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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - Poluição
O vale da morte (2)

Em 16/9/1982, o jornal santista A Tribuna revelou as causas das malformações congênitas encontradas em grande número entre os recém-nascidos de Cubatão (ortografia atualizada nesta transcrição):

No ar de Cubatão, o produto químico que está causando das malformações
é encontrado em grande volume
Foto: publicada com a matéria

Dióxido de enxofre é a causa das malformações

CUBATÃO - Os estudos do cientista Reinaldo Azoubel já isolaram um produto químico existente em Cubatão que provoca malformações congênitas. Trata-se do anidrido sulfuroso, um dos nomes do dióxido de enxofre, substância das mais comuns existentes em Cubatão.

O cientista ainda está na fase inicial das experiências, e submeteu ratas engravidadas, no quarto dia da gestação, a gases de anidrido. Resultado: a primeira ninhada nasceu com malformações congênitas. Azoubel não adiantou maiores detalhes da experiência, nem autorizou a divulgação, pois teme ser chamado de alarmista. "Sou um homem de ciência, mas considero importante alertar as autoridades. É necessário fazer estudos urgentes para completar as pesquisas iniciadas por Paulo Naum, que apontou a presença de dióxido de enxofre no sangue dos moradores da Vila Parisi. Os estudos para apontar a causa não podem ser genéticos, pois a razão é ambiental e não hereditária", disse ele.

As pesquisas de Azoubel em Ribeirão Preto foram inicialmente reveladas pelo vereador Romeu Magalhães, PDS. Este vereador vem lutando, há dois anos, para que a Prefeitura contrate os serviços de Azoubel, sem sucesso. Há um mês, com exclusividade, A Tribuna verificou na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, unidade da USP, as primeiras experiências de Azoubel. Ele submeteu ratas engravidadas a monóxido de carbono. Agora, pretende continuar as experiências com dióxido de enxofre. A segunda ninhada vai, certamente, comprovar o primeiro teste. Na atmosfera de Cubatão são lançadas 4.090 toneladas de dióxido de enxofre por mês.

Geneticista - O vereador soube ontem que a Prefeitura vai contratar hoje o geneticista Antônio J. Brussolo da Cunha, da Escola Paulista de Medicina. O contrato será assinado pelo prefeito José Osvaldo Passarelli, às 14 horas, na presença dos cientistas Roque Monteleone e Décio Brunoni.

"Nada tenho contra esse cientistas. Mas, achava melhor contratar um morfologista, depois das descobertas de Reinaldo Azoubel. Na opinião de técnicos, Azoubel é o morfologista indicado. Ainda assim, se a Prefeitura preferir um geneticista, a Organização Mundial de Saúde considera Fernando Arena o melhor deles", disse Romeu. Hoje, o cientista Paulo Naum estará às 10 horas com Romeu Magalhães e, às 20 horas, fará palestra na Associação das Vítimas da Poluição.

O que faz esse gás - O anidrido sulfuroso também é conhecido como dióxido de enxofre, SO2, e se encontra com abundância em Cubatão. Usa-se para a fabricação de ácido sulfúrico. Decompõe-se pela luz, fazendo-se incidir um raio de luz através de uma proveta contendo o gás. Inicialmente, ele se torna límpido e transparente. Porém, ao fim de alguns minutos, todo o tubo de ensaio onde ele é injetado se torna cheio de névoa, proveniente da decomposição do dióxido de enxofre. Deixando-se permanecer algum tempo na escuridão, o gás torna-se novamente limpo devido à combinação do enxofre com trióxido de enxofre (outro produto encontrado em abundância no ar de Cubatão), ou à condensação de produtos sólidos sobre as paredes da redoma de vidro.

Essa descrição pode ser encontrada no livro Química Inorgânica Moderna, de J. W. Mellor. Ele afirma que o anidrido sulfuroso é um gás incolor, um veneno violento para o sangue, nocivo à vegetação, e constitui um dos vapores perniciosos que dão lugar a reclamações nas regiões em que o gás está presente.

Essa descrição explica o fenômeno da "chuva que morde" que ocorre com frequência no Jardim São Marcos e na Vila Parisi. Foram os moradores daqueles bairros que deram esse nome ao orvalho que cai de manhã, próximo ao parque industrial de Cubatão. Trata-se de uma chuva ácida, composta de anidrido sulfuroso. Em contato com a pele, a chuva arde, queima, e por isso o povo diz que ela "morde".

Esse gás é duas vezes mais pesado do que o ar. Isso significa que o gás fica à flor da terra. Em consequência, o gás pode ser recolhido por deslocamento ascendente do ar. A solução de anidrido é fortemente ácida e apresenta propriedades gerais características dos ácidos.

Fábricas que o produzem - Conforme levantamento feito pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, as fábricas que se seguem produzem o dióxido de enxofre: Refinaria Presidente Bernardes, da Petrobrás; Ultrafértil, na fábrica do Jardim São Marcos; Copebrás (derivados), Union Carbide e Estireno.

Ao todo, são lançadas quatro mil toneladas por mês de dióxido de enxofre na atmosfera de Cubatão. Somada aos derivados - ácido sulfúrico, gás sulfídrico e trióxido de enxofre - essa quantidade chega a perto de cinco mil toneladas mensais.

A SBPC conseguiu isolar efeitos do dióxido: destruição da mucosa nasal, danos ao sistema respiratório e, agora, segundo Reinaldo Azoubel, malformações congênitas.

Segundo a SBPC, quase todas as indústrias de Cubatão lançam no ar dióxido e trióxido de enxofre, os poluentes emitidos em  maior volume na Baixada Santista, e que chegam a cerca de 7 mil toneladas por dia. São gases produzidos pela queima de petróleo de alto teor de enxofre, impróprio para o uso em regiões urbanas.

Impróprio para a vida - Ontem, o Grupo de Estudos de Poluição do Ar, formado por cientistas da Universidade de São Paulo/Instituto de Física, divulgou o relatório final da Avaliação Preliminar da Qualidade do Ar de Cubatão. Os dados são aterradores.

Eles usaram dados fornecidos pela Cetesb e também o Laboratório do Acelerador Pelletron, do Departamento de Física Nuclear do IFUSP - Instituto de Física da USP -, que favoreceu a utilização, em caráter extraordinário, do acelerador, para possibilitar a realização de estudos com a utilização de computadores.

O trabalho é assinado pelos cientistas Paulo Artaxo Neto, Manfredo H. Tabknics, Vera L. Soares, Tarsis M. Germano e coordenado pelo cientista Celso M. O. Orsini.

Uma das conclusões dos técnicos: "Em Cubatão, armou-se grave problema de poluição do ar, fruto da inconsciência e imprevidência dos homens, na busca ansiosa do lucro e do 'progresso' (aspas no original) a qualquer custo. Por ironia, o que se conseguiu, porém, foi uma inequívoca demonstração de que esse tipo de progresso, traduzido num processo de industrialização maciço, distorcido e indiscriminado, não traz, necessariamente, o bem-estar das comunidades mais envolvidas. Pelo contrário, o efeito é o inverso".

Os cientistas concluíram que os níveis de Material Particulado Inalável Fino são moderadamente elevados em Cubatão-Centro e na Vila Parisi.

Nessa mesma região da Vila Parisi, são extremamente elevados os índices de particuladas de material em suspensão fino, inalável pelas vias respiratórias, em consequência das reações da mistura de gases e de rochas fosfáticas, com a presença do dióxido de enxofre. Em quantidades elevadas, foram encontrados os seguintes elementos: cromo, níquel, zinco, cobre, zircônio e estrôncio.

"Praticamente todos os elementos detectados na Vila Parisi apresentam-se em concentrações médias relativamente elevadas, em comparação com a Capital e outras áreas urbanas", revelam os cientistas.

E concluem: "Episódios graves de poluição do ar, a nível de Estado de Emergência, segundo a legislação paulista, devem estar ocorrendo com alta frequência (talvez mais de duas dezenas) anual, em Vila Parisi".

Cubatão foi destaque nas páginas 54 a 56 da revista paulistana Veja, na edição de 4 de julho de 1984 (ortografia atualizada nesta transcrição):

Chuvas ácidas, encostas instáveis e veneno no ar: trava-se em Cubatão uma guerra química
Foto: Carlos Femerich, publicada com a matéria

CIDADES
Tragédia diária
Cientistas explicam por que Cubatão é um inferno

Sempre que eventos catastróficos desabam sobre Cubatão, no sopé da Serra do Mar, a 60 quilômetros de São Paulo, saltam das gavetas dos administradores planos de salvamento do município, notório por ostentar, nas estatísticas da Organização Mundial de Saúde, o triste título de "cidade mais poluída do mundo".

Foi assim há três anos, quando um vereador denunciou a ocorrência na cidade, em níveis elevadíssimos, de casos de anencefalia, um tipo de má-formação congênita que produz bebês sem cérebro.

À tragédia de Vila Socó, ocorrida há quatro meses e que matou pelo menos noventa pessoas na explosão causada pelo vazamento de um oleoduto que atravessava a serra bem abaixo dos barracos, seguiram-se também lúgubres recados.

Para os cientistas de diversas instituições de pesquisa do país debruçados sobre o vale do Rio Cubatão, no entanto, a brutal realidade do lugar fornece motivos de sobressaltos cotidianos e é tão alarmante quanto as tragédias.

Atualmente, geólogos, pesquisadores do meio ambiente, biólogos e meteorologistas, trabalhando em grupos e em estudos independentes, podem traçar com precisão uma crônica do estado de coisas na cidade. O quadro, garantem, é cinza e sem horizonte para os 110.000 habitantes daquela faixa de terreno.

"Caso as empresas instaladas no município comecem agora a cumprir todas as exigências de instalação de filtros em suas chaminés, ainda serão consumidos cinco anos até que o ar da cidade se torne respirável", diz João Baptista Galvão, gerente de controle de poluição da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental de São Paulo, Cetesb.

De acordo com os cálculos da companhia, os 22 complexos industriais que lançam – em muitos casos sem qualquer tratamento – 1.000 toneladas diárias de gases altamente tóxicos (veja ilustração) no meio ambiente da cidade precisam gastar pelo menos 150 bilhões de cruzeiros em equipamentos antipoluentes.

Vila Parisi: no foco dos efeitos da poluição
Foto: Carlos Femerich, publicada com a matéria

Intoxicação por benzeno – Atingidas pela recessão da economia, muitas das empresas encontrarão dificuldades para materializar seus planos – traçados por exigência da Cetesb – de modernização no que diz respeito ao tratamento de dejetos tóxicos.

A crise econômica, por sinal, é um dos fatores agravantes dos índices de poluição ambiental em Cubatão. De acordo com um estudo conduzido pela Diretoria de Recursos Humanos da Secretaria Estadual do Trabalho do Estado de São Paulo, muitas empresas estão contendo custos industriais numa área vital. "Há uma diminuição acentuada nas operações de manutenção preventiva", explica o diretor do órgão, Luiz Carlos Morrone. "Isso aumenta o número de pequenos acidentes e vazamentos de gases para a atmosfera".

Pode ser creditada a um incidente desse tipo a intoxicação de 83 empregados da Companhia Siderúrgica Paulista, Cosipa, que durante vários dias respiraram emanações de benzeno na coqueria, a seção da empresa onde trabalhavam. A exposição prolongada ao benzeno provoca uma moléstia chamada leucopenia, caracterizada pela diminuição drástica na quantidade de glóbulos brancos no sangue.

Depois de visitar as instalações da Cosipa, na semana passada, técnicos da Secretaria do Trabalho encontraram vestígios de pelo menos dois focos de vazamento de benzeno na coqueria da empresa. No entanto, nem só de benzeno – um subproduto da fabricação do aço, da refinaria do petróleo e de outros processos industriais químicos – morre a atmosfera de Cubatão.

Paira no ar da cidade um verdadeiro coquetel de horrores. Primeiro cientista a estratificar os componentes lançados aos céus da cidade, o físico Celso Orsini, coordenador do Grupo de Estudos de Poluição do Ar da Universidade de São Paulo, espantou-se com a quantidade e, no caso, a má qualidade dos compostos sólidos em suspensão na atmosfera de Cubatão.

Orsini detectou na poeira que cobre diuturnamente a cidade, por exemplo, óxidos de ferro e manganês, sílica, pó de carvão e uma infinidade de outros rótulos químicos, invariavelmente tóxicos. Sua lista se prolonga ainda pelos sulfatos, fosfatos e pelos ácidos nítrico e fosfórico. "Anualmente os níveis de concentração desses poluentes elevam-se pelo menos uma dezena de vezes acima do máximo aceitável", alerta o físico.

Tal índice máximo, 875 microgramas por metro cúbico de ar, marca o ponto em que a pessoa que inala a mistura começa a ter sua saúde fortemente abalada, com sintomas imediatos: fraqueza, tonturas e, em alguns casos extremos de debilidade orgânica, morte imediata. Para esses casos de gravidade máxima, a Cetesb prevê a evacuação pura e simples da cidade. Só que não tem planos de como isso pode ser feito e a medida parece destinada a permanecer no papel.

Para piorar as coisas, quando chove na região muitos desses compostos, especialmente os sulfatos, reagem com a água dando origem a um fenômeno avassalador: as chuvas ácidas. De acordo com recente levantamento do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, IPT, em consequência disso as encostas íngremes da Serra do Mar que contornam Cubatão correm gravíssimo risco de desabar.
Sem árvores e raízes, e queimadas pelas chuvas ácidas, as encostas tornaram-se ameaçadoramente instáveis.

"Só há uma definição para o nível de perigo de desabamento ali: uma bomba-relógio geológica", afirma o geólogo Fernando Prandini, que dirigiu os estudos na área. "A queda do barranco é mais que provável, é previsível", alerta ele. A única saída vislumbrada pelo cientistas para desativar a bomba é um trabalho de drenagem e de contenção de encostas.

Uma catástrofe nas proporções previstas por Prandini traz um ingrediente ainda mais terrível: as avalanches destruiriam tanques de cloro e amônia e a erupção desses gases, mortais, se faria sentir em toda a região da Baixada Santista.

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O vale asfixiado (clique >>aqui<< ou na imagem acima para ampliá-la)
Infografia: Paulo Nilson, publicada com a matéria

Cubatão no laboratório – Em outro front de sua tarefa de decifrar a trilha dos venenos em Cubatão, os cientistas se debruçam sobre os 10.000 habitantes de Vila Parisi, o bairro da cidade mais diretamente atingido pela poluição. Todos se identificam em um ponto: relacionam os índices de poluentes no ar com a ocorrência de doenças.

O professor de Morfologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Reinaldo Azoubel, encontrou em Vila Parisi um número de abortos espontâneos pelo menos 20% mais elevado que o detectado em outras cidades paulistas. Para se certificar de que o ar da cidade era o fator predominante no desencadeamento do fenômeno, ele reproduziu no laboratório a atmosfera de Cubatão e ali manteve fêmeas de ratos grávidas respirando a mistura durante vários dias. "Todas as crias nasceram com más-formações ósseas, quando as fêmeas dos ratos não abortaram", disse Azoubel.

Em Vila Parisi, os exemplos de mães com casos de nascimentos de crianças defeituosas na família são comuns. Maria das Dores dos Santos, 26 anos, que mora há catorze anos em Cubatão, em 1980 deu à luz trigêmeas e só uma das crianças sobreviveu. Uma delas não tinha braços e pernas, quando nasceu. A outra contraiu sarampo e morreu aos 9 meses.

Maria das Dores: só uma das trigêmeas sobreviveu
Foto: Carlos Femerich, publicada com a matéria