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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 101 a 109:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[10] O chafariz da coroação

Nada mais resta hoje do velho chafariz da Coroação. Da Santos dos chafarizes, só resta mesmo aquele velho bebedouro de animais, fronteiro à Estação da Inglesa, memória degradada do último dos bebedouros públicos da cidade pitoresca da Independência.

Bons tempos aqueles, em que um chafariz podia jorrar vinho! E sabe-se que o da Coroação, inaugurado no antigo Campo da Misericórdia, precisamente no encontro atual das ruas D. Pedro II e General Câmara, jorrou o precioso néctar das uvas portuguesas, ante o sorriso bom do segundo imperador e a alegria tumultuosa do povo.

Governava a Província o marechal Manuel da Fonseca Lima e Silva, depois barão de Suruí. D. Pedro II e a imperatriz Tereza Cristina andavam em visita a várias províncias, e sua chegada a Santos anunciava-se para os últimos dias de fevereiro daquele ano de 1846.

O capitão Antônio Martins dos Santos, cavaleiro e comendador da Ordem de Cristo, então presidente da Câmara, recebera ordem daquele governador para providenciar os festejos locais com que deveriam ser recebidos os augustos senhores, em sua chegada à Província.

Viu-se depois que o fato principal dos festejos populares, em honra dos imperantes, iria ser a inauguração do grande e majestoso chafariz do antigo Campo da misericórdia, que seis anos atrás passara a denominar-se "da Coroação", o maior da cidade, montado em rochedos, com uma fonte em baixo, à guisa de aquário, aparando as sobras de água, iniciado em 1841.

Uma carta da senhora Marquesa de Santos, datada de 21 de julho daquele ano, mostrava que o primeiro dinheiro recolhido pela Câmara para tal fim fora o donativo de 400$000 enviado pela famosa cortesã do primeiro império. Dizia ela então:

"é-me demais, muito agradável subscrever para uma obra pela qual se deve prestar um benefício ao povo, e ao mesmo tempo perpetuar um dia que será sempre o penhor da paz e união dos brasileiros, e ainda mais numa cidade da qual me ufano de ter o título, e assim mando entregar por mão do sr. capitão Antõnio Martins dos Santos, a quantia de quatrocentos mil réis, sentindo que as circunstâncias não me permitam que dê uma prova mais importante dos meus bons desejos".

Quatrocentos mil réis, naquela altura, bom é que se saiba, era uma coisa assim como dez contos de réis nestes dias que correm, e por aí se avalia a montagem que iria ter o falado chafariz santista.
(N.E.: para comparar, em 1940, quando da publicação deste livro, o salário mínimo nacional era de 220$000, ou seja, a doação corresponderia a mais de 45 salários de então).

Afinal, de surpresa para Santos, surgia o imperador no porto, às 5 horas da tarde de 18 de fevereiro, acompanhado da imperatriz e de toda uma luzida companhia. Os preparativos dos festejos, por isso mesmo,não estavam todos feitos e as principais autoridades provinciais que deviam receber os régios visitantes ainda estavam em São Paulo.

Foi uma correria. presidente da Câmara, vereadores, delegado de Polícia, comandante da Praça, juiz municipal, todos reunidos às pressas, ao troar atrasado das salvas dos dois únicos fortes que haviam tido tempo de prepará-las, eram os personagens oficiais que se apresentavam, enquanto as principais famílias se ajustavam nas peças da moda e se enfeitavam de adereços especialmente comprados, para a recepção em nome da cidade.

A Guarda Nacional, reunida em momentos, compareceu, garbosa e completa, à ponte de desembarque, com mais uma força de polícia e outra do exército, para as continências do estilo, dispondo-se todos em alas, do pequeno cais da Alfândega até a porta da Matriz.

Das meninas que deviam representar todas as cidades e vilas da Província, somente trinta e duas já se achavam em Santos, e apresentaram-se então, com as respectivas faixas distintivas.

Assim mesmo, foi festiva a recepção de d. Pedro II. Tocou a banda do Luiz Arlindo, queimaram-se uns foguetes, repicaram todos os sinos, milhares de mãos agitaram no ar palmas verdes de coqueiro, e várias moças juncaram de flores o chão que suas majestades pisavam, até a Matriz, onde devia ter lugar a ação de graças.

Só no dia seguinte, ao meio-dia, chegou a Santos o presidente da Província, apressando-se a apresentar seus respeitos aos soberanos.

Sucederam-se as recepções, no solar do capitão Martins dos Santos, à Rua de Santo Antônio, no solar do comendador Ferreira da Silva, à Rua Direita, no palacete colonial do comendador Ferreira Neto, à Rua de Santo Antônio, no Paço velho, que ainda continuava na Praça da Matriz enquanto se fazia o novo no Campo da Chácara, e finalmente na Chácara do Embaré, do mesmo comendador Ferreira da Silva.

Aproximava-se, porém, o grande dia, 23 de agosto, aniversário do príncipe imperial! Festa grande prometida, parada, Te-Deum, sermão na Matriz, fogos, danças ao ar livre, inauguração do grande chafariz! E o povo se aprestava para os festejos extraordinários.

Chegou o dia esperado; até a natureza parecia concorrer para o brilho das comemorações. Tudo decorreu como se previa; restava o principal.

Às 7 e meia da noite os imperadores já estavam na tribuna de honra armada na janela do solar do comendador Ferreira da Silva, na Rua Direita, onde hoje está o prédio Braz Cubas. Queimaram-se os primeiros fogos de vista, girândolas de foguetes e algumas alegorias pirotécnicas. Ao longe, salvavam os fortes de Itapema e Nossa Senhora do Monte Serrate. A cidade inteira convergia para o Largo da Coroação.

Acabava a primeira queima; descia d. Pedro ao antigo Largo da Misericórdia para inauguração do novo chafariz que o vigário acabava de benzer. Aproximou-se o presidente da Câmara, entregando ao imperador uma caneca de ouro maciço, para que nela bebesse a primeira água do chafariz santista. Subiu d. Pedro os pequenos degraus armados até a torneira e, ao abri-la, viu que dela jorrava, não água, mas o mais puro e precioso vinho português. O imperador demonstrou sua surpresa e sorriu para os circunstantes.

Apresentaram-lhe então o autor da delicada lembrança, o cidadão Silva Braga, português dos principais da cidade, homem de bom gosto, dono do único Museu santista, que, comovido, apenas pôde balbuciar estas palavras:

- Majestade... é uma humilde parábola ao milagre bíblico... Vossa Majestade é capaz, como Cristo, de mudar a água em vinho, no governo desta santa terra que é o Brasil!

D. Pedro sorriu e deu-lhe a mão a beijar (logo depois, mandou-lhe também o título de comendador...), lisonjeado e satisfeito. O povo gritava vivas ao imperador e ao Brasil, como aos principais personagens dos governos municipal, provincial e geral. Espocaram novos rojões, e novos fogos de artifício relumbraram no ar. A música militar vinda de São Paulo e a banda do Luiz Arlindo romperam num dobrado. um moleque veio até próximo do imperador e recitou em voz alta a quadrinha popular em voga:

- Atirei um limão n'água
De maduro foi ao fundo
Todos os peixes gritaram:
- Viva d. Pedro Segundo!...

O imperador sorriu e deu-lhe uma cédula.

Franquearam o chafariz ao povo: num instante surgiram dezenas de pequenas canecas, e houve o avança.

- É vinho! É vinho! E é do bom mesmo!

O entusiasmo da multidão foi indescritível, e só assim, pobres diabos, que nem água tinham em casa para beber, e precisavam ir buscá-la pacientemente às fontes e chafarizes, puderam beber, a fartar-se, do melhor e mais puro vinho estrangeiro, continuando o avança pela noite a dentro, até que se esgotou e ligaram a água. O grosso do povo já estava na dança, no cercado de chão batido, preparado ao centro do Largo. Em redor do cercado ouvia-se o barulho dos pregões de todos os vendedores de refrescos, pastéis e guloseimas:

- É pra iaiá... é pra iôiô!
...........................
- Laranja, banana, mamão, cambucó!
...........................
- Refresquinho, refrescão!
Refresquinho de limão...
Quem não tem cinquenta réis
Não toma refresco não...
Refresco iaiá!

O predomínio era das pretas de tabuleiro, e os versinhos e frases mais em voga tinham curso em sua boca, apregoando a mercadoria.

Subitamente, um ruído soturno, lúgubre, que vinha de longe, começou a engrossar e a ser ouvido. Eram sons de caxambus, atabaques e urucungos casados às vezes rudes dos cativos, eram os negros que chegavam, para o batuque e a congada; e o barulho crescia; vinham negrões bizarros à frente do bando, saltando, torcendo e distorcendo o corpo, e os gritos cada vez mais rudes e mais altos subiam para o céu:

- Oia o Congo! Uê... Oia o Congo! Uê...

O imperador assistiu á Congada lá do alto da tribuna, e depois deixou o povo entregue às suas expansões.

Foi até tarde da noite a festa pública, precedente único na história noturna de Santos desde as antigas festas de S. Gonçalo até o 13 de Maio de quarenta e dois anos depois.

No dia 25 partia o imperador, satisfeito com a gente de Santos, deixando ao presidente da Câmara, em sinal disso, sua preciosa arma de caça, chapeada a ouro e cravejada de diamantes; mas, ainda não era a despedida; ia à capital da Província e ao interior; voltaria dias depois, para então partir e deixar saudades ao povo.

...Franquearam o chafariz ao povo; num instante surgiram dezenas de pequenas canecas, e houve o avança...

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