Foto: Du Zuppani, publicada com a matéria, páginas 42 e 43
Uma história a ser contada
A partir dos relatos obtidos junto a parentes e amigos, a pesquisadora Elaine Nehme está sendo capaz de reconstruir, inclusive, a origem das famílias que vieram para Itatinga
Bisneta, neta e filha de ex-trabalhadores da Usina de Itatinga, Elaine Nehme tem muito para contar. De ouvir falar, de ver e de pesquisar a
história de pessoas que, como ela, nasceram e viveram na pequena vila criada para abrigar as famílias dos operários. De 1915 até meados dos anos 1980, suas 70 casas chegaram a abrigar quase 400 moradores. Elaine quer tirá-los do anonimato que a
geografia impôs.
Longe de tudo e de todos, as primeiras famílias que passaram a residir no sopé da Serra do Mar viveram sob o ritmo da Maria Fumaça. O percurso começava em Santos, de barco, até o pequeno cais
instalado às margens do Rio Itapanhaú, em Bertioga. De lá, sacolejando por 7,5 km de trilhos, em uma velocidade nunca superior a 30 km/h, chegava-se à Vila - uma viagem que podia levar até cinco horas.
Esse idílico isolamento era bom e ruim ao mesmo tempo. Fez nascer laços profundos, teceu um enredo de lendas e superstições, propiciou um enorme contato com a natureza, gerou descendentes e os viu
partir. Itatinga padecia de problemas típicos de pequenas cidades, mas, como elas, também deixava uma profunda saudade. Elaine transformou esse sentimento em um estudo antropológico.
Tudo em Itatinga chega de barco e segue pelos bondes até a Vila
Foto publicada com a matéria, página 44 e 45
Foto publicada com a matéria, página 44
Sardinhas fritas - São relatos de pessoas como Almiro Rodrigues do Prado, que por 17 anos foi o mestre de uma das embarcações que faziam a viagem do Porto de Santos até Itatinga. Era um
rebocador inglês, construído em 1889, que saía do Armazém 29, próximo ao Canal 4.
Quando necessário, ele puxava os batelões LG1 e LG2 e a chata B15. Afina, era dessa forma que qualquer coisa chegava a Itatinga, fosse uma locomotiva, seus dormentes ou roupas e mantimentos para as
famílias.
Dois domingos por mês ele levava equipes de futebol que iam enfrentar o Itatinga Atlético Clube - disputas que invariavelmente terminavam em confusão, obrigando seu Almiro a levar o time adversário
embora antes do horário programado.
Além do rebocador inglês, o transporte dos moradores também era feito pelas lanchas Paquetá, Barnabé, Macuco e Palmas. "Durante a viagem, o cozinheiro Oscar fritava
sardinha para as crianças", relata Elaine.
Até 900 metros - Todas estudavam em Itatinga até a antiga 4ª série do ensino fundamental. A escola, inaugurada em 1918, funcionou em uma casa de alvenaria até a década de 40, quando foi
definitivamente instalada onde antes funcionava uma antiga cocheira.
Os cavalos eram o principal meio de locomoção para as famílias que moravam afastadas da Vila, nas encostas da Serra.
Elas eram responsáveis pelos guinchos que puxavam o bonde funicular. Ao todo, são seis guinchos com grupos de casas ao lado. Já a casa mais alta ficava a quase 900 metros do nível do mar, logo acima
do ponto de captação de água da Usina.
Infância - A Vila era um paraíso para as crianças, mesmo que elas não soubessem disso. "Para quem nasceu lá, sair de casa e tomar banho de cachoeira ou comer fruta tirada da árvore era normal.
Os visitantes é que ficavam encantados".
Para eles, Itatinga oferecia uma residência específica. "Assim como a Usina era ornamentada com azaleias, a casa das visitas era toda enfeitada com flores. Até meados da década de 80 existia um
funcionário apenas para cuidar dos jardins, e as árvores eram podadas em forma de bichos".
Esse aparente clima de festa tinha o seu auge em ocasiões como o 7 de setembro. Era o dia da Independência do Brasil, mas era também a data da inauguração da sede social e esportiva de Itatinga,
criada em 1928.
A comemoração começava bem cedo e só terminava à noite. "Os Vergara, família que possuía terras nas imediações, davam um boi de presente aos moradores. Havia baile com forró e baião".
Sistema de guinchos do bonde funicular
Foto publicada com a matéria, página 45
Foto publicada com a matéria, página 45
Igreja - Já em 8 de dezembro ocorria uma homenagem a Nossa Senhora da Conceição. A devoção religiosa deu origem à Irmandade Apostolado da Oração.
"A ordem foi fundada por Nina Pollontoni, primeira catequista do Itatinga, casada com seo Hélio, funcionário da Usina. Foi graças a essa mobilização que a Igreja de nossa Senhora acabou sendo
construída".
Na Vila, o dia 8 de dezembro também era reservado para a primeira comunhão. "Nesse dia, as Docas davam lanche, leite com chocolate e bolacha maisena".
Origens - Dos relatos obtidos junto a parentes e amigos, Elaine está sendo capaz de reconstruir, inclusive, a origem das famílias que vieram para Itatinga.
A maioria tem descendência portuguesa, espanhola e italiana. Com o tempo, alguns se relacionaram com os índios que frequentavam Itatinga.
"Eles vinham para vender artesanato ou fazer compras na única padaria da Vila. Já a partir da década de 30, a maioria dos trabalhadores vem do Litoral Norte, para trabalhar nos sítios de banana, e
acabava sendo absorvida pela Companhia Docas. No fim da década de 50 é comum o casamento entre essas famílias".
Quando não havia residência para os noivos, a saída era morar com os sogros - pelo menos até que uma casa vagasse. Mas isso não era muito fácil. Mesmo quando um trabalhador morria, a família era
autorizada a permanecer até que pudesse providenciar a mudança. Em muitos casos, a saída, tanto para os recém-casados, como para os que partiam, era alugar sítios nos arredores.
Isolada, a Vila proporcionou um estilo de vida marcado pela tranquilidade
Foto publicada com a matéria, página 46
Fantasmas - Assim os laços eram mantidos, as lembranças e as lendas, passadas adiante. Isolados entre o rio e o paredão da serra, não foi difícil surgirem histórias de fantasmas por onde,
obviamente, nenhuma criança passava. Luzes no céu, sempre estrelado, também faziam parte das conversas daqueles que iam se reunindo nas portas das casas à medida que a noite chegava. Os grilos, sapos e o vento compunham a sinfonia de fundo.
Elaine morou em Itatinga até 1994, quando a Vila abrigava cerca de 120 pessoas. Atualmente, é funcionária pública e professora universitária em Bertioga. Sua pesquisa deve ser transformada em um
livro, que ela espera que traga um novo futuro para toda a área da Usina.
Sonha, um dia, ver ali funcionando, por exemplo, um centro de pesquisa, capaz de inventariar a enorme diversidade da flora e da fauna local - sem as quais muitos dos moradores não teriam se
alimentado ou curado seus males.
São tradições e conhecimentos que já se perderam ou só sobrevivem na memória dos mais velhos. Manter viva essa história é manter Itatinga conectada ao mundo, um porto isolado no Rio Itapanhaú, de
onde sempre partirão os bondinhos, para onde sempre se poderá voltar.
A igreja de Itatinga
Foto publicada com a matéria, página 48
Elaine Nehme
Foto publicada com a matéria, página 48
O portinho de acesso a Itatinga: estudo quer resgatar história da Vila
Foto publicada com a matéria, página 48
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