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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 03/29/01 11:54:28
Qualidade nativa 

Mário Persona (*)
Colaborador

Qualidade deveria ser como razão. Que humanos têm por natureza, e animais irracionais não. Mas tratamos qualidade como um serviço adicional oferecido ao cliente. Como na história dos dois amigos que pediram whisky. "Copo limpo!", exigiu um. Equilibrando dois copos na bandeja, o garçom foi chegando e perguntando: "Quem pediu copo limpo?"
Qualidade é obrigação. Deve ser nativa. Mas nos esquecemos disto. Eu mesmo já escrevi muito texto publicitário arvorando que nossa solução "reduz custos, otimiza processos e aumenta a lucratividade". "Não faz mais que a obrigação!", poderia faiscar um cliente menos paciente. É óbvio! Ninguém compraria algo para aumentar custos, complicar processos e reduzir o lucro. No entanto, bombardeamos com o óbvio com que somos bombardeados. À guisa de sinônimo de qualidade.

Alimentos são produzidos com "ingredientes selecionados"; transportadoras oferecem "rapidez e segurança" e empresas aéreas anunciam "conforto e pontualidade". Enquanto políticos prometem "honestidade". Por instinto, adotamos essa retórica para características que deveriam ser intrínsecas ao produto. Coisas cuja ausência é algo a menos nunca deveriam ser um algo mais. Para quê avisar que as sandálias não soltam as tiras e nem têm cheiro?

Insólito - Qualidade não é diferencial. Surpreender, sim. Mas surpreender com o insólito. Que congele o cliente no tempo e no espaço por uma fração da eternidade. Boquiaberto, embasbacado, estupefato. Diante de algo que não esperava. De uma situação inédita para seu cérebro. Meu pai costumava deixar o frentista do posto de gasolina assim. Mergulhado na sensação de limbo que o incógnito causa. "Vocês vendem gasolina usada?", perguntava ele, brincalhão.

É claro, não falo de brincar com o cliente, mas de desmontá-lo com uma surpresa. Que amacie o coração e quebre a vontade. Um amigo parou num semáforo em São Paulo e surpreendeu-se quando um homem abriu a porta, sentou-se ao seu lado e ordenou: "Lapa". Como ele também ia para a Lapa, seguiu em silêncio. "Ué... não é táxi?", perguntou o passageiro procurando pelo taxímetro. Foi um trabalhão convencê-lo a permanecer no carro. E a não pagar no final da viagem.

O verdadeiro diferencial surpreende. Faz o cliente sentir-se devedor, como se recebesse demais pelo que pagou. Ou que não pagou. Como aconteceu no provedor de Internet, uma de nossas unidades de negócios. Alguém ligou para nosso suporte ao usuário, pensando estar ligando para seu provedor. Mesmo sabendo tratar-se de um cliente do concorrente, nosso funcionário o ajudou. No dia seguinte ganhávamos um novo cliente. 

Investir em surpresas - O mesmo vale para o casamento. Enquanto há novidade, tudo vai bem. Depois de tudo descoberto, não há mais nada para se descobrir. Começa-se a cobrir. Então só há duas formas de encarar o envelhecimento. Uma é fazer um curso de arqueologia, para manter um interesse crescente pelo cônjuge. Outra é investir em surpresas. Que, parodiando Vinícius, sejam imortais, posto que chama, mas infinitas enquanto durem.

Podem ser simples atitudes, como a reação ao quase esmagamento de um dedo pelo vidro elétrico do carro. Fechei, sem perceber que a esposa mais maravilhosa que já tive nos últimos vinte e dois anos estava com a mão na janela. Quase! Preparei-me para a bronca costumeira, em tom de ária italiana. Mas, como cantaria Johnny Alf em "Eu e a Brisa", o inesperado fez uma surpresa. O tapete fugiu de meus pés. Fiquei naquele estado de frentista sem gasolina usada, de passageiro de táxi improvisado, de cliente no atendimento equivocado.

Em lugar da bronca, ouvi uma voz mais doce que o mel. "Meu bem, não faz mais assim, tá?". Posso não ter amassado seu dedo, mas ela derreteu meu coração. Com uma suavidade que valeu por mil broncas. Agora, todas as vezes que coloco a chave no contato não escuto apenas o "Pim, Pim, Pim" do alarme do cinto de segurança. Mais alto, soa a voz gravada na memória. Não do carro, mas minha: "Meu bem, não faz mais assim, tá?"

(*) Mário Persona é diretor de comunicação da Widesoft, que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos via Internet, editor da Widebiz Week e moderador da lista de debates Widebiz.