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HISTÓRIAS E LENDAS DE BERTIOGA
A gruta que chora

Uma lenda do litoral paulista

A lenda da Sununga foi contada pelo historiador Francisco Martins dos Santos em artigo no jornal santista A Tribuna, em 7 de janeiro de 1951, página 17 (2º caderno), com ortografia atualizada nesta transcrição:


Imagem: reprodução parcial da matéria original

A gruta que chora

(Lenda da sununga)

Francisco Martins dos Santos

A casa do Zé do Barro estava cheia de luzes naquela noite morna de agosto. Sanfonas e violas gemiam lá dentro e parecia que toda a gente do Itaguá, do Tenório, da Praia Grande, das Toninhas e dali, da Enseada, comparecera aos fandangos daquele ano.

Os cantadores do Divino já se haviam ido para os lados de Santa Rita, mas o redeiro emendara Folia aproveitando o pretexto.

- Disgraça pôca é bobage... o pêxe tá dando... sêo Macié tá comprando... bamo bebê... bâmo dançá minha gente!...

Era um filósofo o Zé do Barro, e aquele rancho grande, logo atrás da praia, entre aglomerados de abricós e cajueiros, com suas varandas largas em torno e suas janelas sempre abertas, claro, alegre, cheio de flores e de passarinhos, era bem o seu retrato de caiçara risonho e amigo de todo mundo.

Um cheiro bom de ubatubana corria pela casa e saía lá fora, entre o estrupido da arrelia e o estrepitar das canecas.

Zé do Barro não parava, e ria, e falava com um, com outro, animava os músicos, atirava piadas aos amigos, brincava com as damas e não se esquecia de uma talagada de vez em quando. Era um pai da vida, que se alegrava com as alegrias alheias. Seus olhos deram no Antonio Laurindo de Santa Rita:

- Antonio Laurindo! O dotô que vai pra Sununga tá hí... Bâmo pra ele uma dança de S. Gonçalo que ele qué bê! Cadê o Parú? Esse capeta que puxe a gente!...

O doutor Avelino, visitante de São Paulo, lá estava de fato, na varanda da frente, debruçado na janela, a atiçar o Zé do Barro com olhares de lembrança, no sentido da dança que não conhecia.

Dali a instantes, Antonio Laurindo e o Parú, tocados pelo seo Renê, um francês-caiçara do Taguá, apareceram no meio da sala, serenando a arrelia e arrumando os pares e as coisas para a gonçalina. A imagem do santo logo surgiu, trazida lá do fundo do rancho, enfarruscada, como se viesse do fumeiro, e pouco depois aparecia num dos cantos da sala, sobre um soco improvisado, para presidir à função.

A dança começou com a cantoria de sempre e os pares em desfile e cumprimentos rasgados, de busto inteiro, diante do santo:

São Gonçalo d'Amarante...

São Gonçalo d'Amarante...

Casamenteiro das velhas

Casamenteiro das velhas... âããhhh

 

Por que não casais as moças...

por que não casais as miças...

Que mal bos fizeram elas

Que mal bos fizeram elas... ãããhhh

 

Oh meu São Gonçalo

Meu São Gonçalinho

Que come o meu pão...

Que bebe o meu binho...

O doutor Avelino se divertia com o canto fanhoso da caiçarada foliona, com os remelexos e bamboleios dos pares, o zangarreio das violas e, por fim, a agitação das umbigadas, na fase aguda da dança tradicional.

Uma voz chamava o visitante:

- Sô dotô... Sô dotô... Pra que hora quereis a canoa aminhâ?

Doutor Avelino voltou-se; era o remeiro do Maciel, o dono das canoas "de frete".

- Logo cedo, às sete, seo...

- Puruba sim sinhô, pra bos sirbi!

- Pois é, seo Puruba, às sete está bom... mas diga ao seo Maciel que mande junto aquele camarada que conhece a história da gruta que nós vamos ver, entendeu?

- Sim sinhô, sô dotô... aquelezinho que conhece é meu mano, sabeis? Ele é que é o Puruba de berdade... - e o praiano desapareceu em seguida, nas sombras do pequeno bosque.

Zé do Barro, estabanado, a oitenta graus de pressão da ubatubana, chegava naquele instante junto à janela da varanda.

- O sinhô gostô do S. Gonçalo, dotô?

- Se gostei, meu amigo; seu pudesse eu viraria caiçara como vocês... A vida é muito mais bonita onde e como vocês a vivem...

Doutor Avelino falava como quem estivesse saturado do grande meio e seus olhos tinham lampejos de inveja cheia de esperança. Zé do Barro ficou ainda mais amolecido com as palavras do doutor, e enquanto este se retirava para descansar, ele ficava ali mesmo, debruçado na janela, os olhos muito abertos para a noite, para o mar, para o céu, vendo tudo irisado pela inspiração alcoólica, ouvindo vozes aveludadas sobre as águas e pelo espaço sideral.

Pela note a dentro foi indo o fandango bulhento, do praiano feliz que tinham um rancho, uma rede de pescaria, uma janela para olhar a natureza trescalante, e um coração para sonhar...

No dia seguinte, bem cedo, lá estava o doutor Avelino à frente do seu pequeno bando, fazendo hora na praia, olhando o mar manso, espelhado, enrubescido do primeiro sol, a brincar com os pés nas maretas, a revolver as conchas na areia, a enamorar-se daqueles horizontes, daquelas serras virgens e daqueles aromas matinais que um ligeiro pitiú de certas luas não chegava a anular, pensando outra vez, que a verdadeira vida estava ali, entre aquela gente e naqueles lindos lugares.

Havia no dorso da praia um exército de canoas de todos os tamanhos, as proas levantadas sobre rolos, apontando o infinito.

Momentos depois, a guaperubú do Manciel rompia a maré, para o largo da Enseada do Flamengo, a rumo do Saco da Ribeira que se pintava ao longe, ao fundo daquela concha de terra verde, ao grasnar dos carapirás em vôo baixo ao saltarelhar vagabundo das tainhas.

Do Saco da Ribeira para a Sununga foi um arranco de quinze minutos a pé, pela vereda de arenito toda bordada de aleluias e, por fim, a visão dadivosa e mansa da baía da Fortaleza, com seu recorte de cromo e uma rampa de areia deslumbrante de brancura, onde os pés se enterravam - num atrito de alpaca de seda, a famosa Sununga.

Ao canto, bem ao fundo daquele imenso lençol de areia solta inclinar-se para as ondas bulhentas, lá estava a gruta encantada, que a voz do tempo apelidara "A Gruta que chora".

A imaginação do doutor Avelino desatou-se em arroubos, diante da pequena caverna lendária, que o trouxera de longe para o transporte emocional do misterioso e do desconhecido. Ansiava por fazê-la chorar, por ver aquelas lágrimas de prata que a tradição dizia verterem do alto da lapa ao soar de gritos humanos. Ele avançara sozinho, precipitando os passos, para ser o primeiro a colher a emoção do fato estranho, e, já da ponta da pedras laterais, que avançavam como braços de esfinge para dentro do mar, levantou a voz em palavra a esmo:

- Chora! Ei! Vamos! Chora!

Quando os outros chegavam, começava o espetáculo da natureza; caíam na areia grossa da boca da caverna, em toda a sua largura, as primeiras gotas cristalinas, como em princípio de um pranto. Doutor Avelino continuou a gritar, e as lágrimas foram amiudando e engrossando, caindo em abundância de cada ponta de folha, de cada epífita suspensa, de cada ruga de pedra da fronteira rasgada em arco.

Houve em seguida um silêncio de meditação; sentaram-se todos à entrada daquela boca de pedra aberta para o oceano, e entre eles e o azul escandaloso do céu ensolarado, passava a cortina de lágrimas, em cambiâncias de cristal de boêmia. Confirmava-se a tradição, para encanto do espírito exaltado do doutor da cidade, e o silêncio dos visitantes era o retrato da sua imaginação traumatizada ao contato do mistério.

Foi o Puruba, em sua inconsciência de simples, quem interrompeu o recolhimento dos visitantes:

- vendo, sô dotô? Bunito, não? Mais a história é muito mais bunita...

E foi assim, sob o assentimento do doutor Avelino, acordado ao som metálico daquela voz, que o Puruba, ajudado às vezes pelo irmão, o remeiro do Maciel, desenrolou de novo a história velha que já contara a tanta gente.

***

Naquele tempo a Enseada dos Miramomis era quase virgem do homem branco; quase, porque os franceses chegavam por ali de vez em quando - os coaraciabas - amigos que eram dos tupinambás. Iperoig era então o reino exclusivo dos homens de bronze da taba de Aimberê e Coaquira, senhores de Ubatuba, uma esmeralda grande a encastoar-se no anel das águas da enseada.

Além, a dez quilômetros de distância, na várzea da Sununga, ficavam as ocas de Coaquira, ao alcance regular das ubás de Iperoig e do som costumeiro dos trocanos da sede, repetido nas ocas intermediárias.

Potira, a virgem tamoia, filha de Coaquira, estava noiva de Jagoanháro, jovem guerreiro, e o casamento deles seria ao fim de "duas luas".

Havia a pairar sobre aquele povo dois motivos recentes de tristeza e inquietude - a caçada intermitente de suas mulheres, realizada pelos portugueses de Bertioga, e um castigo de Tupã, o aparecimento da "cobra grande", um monstro de olhos verdes que chispavam fogo, no costão da Sununga, perto das ocas de Coaquira, vinda da Guãxima, ao que diziam, levantando ondas na passagem.

Afirmavam alguns índios pescadores que o rabo do monstro ferira sete vezes a terra, na ponta do pequeno promontório, e sete fontes haviam brotado do chão ferido. Seguira a serpente enorme para diante, rabeando sobre as águas e chegara às areias da proximidade do sítio de Pindobussú. Ali chegando, a cauda imensa do monstro ferira a rocha, abrindo nela uma gruta profunda, onde ele se aninhara. Naquele instante a terra subira, o mar se refrangera e avançara de nvo, invadindo a gruta numa explosão de raiva, recuando outra vez a um rugido espantoso da "cobra grande".

Tão grande fora o duplo ronco e tão despropositado naqueles lugares que, ao longe, a indiada de Coaquira gritara assustada, correndo para a praia, a ver o que acontecera:

- Pará cyninga! Pará cyninga!

Viram todos então, sem compreender, o fenômeno da costa refrangida, a praia em rampa, o mar embravecido onde fora sempre remançoso e calmo, como o próprio lugar.

Apenas dois ou três tamoios que pescavam àquela hora tinham visto a "cobra grande" e mostravam aos outros a gruta que não existia anteriormente e onde ela se internara.

Os pajés da tribo, a sacudir seus maracás sagrados, pressagiavam desgraças para breve e para quem se aproximasse do bicho.

E dali por diante, nas luas cheias, uma cunhatã tamoia desaparecia das ocas, sem que ninguém visse como desaparecera, vendo todos apenas, pela madrugada, um rastro enorme e grosso que se prolongava pela areia, na direção da gruta.

Pensou Coaquira, embora ferido em seu orgulho, em abandonar aquelas terras onde nascera e onde fora sempre feliz, mudando-se para a Maranduba, mais além, a salvo do monstro que acovardava os seus guerreiros e que ninguém queria combater.

Naqueles dias, caçadores portugueses, pelo menos ao que diziam, de novo aprisionaram diversas cunhatãs tamoias de Malembipe e os trocanos soavam, falando a linguagem da guerra. Aimbirê e Pindobussú reuniam as tribos para um movimento geral dos tupinambás de toda a costa vicentina contra os peros, os portugueses de Bertioga, fazendo esquecer em parte os fatos da "cobra grande".

Foi naquela altura que dois abarés dos peros chegaram a Iperoig para apaziguá-los, afirmando-lhes que os portugueses não eram culpados, que eram os franceses que roubavam as suas mulheres, para lhes dizer depois que foram os portugueses e atirar contra eles a vingança dos tupinambás. Vinham os pai-abunas para lhes propor uma paz de fato ou mais do que isso, uma aliança, afirmando-lhes que assim determinara o seu Deus, que era mais forte do que Tupã.

Um movimento de ódio e temor pincelado de curiosidade arrastara índios e índias para junto dos dois padres, ameaçando-os de morte pelas intrigas dos pajés.

Chegara então a lua cheia e os pavores de Coaquira se renovaram. Uma cunhatã decerto desapareceria para sempre do seu povo, sem reação e sem defesa, e isso o desesperava. Estava o chefe a parlamentar com Pindobussú sobre as coisas da guerra e a presença dos abarés, quando um mensageiro, cheio de terror, veio lhe dizer que Potira, a sua filha, fora carregada pela "cobra grande".

À notícia cruel, Coaquira e Jagoanháro precipitaram-se, loucos de raiva e de dor, para as ocas distantes.

Ia muito avançada a madrugada quando eles chegaram, e Jagoanháro pôde ver apenas, na entrada da gruta do monstro misterioso, um rastro de sangue sobre a areia branca, que uma réstia de luar ainda mais alvejava.

Desesperado, o guerreiro tupinambá investiu pela caverna, aos gritos de Coaquira e dos outros companheiros. Um ronco enorme soou em seguida, na garganta escura da gruta, seguido de um grito lancinante, e depois o silêncio, um silêncio de morte assombrado pelo luar.

Os homens de Coaquira desertaram ouvindo o ronco, e o morubixaba amarrado ao lugar, como um daqueles guanandis da várzea, pela primeira vez teve vontade de chorar, ao sentir-se sozinho, frágil como criança, acovardado como uma mulher, incapaz de levar a cabo o socorro à filha que queria tanto e a Jagoanháro, que em breve devia ser seu filho e futuro chefe em seu lugar, destroçado em seu orgulho de rei que já não poderia reinar.

Pindobussú ameaçou céus e terras quando soube da morte de Jagoanháro, devorado pela "cobra grande", e jurava enviar uma legião de ubás para dar combate ao monstro. Um pajé veio dizer-lhe, então, que tudo seria inútil, e que se aqueles padres eram mesmo santos, e se o seu Deus era mais forte do que Tupã, como dizia, eles que dessem uma prova disso naquela contingência, libertando o povo tupinambá da estranha serpente surgida nas terras de Coaquira. Se assim acontecesse é que seriam mesmo santos e seria o seu Deus maior do que Tupã, porque, de outra forma, acender-se-iam desde logo as fogueiras que deviam assá-los para o banquete.

Nóbrega e Anchieta, pois que eram eles os abarés dos portugueses, aceitaram o desafio dos pajés de Pindobussú e se foram, em expedição, ao lado dos morubixabas tupinambás e uma legião dos seus guerreiros, enquanto os pajés ficavam em sua poracéia bárbara, prelibando o fracasso dos peros.

Rompia a manhã no lado dos céus de Picinguaba, quando a tribo inteira de Coaquira, com seu chefe e os tuchauas de Iperoig, tendo os dois padres à frente, se apresentaram diante da gruta da "cobra grande".

Manoel da Nóbrega ia avançar quando Anchieta colocou-se adiante dele e avançou rapidamente para a caverna, a mão alçada no ar, bradando:

- Apresenta-te em nome de Deus! Em nome de Deus!

Um rugido pavoroso irrompeu do fundo da garganta escura e chispas de fogo fuzilaram de dois olhos verdes. A pedra tremeu a uma convulsão do monstro, e, subitamente, uma cabeça enorme surgiu à luz da manhã, avançando para o pequeno e frágil pai-abuna.

A indiada, transida de medo, comprimia-se lá fora, amparando-se mutuamente para não fugir, assombrada ante a coragem daquele homem magro, pálido e de roupagem negra, que num supremo desprezo à vida, ainda protegia o companheiro.

Outro rugido imenso feriu o silêncio daquele instante supremo, e a cabeça do monstro projetou-se sobre o padre, mas, naquele momento, o abaré dos portugueses, enfrentando a sua fúria, suspendera no ar a cruz do seu Deus, que arrancara do peito, e, então, diante de toda aquela gente bárbara houve um estampido enorme, enquanto uma densa nuvem de fumaça, tresandando a enxofre, envolvia a cena.

Ao dissipar-se o fumo, lá estava o padre imóvel, no mesmo lugar, como uma figura de pedra negra, a mão alçada no espaço e nela o crucifixo, mas a "cobra grande" desaparecera para sempre, deixando revolvida a areia e entulhada a garganta onde se escondia e onde para sempre ficariam Potira e Jagoanháro, unidos no noivado eterno da morte.

- Anhanga! Anhanga! - bradavam os tamoios na beira da praia.

- Potira! Potira!... - gritava Coaquira, diante da caverna, enquanto Pindobussu curvava a cabeça para o chão, em sinal de respeito, curtindo em silêncio a sua dor serena.

E, naquele instante, viram todos que, aos gritos do morubixaba tupinambá, vertia a gruta lágrimas abundantes, chorando como um ser humano, como se caissem dos seus olhos, lá de cima, um chuveiro de lágrimas ardentes.

***

O Puruba terminava a sua descrição:

- Esse bicho, sô dotô, era o capeta... As sete fonte, onde ele bateu co rabo sete vêis, tão lá, mais prá riba, prá ponta dessa costera... Este que era manso como o de Santa Rita, ficô brabo e co essa sununga, esse ronco que vai longe e que ficô dando nome ao lugá. E essas lágrima, sô dotô, podeis crê, é da índia noiva, que o bicho incantô e que tá incarnada nesta gruta; é o choro da moça, quando ôve a vois de arguém, e pensa que é do noivo ou que é do pai, gritando disisperado pur não podê li sarvá...

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