BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM -
Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...
Em maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia
publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e
prefácio de Baptista Pereira.
O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas
páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 87 a 100:
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Lendas e Tradições
de Uma Velha Cidade do Brasil
Francisco Martins dos Santos |
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[09] A revolta de Francisco das Chagas
O governo da Província de S. Paulo acabara de passar das mãos do
futuro marquês de Aracati, o capitão-general João Carlos Augusto de Oeynhausen Gravenburg, para o governo provisório de 23 de junho daquele ano de 1821.
A praça militar de Santos estava então sob o governo do tenente-coronel Bento Alberto da Gama e Sá e abrigava no velho quartel da Rua de Santa Catarina o primeiro batalhão de Caçadores, parte da guarnição da vista, composta ao todo de um
regimento.
Comandava o Corpo de Artilharia, distribuído entre os fortes locais - o Forte da Praça, o de Itapema, o da Trincheira, o da Praia do Góis e o da Barra Grande, além dos dois mais distantes, da Bertioga, o São João e o São Luiz, o sargento-mor,
capitão José Olinto de Carvalho e Silva, santista de velha estirpe, por sua vez filho do capitão Francisco Olinto de Carvalho, então governador do Forte de Itapema, por direitos de herança, ambos integrados na corrente separatista local.
Desde a chegada de José Bonifácio de Andrada, em 1819, que se formara em Santos uma alentada mentalidade independentista, aparecendo como elementos principais da corrente o padre Patrício Manuel de Andrada, Martim Francisco, Antonio Manuel da
|Silva Bueno, o general Cândido Xavier de Carvalho e Sousa, João Batista Vieira Barbosa, os capitães Francisco e José Olinto e mais alguns destemerosos patriotas.
Os rescaldos da tentativa republicana de Pernambuco, em 1817, ainda perduravam, e traziam até o coração dos santistas o nome também santista e caríssimo de Antônio Carlos, figura central do movimento nortista fracassado.
Por outro lado, a reunião das Cortes portuguesas e seus estranhos decretos relativamente ao Brasil, revolvendo ultimamente a lama grossa, por assim dizer, que se depositava ao fundo do lago aparentemente tranquilo que vinha sendo o patriotismo
brasileiro, reavivando no espírito de alguns cidadãos mais irrequietos a série imensa de proibições e restrições ultrajantes, que formava a carapuça de chumbo dos filhos do Brasil nos últimos trinta anos de colônia.
Naquela ocasião, mercê da última política compressora do Reino, e do absorventismo colonizador, imprudente, das correntes portuguesas do Brasil, cujas autoridades, em geral, elevadas pela mesma força, estavam ainda profundamente impregnadas do
espírito da metrópole e formavam na política recolonizadora do partido chamado 'retrógrado', o ânimo paulista, e particularmente o santista, sempre desafeito às tiranias, debatia-se em ânsias libertadoras.
Entre uma das coisas ofensivas que mais deprimiam o homem brasileiro estava a situação dos soldados nascidos no Brasil. Seus salários estavam sempre em desproporção notável com os dos nascidos além-atlântico, e só eram recebidos com enormes
atrasos, de três, quatro e mais anos, o que lhes criava uma situação de inferioridade moral e material absoluta, de dificuldades incríveis para as suas famílias, tornando-os, afinal, mais escravos de uma posição que não podiam abandonar, do que
propriamente soldados. Muito pior, sem dúvida, era a situação dos veteranos e inválidos da pátria, mutilados e sacrificados nas últimas guerras do Sul, que sofriam em silêncio forçado, socorridos apenas pelos brasileiros de posses, que se
apiedavam deles.
Em Santos a situação era essa, e bem se aperceberam disso os patriotas enumerados. José Olinto foi encarregado de explorar a situação entre os seus comandados da arma de artilharia. Seu papel era relevantíssimo e sua responsabilidade absoluta.
Com ele estavam os armamentos grossos, os canhões de todos os portes, a Casa do Trem de Guerra, os pontos estratégicos da cidade e do porto, e sua obra começou lenta, mas eficiente.
Pairava sobre a sociedade local, como ponto de inspiração e confiança, a sombra do grande Andrada, o grande espírito que se temperara no ambiente francês da liberdade integral, no mesmo espaço de supremo patriotismo que ia das Tulherias à
Bastilha, no alto campo científico internacional, e que, agora, ali estava, engrendecendo a humildade da vila natal.
José Bonifácio era o homem que d. Maria I, a conselho de Martinho Nobre de Melo, seu ministro, mandara circular pela Europa, a expensas da Coroa portuguesa, "para que não fosse a fazer uma revolução no Brasil", e bem se pode calcular a influência
na pequena sociedade da vila litorânea, exercida pela presença desse homem, que, outro ministro, mas de d. João VI, Tomáz Antônio Vila Nova Portugal, fizera voltar para o Brasil exatamente para aquilo, para precipitar a obra da separação.
Entretanto, como sempre acontece, o elemento civil era impaciente e irrequieto; não sabia esperar e amadurecer as coisas; não sabia contar com o tempo e, por iso mesmo, os patriotas santistas precipitaram os acontecimentos, ao invés de procurarem
envolver o comandante da Praça na trama conspiradora, expondo-lhe a situação privilegiada em que Santos estava para ser a iniciadora do movimento independista no Brasil, uma vez que todas as fortalezas estavam com eles e no porto não poderia
entrar navio algum sem encontrar pela frente as atalaias seguras da 'Barra Grande' e da 'Trincheira', preferiram começar pelos soldados, explorando a situação em que viviam, explorando-lhes o moral revoltado, encontrando aí quatro homens que,
melhor do que os outros, se prestaram ao papel de agitadores e sublevadores da tropa brasileira - o furriel Joaquim Roiz, José Maria Ramos, Francisco das Chagas e José Joaquim Cotindiba, soldados do Batalhão de Caçadores.
Combinado com eles um plano rápido de sublevação, a que não eram estranhos os brasileiros mais categorizados da vukam calculavam os insufladores que, vitoriosa a revolta de Santos, a crise política se pronunciaria, e se propagaria o movimento à
Capital, a itu, Sorocaba, Taubaté e outras cidades paulistas onde a tendência separatista era indiscutível.
Tudo se preparara para a verdadeira oportunidade, quando a situação no Rio de Janeiro se esclarecesse melhor, mas, não contavam os patriotas santistas, em sua precipitação, com os fatos de 23 daquele mês em S. Paulo, a aclamação do novo Governo
Provisório da Província, do qual faziam parte, como figuras principais, José Bonifácio, Martim Francisco e o cônego João Ferreira de Oliveira Bueno, santistas também e conspiradores, sob a presidência de um elemento altamente 'retrógrado' e
suspeito, o governador destituído, o sátrapa anterior - general João Carlos Augusto; e, não contando com isso, muito menos contavam os patriotas locais com a ignorância de Francisco das Chagas e seus companheiros, homens rudes, de pouquíssimas
letras e mentalidade nenhuma, os quais, supondo-se traídos pelos Andradas e ao mesmo tempo amparados pela sociedade local, entraram a levantar imediatamente o pessoal brasileiro da infantaria.
Assim, na ignorância do capitão José Olinto, que morava com seu pai na chácara do Itapema, aos fundos da Fortaleza, já na noite de 27 para 28 de junho estourava no velho quartel santista a revolta chefiada por aqueles soldados e caracterizada por
atos que não estavam capitulados no plano de ação dos patriotas, nem do comandante da Tropa de Artilharia.
Todos os oficiais reconhecidamente portugueses de sentimento, ou os que haviam feito uso de maus tratos em dadas ocasiões, foram presos e executados sumariamente pelos militares exaltados, auxiliados por muitos populares aderidos ao movimento.
Ébrios da repentina liberdade, desvairados pela possibilidade, tantos anos sonhada, de satisfazer desejos de vindita, como verdadeiras feras libertas dos gradis, aqueles homens incultos se derramaram pela Vila, obliterada a razão e comprometidos
até certo ponto os próprios sentimentos, dando arras aos seus impulsos e expansão ao seu delírio. Daí os exageros verificados em suas manifestações, de outra forma justificáveis, os assassínios perpetrados fora da devida órbita, os incêndios
havidos, contra a propriedade dos visados e de alguns negociantes seus amigos, os esbordoamentos, e finalmente o saque, praticado contra comerciantes reconhecidamente retrógrados.
Diante da precipitação com que se fizeram as coisas, retraiu-se o comandante José Olinto, fingindo ignorar o movimento, retendo imóvel a sua guarnição e desinteressados os Fortes, dos quais apenas o desmantelado Forte da Praça se integrara ao
movimento por estar vizinho ao Quartel sublevado.
Também os patriotas civis, diante da precipitação havida de parte dos elementos militares e dos exageros por ele perpetrados, haviam se retraído para não comprometer definitivamente a ideia. Não compreenderam eles, e nisso andaram mal, que a
tragédia moral daqueles pobres soldados, escrita durante tantos anos, a vergonha, a miséria e a fome, para si e para seus lares, pudesse sobrepor-se à razão dos seus martirizados, levando-os à prática de delitos para eles justificáveis. O povo,
porém, pareceu compreender e justificar as loucuras da tropa brasileira, aderindo-lhe em parte e perdoando-lhe os desatinos, não se encontrando hoje uma carta, um documento particular da época, que condene peremptoriamente os fatos verificados.
Uma corveta real achava-se fundeada ao largo do estuário, fronteira à embocadura do rio da Bertioga. Fizera um disparo de advertência demonstrando disposição de atacar os revoltosos, e Francisco das Chagas, como resposta, assentara uma peça de
artilharia no veho Forte da Praça, abandonado à sua gente, e atacara violentamente o vaso de guerra da Coroa, forçando-o a retirar-se para além do Paquetá.
A luta entre os homens do coronel Bento Alberto da Costa, a guarnição do vaso de guerra e os sublevados de Francisco das Chagas durou alguns dias. A melhor parte da guarnição da Praça achava-se em São Paulo desde a grande formatura de 23, no
Largo de São Gonçalo, engrossando os corpos milicianos.
A 30 de junho somente, chegava ao Governo Provisório de S. Paulo a notícia do levante santista. Perguntava-se então, entre os elementos "retrógrados", onde estava a guarnição das fortalezas locais. O governo declarou-se em sessão permanente,
durante quarenta e oito horas.
A 6 de julho, enviado pelo general João Carlos Augusto, chegava a Santos o 2º Batalhão de Caçadores, sob o comando dos coronéis Lázaro José Gonçalves e Daniel Pedro Muller, o primeiro secretário da Guerra e o segundo vogal pelas Armas no Governo
Provisório. Naquele mesmo dia, que era o oitavo da Revolta, verificava-se a rendição de Francisco das Chagas. O soldado santista declarava não querer sacrificar seus camaradas à disparidade das forças e dos armamentos, dizendo assumir toda a
responsabilidade do acontecimento e saber qual o castigo que o esperava, não lhe importando a morte, agora que tinha vingado os brios brasileiros e pisado as insígnias régias, sobrepondo, ainda que apenas por alguns dias, a dignidade brasileira à
tirania dos dominadores.
Espírito semi-rude, o humilde soldado de Santos, segundo o depoimento dos homens da época, soube ser digno na queda, negando-se a comprometer seus chefes civis e militares, declarando-os em completa ignorância da conspiração e alguns até ausentes
da vila, em seus sítios distantes.
No dia 7 de julho de 1821, o Governo Provisório de São Paulo, e bem se sabe que foi o presidente, publicava um "bando' e que dava à Província a festival notícia da retomada da Praça Militar de Santos, com a rendição dos "infames rebeldes". Aquilo
era uma visível satisfação aos elementos portugueses e ao pujante partido "retrógrado" de S. Paulo, pois que aos patriotas paulistas do Governo Provisório devia ser, como bem se presume, intimamente grata aquela primeira manifestação armada da
independência.
Autorizado pelo regulamento severo do conde de Lippe, organizou-se rapidamente um conselho e guerra. Cento e quinze soldados foram condenados à morte. O Governo Provisório de S. Paulo, em ofício aos coronéis Lazaro Gonçalves e Daniel Pedro
Muller, tendo em vista o relatório apresentado pela Comissão Militar, e reconhecendo a pouca idade de muitos, a rusticidade de alguns, a "efervescência das opiniões do tempo" e "a demora em se lhes pagar o soldo que S. Majestade lhes havia
conferido", resolvera que apenas sete fossem sacrificados.
Cinco destes últimos, logo após o pronunciamento do Governo Provisório, que considerava José Maria Ramos e Joaquim Roiz os principais promotores da desordem, foram executados imediatamente, nas vergas da corveta real, e dois apenas - Francisco
das Chagas e José Joaquim Cotindiba - foram enviados para a Capital, onde sua execução devia servir de escarmento aos patriotas exaltados de São Paulo. Era essa a justificativa ao privilégio que parecia bafejar os dois chefes da bernarda,
soldados como os outros e mais autores do movimento do que todos, mas, em verdade, prendia-se tal medida a uma recomendação expressa de Martim Francisco, resolvido a salvar aquele homem que tão bem sintetizara a dignidade nacional, desfraldando a
bandeira que poucos teriam a coragem de desfraldar.
A 28 daquele mesmo mês de julho, decretavam as Cortes portuguesas que os exércitos brasileiro e português fossem uma só e mesma corporação. O decreto era maquiavélico e visava entregar o exército do Brasil ao comando único e absoluto de oficiais
lusos ou adeptos da recolonização, mas seus intuitos foram imediatamente percebidos não só pelo príncipe regente como por todos os patriotas brasileiros e, assim, a nova medida das Cortes só serviu para precipitar os acontecimentos, avivando os
sentimentos nativistas das províncias do Sul.
As coisas se encaminhavam para uma solução e, em São Paulo, aproximava-se o dia da execução de Francisco das Chagas. A 20 de setembro do mesmo ano de 1821 efetuava-se a lúgubre cerimônia, no Campo da Forca, em terreno vizinho ao cemitério geral,
onde hoje é a Praça da Liberdade.
Apesar de indicarem os documentos da época, recentemente publicados, que a corda para a execução era nova, comprada nas vésperas, sabe-se que ela se rompeu três vezes durante o ato executório, provocando protestos e pedidos de perdão do povo por
intermédio de uma comissão que se entendeu com o Governo Provisório.
Toda intercessão popular foiinútil; Martim Francisco, principalmente, estava irredutível, e sua atitude parecia incoerente aos outros; queria dar aos portugueses a impressão cabal da represália, desviando assim de sua pessoa as suspeitas de
proteção ao movimento separatista brasileiro, trabalhando porém à socapa e com extrema habilidade no sentido de salvar Francisco das Chagas.
Com os sucessivos rompimentos da corda fatal, talhada previamente para romper-se ao peso do corpo do executado, e com as delongas decorrentes do fato e dos pedidos de perdão ao Governo Provisório, a tarde avançou e as primeiras sombras da noite
se projetaram sobre a nobre São Paulo, lançando trevas sobre o Campo da Forca. Nessas trevas teve efeito a quarta e última tentativa de execução do soldado santista, mas aí, consumada como foi ela, já não era Francisco das Chagas o paciente e sim
outro condenado anônimo trazido para o seu lugar com a proteção da noite e a ajuda do capucho.
Vencera a astúcia de Martim Francisco. Francisco das Chagas, aliviado do pesadelo, seguia nessa mesma noite estrada afora, para Porto Feliz e para mais longe - Cuiabá, onde deixaria de existir para o resto dos brasileiros, mas de onde veria,
dentro de um ano, o despontar daquele dia esplêndido da liberdade pátria, o Sete de Setembro de 1822.
...Já na noite de 27 para 28 de junho, estourava no velho quartel santista a revolta
chefiada por aqueles soldados...
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