[22] São Paulo não se abaixa!
Quando chegou a Santos, a 7 de setembro de 1893, a notícia oficial da
Revolta da Armada, a cidade estava politicamente cindida. O grande reduto republicano de Silva Jardim, que em bloco prestara tantos serviços à causa da República, apresentava dois campos distintos - o situacionista e o dissidente -, ambos com os
mesmos fins e sob a mesma bandeira, mas eleitoralmente antagônicos.
A cisão verificara-se logo às primeiras eleições republicanas, quando dois nomes - Júlio de Mesquita e Bernardino de Campos -, propostos ao mesmo tempo para um só lugar na Câmara, deram motivo a tão prematura divergência.
Júlio de Mesquita fora o benfeitor espontâneo da cidade em 1889. Naquele ano, a começar de fevereiro, a febre amarela, espetacular, sinistra, devastara Santos, enchendo de medo e pranto os lares litorâneos; gente a cair pelas calçadas, a encher
as valas comuns de Paquetá e Saboó; noites a se povoarem de vultos e de gemidos, do cheiro forte e dos clarões trágicos das pipas de alcatrão queimadas pelas ruas. O poder municipal, exercido então por conservadores, liberais e republicanos,
lutara de mãos dadas com o povo, mas o Governo Provincial cruzara os braços, deixando Santos entregue ao seu próprio destino. Foi quando Júlio de Mesquita, chefe do grande órgão paulistano "A Província de São Paulo", hoje "Estado", revoltado
contra aquele abandono quase intencional, iniciou forte e decidida campanha em favor da cidade dizimada pela febre, indo ele mesmo levar ao seu povo, sem se arrecear do contágio, os socorros conseguidos.
Aquele gesto do notável jornalista, como não podia deixar de ser, calara fundo no coração do povo beneficiado, e era muito natural que, na primeira oportunidade, esse povo resgatasse para com ele a dívida de gratidão contraída. Tal oportunidade
apresentou-se logo depois, com as primeiras eleições da República; fizeram-no candidato pelo distrito a um lugar na Câmara Estadual. Seguira a indicação para o dr. Prudente de Morais, mas, a política de São Paulo, que pouco cogitava de gratidões
e sequer do passado... começando por não ser em nada diferente da outra, do Império, já resolvera a indicação pelo mesmo distrito, de Bernardino de Campos, vetando então a candidatura do sentimento e devolvendo-a à gente de Santos... por
inservível.
Travara-se a luta eleitoral a seu tempo, mas a candidatura oficial acabara por vencer. Uma grande parte do povo e dos chefes políticos de Santos, levada pelo interesse, esquecera o seu grande momento de desgraça. Em consequência, desgostosos,
abalados, os chefes julistas romperam em oposição declarada ao governo, criando um clube à parte - o "Centro Republicano" - e um jornal - o "Diário da Manhã" -, onde Vicente de Carvalho, Nestor Pestana e Martim Francisco entraram a fazer
diabruras, ao ponto das "barricadas" da deposição Américo Brasiliense.
Os outros, os bernardinistas de última hora, que traziam bem à vista o ranço conservadorista do Império, e que haviam aceito, talvez por isso mesmo, a imposição política da Capital, organizaram o "Club Nacional" e fundaram também uma folha - o
"Nacional" - para defesa de suas ideias e de seu programa... se é que os tinham então.
Foi dessa época, pode-se dizer, a melhor fase política de Santos, a de mais agitação, mais correias, vaias, urnas quebradas, tiros, cacetadas, descomposturas, polêmicas, verrinas, diatribes, o diabo... tudo afinal, quanto, politicamente, revelava
"sangue nas guelras" como diziam os antigos, e de que o povo gostava, porque divertia...
Daqueles fatos até fins de 1893 iam dois anos gordos; Bernardino de Campos era já então presidente de S. Paulo, mas, quando estourou a Revolta da Armada, a cidade continuava no mesmo pé. Existiam ainda tanto o "Centro Republicano" e o "Diário da
Manhã" como o "Club Nacional" e "O Nacional" com seus paladinos, sempre desavindos com a situação.
Naquela altura, e isso só se soube mais tarde, suspeitava profundamente o marechal Floriano da lealdade política do Estado bandeirante (afinal, sempre fora e seria assim, repetindo-se os exploradores) e por sua vez suspeitava o dr. Bernardino,
que, em Santos, o Partido dissidente mantivesse alguma ligação com a gente de Custódio de Melo e até com os próprios federalistas do Rio Grande.
A verdade, porém, era esta: na nebulosa das impressões do momento, ninguém sabia ao certo se a tentativa do almirante Custódio obedecia a tendências monarquistas, restauradoras, ou se representava somente um protesto às normas políticas do
Marechal de Ferro, e isso incomodava moralmente aos dissidentes republicanos de Santos, que, resolvidos embora a não se aliar com a gente de Lacerda Franco e Silva Teles, os chefes "nacionalistas", de modo algum, colaborariam num movimento
restaurador, como pensava o dr. Bernardino.
O que eles resolveram logo depois, isso sim, e estava muito ao feitio e sabor da época, foi aproveitar a oportunidade para lançar uma pedrinha... nos sapatos da "situação", principalmente por ser presidente do Estado o homem que, sem culpa
embora, fora o causador da cisão.
Os republicanos do "Centro" estavam desiludidos, mas tinham esse direito, e declaravam sem rebuços, como tantos outros vultos notáveis de São Paulo e do Rio, "não ser aquela a República que sonharam", o que não queria dizer que virassem
monarquistas. O "Centro" promoveu uma reunião com o caráter de "urgente"; a república periclitava, o seu auxílio era importante, mas resolveu a sua assembleia que todos se abstivessem da luta em perspectiva, deixando que os "nacionalistas" se
houvessem sozinhos nos azares da bernarda...
Todos estavam enganados, e até eles não contavam com o grande papel que iria desempenhar aquele "Bernardino... dos campos", como chamava Martim Francisco ao presidente paulista (por ser mineiro); não conheciam "o homem"...
A primeira orem recebida em Santos foi de prisão para todos os cidadãos que procurassem dificultar as providências administrativas ou militares no município e a suspensão de toda e qualquer crítica aos poderes constituídos. Era um sintoma de
energia ou de habilidade política.
Aquilo foi como que uma "carta branca" ao situacionismo local, e, dentro de pouco tempo, quase todos os chefes políticos da dissidência eram considerados antiflorianistas - "quase monarquistas" - e procurados pela polícia, para, conforme o caso,
ficarem em custódia ou seguirem escoltados para o Rio de Janeiro; suas casas foram varejadas pelos esbirros e cercadas por muito tempo; a maioria deles, porém, já andava refugiada pelas chácaras e sítios da Barra e das redondezas, propriedades de
amigos.
Foi uma hora amarga para os republicanos da dissidência. Martim Francisco, mais imprudente, foi um dos presos políticos imediatos; sua presença foi reputada prejudicial aos interesses da legalidade em Santos; julgavam mesmo que ele fosse
monarquista, porque era dos mais arrependidos da República e não a perdoava em seu terrível humorismo sarcástico, e resolveram seu envio para o Rio de Janeiro.
Um de seus companheiros, que jamais lhe revelou seu gesto, amigo íntimo de Francisco Glicério, como este, por sua vez, o era de Floriano, prevendo o desfecho daquela detenção, telegrafou imediatamente àquele:
"Martim Francisco preso suspeita monarquismo. Peço-lhe favor entender-se Marechal mandar soltá-lo sob palavra" - (sic).
O general Glicério, então "leader" da Câmara Federal e um dos homens do momento, era dos maiores admiradores do gênio do irrequieto Andrada; entendeu-se imediatamente com o marechal e obteve a ordem de soltura ems eu favor, quando ele já se
achava em São Paulo.
Dos presos políticos que seguiram para o Rio de Janeiro, na mesma leva em que devia seguir Martim Francisco (quase todos de S. Paulo, capital), apenas alguns chegaram à capital da República; os demais, reputados mais nocivos à ordem pública,
tiveram a sorte do barão de Serro Azul e seus companheiros na estrada do Paraná, foram "suicidados" no percurso do trem...
O Andrada ficara a dever, sem que jamais suspeitasse, ao amigo incógnito, o livramento do "suicídio" comum, a que ele, fatalmente, não teria escapado, mas ficou-lhe apenas a ingênua impressão, como deixou perceber mais tarde, de que escapara...
por ser Andrada.
***
A 8 de setembro, o presidente do Estado recebia de Floriano o seguinte telegrama:
"Costa que os revoltosos pretendem estabelecer base de operações em Santos. Convém, por isso, providenciar com urgência para que todo gênero alimentício que estiver a bordo dos navios de comércio nacionais seja desembarcado e recolhido a
depósitos seguros. Nesse sentido vão ser expedidas ordens ao inspetor da Alfândega. Se for possível conseguir a mobilização de alguns batalhões da Guarda Nacional, de confiança, para reforçar a guarnição de Santos, será muito conveniente. Na
impossibilidade, lembro-vos como medida de ocasião, a formação de um ou dois corpos de voluntários, organizados com antigos elementos militares ou com gente de toda confiança. Devemos nos precaver contra surpresas que os inimigos da República lhe
preparam. Saúdo-vos".
Já no dia seguinte, novo despacho de Floriano alarmava ainda mais o presidente de S. Paulo; afirmava que Custódio de Melo pretendia apoderar-se de Santos e fazer dela sua base de operações; dizia também que o capitão-de-mar-e-guerra Frederico
Guilherme de Lorena saíra da Guanabara, apoderando-se do navio "Itaipús", seguindo para Santos, para "proteger a revolução", que devia rebentar simultaneamente em S. Paulo... (a insinuação era clara, e demonstrava que o marechal ainda não se
convencera da fidelidade paulista.)
Se o presidente Bernardino ficara alarmado com tais despachos; que se dirá de Santos? As notícias correram pela cidade litorânea como um rastilho, e verdadeiro pânico apoderou-se de todo o povo. Já ouviam o estrondo da artilharia e sentiam os
balanços do "Aquidaban", do "Javarí", do "República", e de todos "aqueles bichões" do Custódio... Começou o êxodo. Muitos fugiram para a Nova Cintra, para os redutos risonhos do Luiz de Matos, outros tantos para os sítios de Cubatão, Jurubatuba e
rio da Bertioga; os mais abastados fugiram para São Paulo.
Santos tornou-se logo aos primeiros dias da Revolta um grande acampamento militar. A Guarda Nacional aprestara-se rapidamente, com todas as suas seções, num efetivo de 300 homens, sob o comando do coronel José Proost de SOusa, e pusera-se à
disposição das autoridades. O 3º batalhão da Força Pública estadual, que desde agosto acampava na cidade, se apresentara imediatamente, sob o comando do coronel Ramalho. Sua presença em Santos era motivada pela aventura do almirante Wandenkolk,
que, em seu "Júpiter", cruzara a costa do Estado e andava então pelo Rio Grande a combater contra Júlio de Castilhos.
Os dinheiros da Alfândega e da Recebedoria de Rendas foram logo recolhidos ao Tesouro em S. Paulo, por via das dúvidas... e até o estoque de carvão de pedra, orçando umas dez mil toneladas, teve ordem de ser embarcado para a Capital, a fim de não
ir abastecer as caldeiras inimigas...
Floriano Peixoto continuava a desconfiar de S. Paulo e Bernardino de Campos da cidade de Santos, e, afinal, não havia razão nem para uma nem para outra coisa, como se viu depois, quando Santos inteira apoiou as forças da República, opondo-se aos
vasos de Custódio, e S. Paulo invadiu o Paraná, derrotando e expulsando as hostes facinorosas de Gumercindo Saraiva, Telêmaco Borba, Antônio Piragibe, Julião Martins e tantos outros caudilhos.
Fosse outra a atitude de ambas naquele transe, e em vez de salva estaria perdida a República.
***
O coronel Jardim comandava toda a força da Capital, num efetivo redondo de 4.000 homens regulares. Uma conferência do presidente com o coronel precipitou as
providências. Transferiu-se imediatamente a sede do distrito militar para Santos, descendo o coronel com uma parte das forças e levando o major João Batista de Azevedo Marques como secretário, o tenente Gasparino de Castro Carneiro Leão como
ajudante de campo e o alferes Antônio de Lacerda Guimarães como ajudante de ordens. No mesmo dia, o coronel Ramalho era feito comandante da Praça Militar de Santos por parte do coronel Jardim.
À Fortaleza da Barra Grande e ao Forte Augusto, como sentinelas avançadas do porto Santista, deveria caber a grande ação no perigoso transe. Ambos estavam regularmente preparados. A Fortaleza, com uma guarnição de quase 200 praças de artilharia e
infantaria sob as ordens do capitão Benedito Graco Pinto da Gama, estava então sob o comando do alferes Cova, e o Forte, com outros tantos soldados do 2º regimento de artilharia de campanha, estava sob o comando do tenente João José de Lima;
aquela, com algumas peças La Hitte, de velho tipo, e este com alguns Krupp de 7,5.
O comando conjugado dos coronéis Jardim e Ramalho entrou logo em garnde ação. A tropa disponível foi distribuída por toda Santos e pelo litoral próximo; o armamento não era grande coisa: "comblain" e "minié", antiguado, mas ainda servia para
matar de perto.
Na Ponta da Praia ficou um contingente do 3º batalhão, ao mando do capitão José Antônio de Albuquerque; em Conceiçãozinha, outro contingente, sob as ordens do capitão Benedito de Godoi; em Outeirinhos ficaram 20 praças com o alferes Heitor
Guichard; no antigo hospital do Isolamento e depois na Bertioga ficou o batalhão patriótico Alfredo Elis, de São Carlos, ao mando do tenente-coronel Francisco da Costa Pinho e do tenente Esperidião Prado.
O voluntariado santista, a exemplo da Guarda Nacional, foi também logo aplicado ao policiamento da cidade e à vigilância de algumas pontes e passagens. Toda a estrada de ferro foi guarnecida, desde São Bernardo ao Cubatão. No Alto da Serra ficou
o tenente Henrique Paraguassú dos Santos com um pelotão, o mesmo acontecendo em Ribeirão Pires, Campo Grande e Piassaguera. São Vicente, Guarujá, Bertioga e Praia Grande tiveram logo seus destacamentos, e a Ilha Porchat teria ainda, semanas mais
atarde, dois grandes canhões Krupp para defender São Vicente. O serviço de fiscalização fora da barra foi entregue aos rebocadores "Mauro", "Lange", "Santos" e "República".
Estava no porto o aviso de guerra "Centauro". Sua oficialidade jurara manter-se fiel à República, foi então mandado para a Ponta da Praia, a fundear entre os dois fortes, formando com eles uma barreira de fogo à possível investida dos navios da
esquadra. Os canhões La Hitte do barco de guerra completariam bem a defesa de emergência, mas, logo ao dia 9, ao entardecer, um fato doloroso vinha manchar a dignidade daqueles marinheiros e impressionar toda cidade. A guarnição do "Centauro",
que acabara de jurar fidelidade aos poderes constituídos, levada pela rebeldia do tenente João Reis Júnior, na ausência do comandante Júlio de Brito, que se achava em terra e doente, fugiu barra a fora nos rebocadores "Mauro" e "República" e,
antes de fugir, abriu as válvulas do 'aviso', fazendo-o soçobrar aos poucos, à vista de toda a gente de terra. Só no dia seguinte, às 7,10 da manhã, desapareciam nas águas os últimos sinais de sua mastreação.
Nesse dia chegava a Santos o dr. Bernardino; estava furioso com a atitude dos homens do "Centauro". Tomou diversas providências urgentes; reforçou a guarnição da Ponta da Praia com mais 50 praças do 4º batalhão às ordens do capitão Pedro de
Alcântara; fez descer de S. Paulo todo o Corpo de Bombeiros transformado em corpo de infantaria; contratou com a empresa concessionária das Docas a reflutuação do "Centauro"; mandou atravessar pontões de madeira à entrada do porto; fez cavar
trincheiras em toda a extensão da praia, dotando-as de canhões de campanha, e providenciou ainda outras coisas.
Ficavam faltando então, para completa defesa do estuário e da cidade, apenas as linhas de torpedos a faísca elétrica, já encomendados, e que pouco depois deviam mimar a entrada do porto tornando-o inexpugnável. Ali estavam para isso, prontos para
a ação, os engenheiros Bueno de Andrada, Teodoro Sampaio, Gonzaga de Campos e Alípio Borba.
O entusiasmo, aos poucos, substituía o primeiro movimento de terror que dominara o povo e a sociedade de Santos. O comércio em geral retomara seu curso; o alto comércio em geral agitava-se e promovia subscrições em favor das tropas legais;
amiudavam-se os comícios patrióticos; o alistamento acentuava-se. No Teatro Guarani e no Rinque, tribunas públicas, realizavam-se reuniões movimentadas, em deliberado apoio ao governo da República, e constantes moções de solidariedade, inspiradas
por exaltados oradores, eram enviadas aos dois presidentes; tudo secundado fortemente pela imprensa.
Tal era o aspecto da terra santista naquele pressago princípio de setembro de 1893, em consequência da Revolta da Armada e dos telegramas do marechal presidente.
***
Afinal, no dia 19, avisava o posto de observação do Monte Serrate que o "República", um dos principais cruzadores revoltosos, estava à vista. A ansiedade
pública tornou-se enorme. Mais tarde era avistado também o "Pallas". Os jornais traziam manchetes de sensacionalismo e encorajamento; o povo corria para a porta das redações, à cata de notícias. Soube-se mais tarde que comandava o cruzador
revoltoso o capitão-tenente Cândido dos Santos Lara, e que o comandante da esquadrilha era o capitão-de-mar-e-guerra Frederico Guilherme de Lorena, o homem da confiança de Custódio de Melo.
Naquele mesmo dia, o "República" surgiu à vista da praia; bordejou toda a abertura da barra; parou junto à Ponta Grossa e fundeou por fim ao largo de Itaipu. O mar estava fortemente picado.
Só na manhã seguinte deslocou-se dali a possante unidade revoltosa; moveu-se para junto do "Pallas"; houve uma parlamentação demorada entre ambos e, em seguida, o cruzador rumou para dentro da abra de Embaré, colocando-se a pouco mais de 1.000
metros das duas fortalezas. A ansiedade da gente de terra era grande. O tenente Lima precipitou-se, não podia suportar mais aquela audácia calma, enervante, da belonave. Dois disparos simultâneos partiram do Forte Augusto. A distância era muita
para os Krupp de 7,5 do alcazar santista. O "República" respondeu com um balaço displicente e a bala caiu na água, a pouca distância do Forte, respingando os soldados do tenente-coronel Alberto de Barros, que acampavam na praia.
Às 9,30 é que começou de fato o canhoneio. O "Pallas" viera postar-se ao flanco direito do cruzador. O mar estava ainda mais agitado que na véspera; balançava os navios e tirava-lhes a pontaria; por isso mesmo, poucas eram as balas que atingiam o
objetivo; a maioria caía antes, na água e na praia, ou passava por cima, perdendo-se no mato.
Ao fim de uma hora de bombardeio ativo, apareciam três vítimas apenas, duas na Fortaleza da Barra Grande e uma no Forte Augusto. Naquela, um balaço Armstrong, 32, ferira a primeira muralha, ricocheteando para a segunda, estilhaçando a pedra do
rebordo mais alto, e os estilhaços haviam atingido a guarnição da peça que ali estava, ferindo gravemente o cabo Francisco do Nascimento Carvalho e o soldado Pedro Augusto do Nascimento, ambos do 22º de infantaria; no Forte Augusto houve quase a
mesma coisa; uma granada estourou junto à muralha e seus estilhaços foram atingir o soldado João Baltazar de Sousa, do 2º batalhão da Força Pública.
Bernardino de Campos, sob o espanto de toda gente, lá estava, dentro do Forte Augusto, desde cedo, presidindo ao combate, animando os defensores da barra, participando com eles dos mesmos riscos do bombardeio. Saíra de São Paulo assim que soubera
da arribada do "República", sigilosamente, para não alarmar os amigos e companheiros. O seu desprendimento fora tão grande quanto a sua audácia, porque nem mesmo sabia ao partir para Santos, se o "Aquidabã", o "Javari", o "Marcílio Dias" e outros
navios revoltosos estavam com o "República" ou viriam ainda participar do ataque ao porto paulista; se isso se houvesse verificado, como todos esperavam, teria sido a sua morte e a própria tomada de Santos - daí o valor indiscutível da sua
atitude. Jamais se compreendeu mesmo, aquele ato isolado do capitão Frederico de Lorena, a não ser debaixo de um aspecto - o da falta de gente para ocupar Santos e manter a sua ocupação naquela altura.
Quando em São Paulo perceberam o gesto, tresloucado segundo todos, do presidente, muitos cidadãos, militares, civis, amigos e correligionários políticos embarcaram imediatamente para Santos.
E lá estava então, Bernardino de Campos, a quem Floriano Peixoto iria dever em breve a grande vitória do Paraná, de pé, como um general, no patamar superior do Forte Augusto, afrontando as balas do "República", que passavam sibilando. Sua
presença destemerosa duplicava a força da guarnição e, ao seu lado, soldados tomados de verdadeira volúpia de guerra saíam dos abrigos e iam até o mar, com suas humildes "Comblain", dar tiros inúteis contra o cruzador, que lhes respondia com os
berros das suas peças pesadas.
***
Chegava o momento mais solene do ataque a Santos. Eram quase ozne horas da manhã. Bernardino de Campos era bem um símbolo; sua elevada estatura ultrapassava a
muralha da pequena fortaleza, oferecendo alvo aos atacantes. Não adiantavam conselhos e instâncias. Um novo estrondo, enorme, e um balaço feliz do "República" partia em direção do Forte Augusto. O tenente Aires da Gama viu a precisão do disparo e
gritou, imperativo, nervoso:
- Abaixem-se todos! (sic)
Duas mãos, entre enérgicas e respeitosas, pousaram nos ombros do presidente. Todos se abaixaram, até ele mesmo, o tenente Aires, menos Bernardino de Campos que, abrindo ainda mais o peito à frente do obus, gritou compenetrado:
- São Paulo não se abaixa! (sic)
O Destino provia a temeridade do presidente. A bala passou uivando, pouco acima da sua cabeça, e foi explodir no galpão, a pequena distância.
A cena espectralizara-se no patamar do Forte, e por fim, um uff! de alívio movimentou os circunstantes.
Pouco depois, às onze horas, sem que ninguém esperasse, cessava o fogo e o "República", tal como se visse fantasmas, levantava ferros, seguido do "Pallas", a rumo do Sul; parecia comover-se ao simbolismo da ação presidencial.
...- Abaixem-se todos!
Todos se abaixaram, até mesmo ele, o tenente Aires, menos Bernardino de Campos:
- São Paulo não se abaixa!...
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