depois de alguns anos de descanso. Foi assim com o Atol de Bikini, no Pacífico, onde os americanos detonaram uma série de bombas nucleares na década
de 50. Hoje é um paraíso dos mergulhadores, tamanha a exuberância da vida marinha que existe por lá. Os peixes, estrelas-do-mar, corais e outros
animais vivem em meio ao destroços de uma frota de dez navios afundados nos testes.
A tragédia ambiental em Cubatão jamais alcançou a escala da de Bikini. Mas nos piores
momentos foram identificadas por lá 320 fontes poluidoras do ar, da água e do solo. Lançavam-se 64 toneladas de poluentes por dia nas águas do
mangue, incluindo 4.000 quilos de metais de difícil dissipação na natureza, como mercúrio, cromo e zinco. O despejo é hoje 5% do que era. Só a
quantidade de lixo doméstico, produzido pelas favelas e levado pela maré, pouco se alterou. Os pássaros não se importam, pois os despejos humanos
são também fonte de alimento.
Mangue de Cubatão: ação humana criou um dos mais exuberantes ecossistemas do país
Foto: Robson Silva e Silva, publicada com a matéria
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