BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM -
Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...
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Em maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia
publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e
prefácio de Baptista Pereira.
O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas
páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 46 a 53:
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Lendas e Tradições
de Uma Velha Cidade do Brasil
Francisco Martins dos Santos |
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[05] A gruta de Nossa Senhora do Desterro
O
espírito religioso de Mestre Bartolomeu, o ferreiro vindo na Armada de 1532, deixara a Santos, naquele final da era seiscentista, como lembrança duradoura de sua passagem, escondida no morro central de sua
sesmaria, a Capela de Nossa Senhora do Desterro.
Muitos anos sonhara Mestre Bartolomeu com a volta para os campos de sua saudosa província alentejana, mas sonhara em vão, em vão contemplara por anos e anos a fio a partida alegre e triste daquelas dezenas de velas grandes, que se punham, barra a
fora, rumo ao seu saudoso Portugal; jamais pudera abandonar a gleba feiticeira de Enguaguaçu, a humildade das posses com que provera, em tão longos anos de vida, as necessidades da multiplicação com que Deus abençoara o seu lar. Nunca se
maldissera, porém, ou imprecara contra o destino que transformara os dois anos que devia ficar na nova terra em cinquenta.
Anos antes de morrer, Mestre Bartolomeu começara uma grande obra para a Vila - era o que sempre dizia a todos - mas nunca chegara a revelá-la e muito menos a exibi-la, talvez por não haver conseguido terminá-la em vida. Ao morrer, porém, declarou
aos amigos que sua grande obra estava quase terminada, e que um dia saberiam dela.
Chegaram a pensar mal de Mestre Bartolomeu, o lutador, que tantos e tão bons serviços prestara a Santos e à colonização, fabricando todas as ferramentas que trabalharam o chão que fizeram os objetos de uso e levantaram as casas de toda a região
vicentina. Muita gente pensou que fosse coisa da idade, mania de um velho de oitenta anos. Seu filho, porém, recebera dele uma secreta incumbência e prometera cumpri-la.
Fazia agora dez anos da morte do ferreiro. Corria o ano de 1590, quase ao fim. Bartolomeu Fernandes, o filho, acabara de completar a obra prometida por seu pai, e declarava estar para breve a sua revelação ao povo de sua terra.
Um acontecimento forte e imprevisto viera precipitar as coisas. Na noite de 16 de dezembro daquele ano, noite escura e tormentosa, investia a barra de Santos, penetrando a luzes apagadas em seu porto, Cook, corsário inglês, lugar-tenente do
famigerado Cavendish, antecipando-se à arribagem do pirata chefe.
A manhã de 17 veio encontrá-lo surto no porto da Vila, em frente ao Forte da Praça, baterias assestadas contra a pequena fortificação que, intimada a render-se, em breve assim procedia, convencida sua gente da inutilidade da resistência.
O aparato bélico com que se apresentava o pirata, em seus dois fortíssimos galeões de guerra, dispensou outras apresentações. Cook vinha buscar provisões, água, mantimentos e tudo mais de que careciam, mas, via-se logo, pela gente brutal que ele
despejava em terra, gente desgrenhada, horrível, varada de necessidades e privações de toda natureza, que sua atuação ali iria muito além da coisa objetivada.
Alguém, que o pudera fazer a tempo, correra pela Vila, a anunciar o fato, pintando os piratas com as piores cores, e aconselhando a fuga.
Uma parte do povo já estava na Igreja de Santa Catarina e no Colégio dos Padres, ouvindo a primeira missa, ambos ali mesmo ao pé do desembarcadouro. Ao terrível aviso, alguns ficaram onde estavam, agarrados aos santos e aos sacerdotes, enquanto a
maioria punha-se em fuga. Eram calvinistas, e decerto não respeitariam as igrejas.
Os sinos da Capela de Santa Catarina, do Colégio, de Nossa Senhora da Graça e do Conselho (onde os havia também para isso) soaram a rebate, desesperadoramente. A Vila inteira despertou assustada, preparando trouxas com mantimentos e valores para
a debandada, como sempre acontecia nas invasões.
Um homem surgiu então, em toda parte, transfigurado, gritando às famílias que o seguissem, com todos os seus valores, pois estariam todos salvos... era o filho de Mestre Bartolomeu, era o Messias surgido na polvorosa da Vila.
Nos grandes pavores, as grandes solidariedades.
- Venham comigo! - gritava ele, correndo as poucas ruas e caminhos do pequeno burgo que era a sua terra.
Confusamente, enquanto os homens válidos da Vila, com João de Abreu e Diogo de Unhate à frente, resistiam aos piratas na estacada da Alfândega e do Conselho, com seus bacamartes afeitos à luta, velhos, mulheres e crianças se reuniam em torno de
Bartolomeu Fernandes, seguindo, varados de sustos e temores, de indecisões e desconfianças, atrás dos passos do filho do ferreiro, rumo a esse ponto certo e distante, onde ele dizia estar a salvação do povo e de seus valores dali por diante.
Muitos murmuravam e descriam do auxílio do moço.
Surgiam em frente deles o morro e a Capela de Nossa Senhora do Desterro. Que aflição para todos! Parecia-lhes que a gente corsária já lhes vinha no encalço, crispando as unhas e arreganhando os dentes. Eram mais de trezentos, e rezavam, e
lastimavam-se em voz alta, pronunciando os nomes dos santos da devoção.
A fila de retirantes galgava o morro. Já viam o porto, lá da altura em que todos se achavam. Pouco à frente, lá estava, bem perto, alegre como um sorriso, de tão clara, a Capela de Nossa Senhora. O caminho terminava pouco além, mais ao fundo, e
uma touceira compacta de bananeiras embiocava o talude pedregoso do morro.
- Bartolomeu! Bartolomeu! Onde está a salvação que nos prometeste? - perguntavam nervosos, descrentes, os principais fugitivos, enquanto choravam e soluçavam as crianças.
Bartolomeu galgou uma rocha solta. Estava a cavaleiro de todo o vasto cenário santista, a perder-se ao longe, em todas as direções, no círculo azul da cordilheira; sorriu, inflando as narinas e enchendo o peito. Parecia-lhe naquele momento ver,
na curva ampla do céu enfarruscado, a figura luminosa do pai, o velho ferreiro, feliz por ver cumprida a sua promessa.
O moço saltou, lépido, da rocha em que estava, deu alguns passos e, recuando as folhas balouçantes das bananeiras, mostrou a todos, entre as rochas do talude, a entrada ampla de uma gruta.
- É a obra de meu pai! A gruta de Nossa Senhora do Desterro! Penetrai por ela! Vai para o Tachinho, para a floresta livre, caminho seguro e desconhecido para São Vicente!
Dando exemplo à turba indecisa, Bartolomeu penetrou, escuro a dentro, como um bandeirante.
Naquele momento, os bárbaros de Cavendish, afugentados os últimos defensores de Santos, pela superioridade das forças e pelo imprevisto do ataque, acabavam de tomar posse da Vila, saqueando os armazéns, incendiando o que lhes era inúytil,
procurando as mulheres, as joias, a prata e o ouro que supunham existir...
Apesar da estadia de mais de um mês em Santos, não puderam os piratas compreender o desaparecimento parcial e misterioso de sua gente, nem descobrir o seu esconderijo, entrando a fazer represálias contra a propriedade imóvel e até contra os
pobres animais da terra, por despeito.
E só assim, após a retirada dos corsários, dez anos decorridos sobre o desaparecimento de Mestre Bartolomeu, pôde o povo santista compreender a promessa do "Ferreiro", arrepender-se do juízo que fazia do bom velho e prestar públicas homenagens à
sua memória concentrando-as na pessoa do filho.
Pelo tempo adiante, ao rebate das novas invasões corsárias e tamoias, o refúgio seguro do povo santista passou a ser a famosa gruta de Nossa Senhora do Desterro, ignorada dos invasores, cavada em vinte anos, com as últimas ferramenas fabricadas
pelo ferreiro de Martim Afonso.
Depois, a pequena Vila cresceu. Sessenta anos mais tarde, um neto do colonizador doava aos capuchinhos as antigas terras de seu avô. Desapareceu Nossa Senhora do Desterro; implantou-se São Bento em seu lugar. Passara a época as invasões, por
assim dizer, e o esquecimento caiu sobre a velha gruta, cercada nos últimos tempos de crendices e superstições.
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...É a obra de meu pai! A gruta de Nossa Senhora do Desterro! Penetrai por ela!...
Imagem publicada na página 51
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