A Vila Parisi é riscada do mapa de Cubatão
Manuel Alves Fernandes
Da Sucursal de Cubatão
A Vila Parisi será riscada do mapa de Cubatão, hoje. Mas, o
verdadeiro fim desse bairro, mundialmente conhecido como Vale da Morte, ocorreu por volta das 13 horas do dia 13 de maio, quando a família de
José Batista de Santana se mudou para o Conjunto Habitacional Humaitá, em São Vicente.
Antes de partir, deu uma festa e ofereceu um churrasco que, segundo as informações, seria de carne
de gato.
Na verdade, os gatos se recusam a abandonar o antigo pouso, do qual Batista foi o último dos 20 mil
moradores. Ainda perambulam pelas ruas aterradas com escória. Batista acha que eles estão acostumados com os tempos antigos quando, de madrugada,
caía a famosa chuva que morde (orvalho misturado com ácidos dos produtos de fertilizantes) e um forte cheiro de amônia tomava conta de todo o
vale do Rio Moji. Toneladas de produtos químicos desciam sobre os barracos, pintando os telhados de branco.
Cubatão ocupava as manchetes dos principais órgãos de comunicação do planeta por causa do Vale
da Morte - ou seja, a Vila Parisi.
Festa - A história desses tempos ficou para trás. O bairro muda de nome hoje, a partir das
15 horas, depois que o prefeito Nei Serra assinar um decreto que incorpora essas glebas à área industrial. A vila passará
a chamar-se então Centro Empresarial Vale da Vida. Na área com 400 mil m², um consórcio escolhido em licitação pública construirá três terminais
rodoferroviários de carga.
"Vencemos um desafio que parecia intransponível", anuncia o prefeito Nei Serra.
Para tão grande comemoração, de acordo com ele, havia a necessidade de realizar um grandioso ato
público. Serra está convidando toda a população da Baixada a participar da festa, a partir das 15 horas, no próprio local onde no passado havia
barracos fincados no mangue, cortiços com camas quentes (mal saía um operário, entrava outro para dormir nos alojamentos) e muita poluição.
Roberto Carlos - As atrações incluem a esquadrilha da fumaça da FAB, revoadas de pombos,
missa campal e a apresentação da Orquestra Sinfônica Estadual, sob a regência do maestro Júlio Medaglia.
Serra se contenta com a presença de pelo menos 100 mil pessoas, e oferece como atrativo o show
inteiramente gratuito do cantor Roberto Carlos, Coral e Orquestra.
Há amplo local para estacionamento e estão sendo organizados pela Associação Ecológica de Cubatão
passeios ciclísticos, com prêmios para os participantes. Os ônibus circulam de graça, hoje, no Município, e o acesso ao antigo bairro será
facilitado, porque todas as linhas urbanas passarão por lá.
Serra: "Cubatão venceu um desafio que parecia
intransponível"
Foto de João Vieira publicada com a matéria
A amônia acordou o Governo
A reação começou em 1984, durante o Governo Franco Montoro.
Antes disso, porém, o ex-governador Paulo Egídio Martins se assustou ao passar de avião sobre Cubatão e notar que a Baixada Santista tinha nuvens
diferentes, vermelhas, cor de aciaria da Cosipa. "Vamos acabar com isso", ordenou. Era um tempo em que ex-presidentes da
Cosipa se incomodavam com a vizinhança da vila e não aceitavam as histórias de que ela nasceu por causa da siderúrgica. Era esse o sonho dos irmãos
Parisi.
Paulo Maluf, também governador, decidiu acabar com a vila, por decreto, em 1983. Ameaçou também
fechar as fábricas que não parassem de poluir, e ofereceu juros subsidiados àquelas que quisessem colocar equipamentos antipoluentes.
"Este é o início da felicidade do povo cubatense e só há motivo para júbilo", festejou o então
secretário da Indústria e Comércio, Osvaldo Palma, com base em um estudo feito pelo grupo de empresários do chamado Vale da Vida.
Esboçavam-se as primeiras tentativas de remover os moradores da Vila Parisi para o quadrilátero
formado pelas rodovias Anchieta-Imigrantes-Padre Manuel da Nóbrega e interligação. Essa área tinha sido aterrada pelo ex-prefeito
Carlos Frederico Soares Campos, exatamente para prever a relocação de moradores de áreas de risco.
Também essa tentativa abortou. Não foi dada a devida cobertura financeira esperada por autoridades
e representantes das indústrias.
Na vila, os então 15 mil moradores (o País já passava por uma recessão que atingia a Cosipa)
continuavam respirando pó. Em Cubatão, saía uma tonelada diária de um coquetel de poluentes diversos.
Amônia - Aos anencefálicos, juntava-se uma nova categoria de doentes; os mais de 3 mil
trabalhadores de Cubatão que estavam leucopênicos, por causa de vazamentos da coqueria da Cosipa. A médica Lia Geraldo acusava duas mortes em
leucopênicos (alterações no sangue que reduzem a resistência orgânica), por câncer no pulmão e anemia aplástica.
Ainda hoje há trabalhadores leucopênicos que não conseguem acabar com a redução dos glóbulos
brancos no sangue.
Em fevereiro de 1985, depois de um longo período de chuvas fortes, o rompimento de um amonioduto da
Ultrafértil, no chamado Setor Oito (área instável próxima à Estrada Cubatão-Guarujá), a menos de dois quilômetros da Vila Parisi, obrigou as
autoridades a removerem todos os moradores, por cautela.
Poucos dias depois, o então prefeito nomeado José Osvaldo Passarelli
decretava o fim oficial da Vila Parisi e propunha a remoção dos moradores, progressivamente, para o Bolsão Oito, na interligação Anchieta-Imigrantes,
Perdeu o cargo, sendo nomeado para seu lugar Nei Eduardo Serra.
Ajuda - A amônia serviu para despertar o governo da letargia. Franco Montoro mandou o
presidente da Cetesb, Werner Zulauf, comandar a recuperação ecológica de Cubatão. Com o apoio da comunidade, dinheiro financiado do Banco Mundial e
conscientização de indústrias (a recuperação foi liderada pro Arthur Whitaker de Carvalho, da Carbocloro; Luiz Veiga Mesquita, da IAP; Décio Novaes,
da Union Carbide, e Ribemont Lopes de Farias, da Copebrás), Nei Serra e, posteriormente, José Osvaldo Passarelli, conseguiram mudar para o Jardim
Nova República os antigos moradores da Vila Parisi.
A Cetesb identificou 320 fontes de poluição das indústrias e programou, progressivamente, a
instalação de filtros e aparelhos redutores. Foram gastos US$ 450 milhões até agora para controlar 91% dessas fontes. Com a chegada do gás do Poço
de Merluza à Refinaria Presidente Bernardes, a Comgás passa a distribuir esse gás às indústrias já a partir de 15 de junho. "Controlaremos 99,1% das
fontes de poluição", assinala Nei Serra. O programa iniciado por Montoro teve continuidade no Governo Quércia e atingiu a estabilidade no Governo
Fleury, conforme atesta Nei Serra.
De Vale da Morte, a Vila Parisi se transformou no Vale
da Vida, deixando para trás a imagem de miséria e abandono que foi, até agora, a sua principal característica
Foto de João Vieira publicada com a matéria
Povo vivia na miséria, respirando pó
A Vila Parisi nasceu em 18 de janeiro de 1957, conforme o
processo nº 1.663 da Prefeitura de Cubatão. Antes do loteamento, era um imenso bananal pertencente a Silvestre Mendes. Comprado pelos irmãos
Helládio e Celso Parisi, o antigo sítio foi loteado para permitir a construção de uma "pequena cidade para os futuros trabalhadores da Cosipa",
conforme as histórias que se contam da época.
Os irmãos Parisi sonhavam em implantar uma nova Volta Redonda em Cubatão. Registraram um
compromisso de abrir 823 lotes, aterrar o mangue, construir ruas e avenidas e ainda instalar água e luz.
Só abriram as ruas, sem pavimentação, e enganaram os compradores. O loteamento nunca teve
infra-estrutura básica. As pessoas lavavam as roupas nos córregos e compravam água de caminhões-pipa. Em pouco tempo surgiram os focos de
esquistossomose e as enchentes tornaram os verões um inferno para os moradores, na sua maioria originários de estados do Nordeste.
Poluição - Em lugar de trazer a sonhada riqueza, a Cosipa e, posteriormente, as
fábricas de fertilizantes e cimento que se instalaram em torno da vila, incorporaram à paisagem dos nordestinos um novo flagelo: a poluição.
Quando, em 1982, o Governo Federal decidiu intervir indiretamente em Cubatão (na realidade,
o Município era, desde 1967, área de segurança nacional), na busca de saídas para os problemas ecológicos, a situação se mostrava alarmante.
Um estudo sigiloso da Cetesb (provocado por cientistas da Organização Mundial da Saúde e
protestos da ONU, dez anos depois da Conferência de Estocolmo) provava que cada morador da Vila Parisi estava sendo castigado diariamente por 12,5
quilos de uma mistura de quase 100 compostos químicos.
O alerta: conforme as condições meteorológicas, com a ocorrência de inversões térmicas no
inverno (vários estados de alerta e emergência chegaram a acontecer na prática, não sendo acusados pela Cetesb), essa concentração podia matar.
Sapos - O professor Paulo César Naoum apanhava sapos nos brejos da Vila Parisi, com o
auxílio do vereador Romeu Magalhães, para demonstrar cientificamente que a pele desses batráquios estava contaminada pelos poluentes. Provava,
assim, que os pulmões de velhos e crianças suportavam uma carga letal, que os matava aos poucos. O então vereador Florivaldo Cajé alardeava que,
conforme pesquisa da USP, os pulmões dos moradores da vila eram maiores que os comuns dos mortais, para que pudessem respirar melhor em meio a esse
coquetel de poluentes.
Respirava-se poeira em suspensão, cimento, pó de escória e fertilizantes, rocha fosfática
nacional com alto teor de flúor que matou os vegetais da serra e, também, pireno e antraceno, substâncias de efeito desconhecido das quais se
suspeitava proceder o câncer que matava os velhos.
"É possível encontrar em Cubatão, principalmente na Vila Parisi, todos os tipos de
anormalidade. A destruição é iminente", assinalava o professor Naoum. Alarmado, o então presidente Figueiredo ordenou: "Limpem esse lugar".
Criou-se, então, a primeira comissão do Ministério do Interior comandada por um coronel que
se notabilizou em brigar com os índios, quando presidente da Funai: João Carlos Nobre da Veiga.
Natimortos - Nessa mesma época, os vereadores Romeu Magalhães, Dojival Vieira dos
Santos, Armando Campinas Reis, Florivaldo de Oliveira Cajé e Mychajlo Halajko Júnior denunciavam: o número de natimortos crescia em Cubatão, as
crianças nasciam anencefálicas (sem o cérebro).
Em setembro de 1982, um estudo da Cetesb revelou que a concentração de material particulado
no ar da Vila Parisi tinha chegado a 1.784 microgramas por m³ no dia 19 de abril. Segundo a OMS, bastam 875 microgramas para matar crianças e
velhos, dependendo do tempo de intoxicação.
Paralelamente, o vereador Manoel Ubirajara Pinheiro Machado, curiosamente sobrinho do
ex-vereador Francisco Eleutério Pinheiro, que foi um dos pioneiros na instalação do bairro, protestava: além da poluição, o povo vivia na absoluta
miséria, sem escola, policiamento, socorro médico e, principalmente, saneamento básico.
Nada - A comissão do coronel João Carlos Nobre da Veiga (já na reserva) abortou, 18
meses depois de criada, um desalentado relatório final para informar ao preocupado João Batista Figueiredo que não havia dados disponíveis. "Ninguém
sabe ao certo o que acontece em Cubatão".
Veiga reclamava uma ajuda financeira de Cr$ 3 trilhões para executar novos estudos e obras
de saneamento na região. O então prefeito José Oswaldo Passarelli concluiu que a comissão era uma farsa. E denunciou: "Na verdade, não temos nada
para mostrar à população. Respostas positivas e medidas práticas não foram apontadas pela comissão".
Em 1982, já corria mundo a expressão cunhada pelo jornalista Randau Marques sobre a triste
sina da Vila Parisi: "É o Vale da Morte".
Nas chuvas de verão de 1982, toneladas de troncos de árvores desceram pelos rios Cubatão,
Piaçagüera, Perequê e Moji. A natureza morria, as encostas da Serra do Mar caíam e ameaçavam atingir tanques e dutos.
Parecia que haviam lançado desfolhantes químicos sobre os zanzalás (flores de Deus) que
Afonso Schmidt (maior escritor de Cubatão) sempre descrevia nas suas obras.
De Vale da Morte, a Vila Parisi se transformou no Vale
da Vida, deixando para trás a imagem de miséria e abandono que foi, até agora, a sua principal característica
Foto de João Vieira publicada com a matéria
Só os gatos permaneceram no bairro
Na Vila Parisi só ficaram os gatos. Segundo a sabedoria popular,
gato não segue o dono, prefere ser fiel à casa.
Nei Serra acha engraçado só encontrar gatos. Mas, fica maravilhado com o deserto que restou da
vila, sem casebres. Sonha com uma área verde, com 10 mil pessoas trabalhando nos terminais de carga, e informa que, com a venda dos lotes, serão
construídas pelo menos 2.500 casas nos bolsões Sete e Nove, para abrigar moradores de favelas e áreas de risco, e também 200 pessoas que, tiradas da
Vila Parisi, estão provisoriamente abrigadas em um acampamento na beira da Estrada Cubatão-Guarujá.
"Isto aqui não é mais o Vale da Morte, agora vai gerar vida melhor para muita gente, acabou o
inferno da Vila Parisi", explica.
Repentista - Dar o golpe final, segundo ele, não foi fácil. Depois da remoção oficial e do
cadastramento, mesmo com a construção do Jardim Nova República, ocorreram muitas invasões. A remoção desses invasores foi cuidadosamente negociada
pelo ex-presidente da Cursan, José Lopes dos Santos Filho, e pelo atual, Rafael Moura Campos. A assessoria jurídica da Prefeitura também acelerou o
procedimento judicial para indenizar os proprietários dos lotes e negociar com as famílias.
Conviver com os gatos foi o que restou aos três últimos solteiros da Vila Parisi - Deílson, José e
Isaac -, que saíram do bairro, para o alojamento, às 12 horas do dia 13 de maio. Mal ingressaram com os pertences no caminhão da Prefeitura, os
tratores da Cursan derrubaram o barraco onde moravam. Perto dali, na Rua Sete, nº 442, José Batista de Santana cantava a sua versão da Despedida
da Vila Parisi, sem esconder que dava um churrasco de gato.
Não volta - "Adeus à Vila Parisi e ao povo que fica aqui/Trinta anos que eu morei, só fez me
divertir. Uma horta que eu plantei, pouca coisa eu colhi./Os ladrões comeram tudo, pouca coisa eu comi. Deixamos a coisa de lado, nessa mesma
ocasião. Despedindo do povo todo, pegando de mão em mão. Peguei a minha bagagem e pus no carro do patrão./Viva o prefeito Nei Serra, que nos tirou
da poluição".
José Batista de Santana mudou-se para o Conjunto Habitacional Humaitá, em São Vicente. Fez questão
de deixar os versos com os funcionários da Cursan: "Salve João Carlos, os funcionários da Cursan/Eles, junto com Adelina, nos tiraram da poluição.
Nós estamos fora daqui, estamos com a saúde nas mãos. Só se vê terraplenagem, nesse belíssimo torrão. Quem tá fora só vê, tá parecendo sertão. Adeus
à Vila Parisi, nós não volta aqui mais não".
O secretário municipal de Meio-Ambiente, Raul Christiano Sanchez, pretende sugerir ao prefeito Nei
Serra que esses versos sejam gravados em uma placa a ser colocada no antigo Vale da Morte. |