Nexo seguro
Mário Persona (*)
Colaborador
Meu pai
não deixava de transformar algo corriqueiro em um bom "causo". Contava,
com aromas e sabores, a história da compra de um pernil. O funcionário
do açougue gentilmente respondeu que tinha pernil dos bons, e foi
logo afiando a faca. Interrompido pela bronca do açougueiro. "Pára
de dizer que tem! Se continuar vendendo, o pernil vai acabar!". Meu pai
não entendeu.
Ao ler a manchete na Gazeta Mercantil,
"Estoque dita ritmo da publicidade", lembrei-me da história do pernil.
Segundo o jornal, a GM teria interrompido a campanha publicitária
do Celta por não conseguir atender a demanda. A Gradiente teria
feito o mesmo com seu DVD, cuja procura foi maior que a produção.
E a Semp Toshiba só anunciou sua TV de 43 polegadas para esvaziar
o estoque. Para desespero das agências de publicidade, cujos negócios
dependem dos humores da indústria.
Se o título fosse "Estoque
dita ritmo da demanda", teria mostrado a realidade da maioria das empresas.
"Se continuar vendendo vai acabar!", é o berro da indústria
atropelada pela demanda. Algo imperdoável em plena era da Internet,
quando é possível integrar todos os participantes de uma
cadeia produtiva para produzir conforme a demanda.
O modelo todo está errado.
O estoque querendo guiar a demanda. O lema é fabricar, estocar
e desovar. Fazendo marketing para dilatar a goela do mercado.
Quando deveria identificar o apetite da demanda, estimular as glândulas
produtivas da indústria e espalhar o aroma de seu forno. Auxiliado
por uma gestão afinada do relacionamento com fornecedores e planejamento
colaborativo. Vender para produzir, não produzir para vender.
O business-to-business (N.E.:
negócios entre empresas, com sigla inglesa B2B) prometia transformar
isso em realidade. A imprensa trombeteava as perspectivas de um saboroso
futuro para os provedores de soluções. Que correram a oferecer
a roupa nova ao rei. Todo mundo virou B2B para ficar bonito ao quadrado
na nova economia. Até quem fornecia e-mail entre empresas
foi chamado de B2B. Deturpando o mercado e as estatísticas.
Praças de mercado -
Portais B2B tiveram seus quinze minutos de fama. Marketplaces abertos,
pregavam a liberdade das relações em amplos leitos de amores.
Todo mundo ia com todo mundo, para comprar e vender. Nada de nexo seguro,
o vínculo que garante fidelidade. Ficou a impressão de libertinagem
comercial, uma devassidão que poderia comprometer os negócios.
E a imprensa voltou a se ocupar com os portais B2B que fechavam. Joga pedra
na Geni.
Embora adequado para commodities,
o marketplace aberto não é pãozinho para todos
recheios. Cotações, compras, vendas e leilões em mercados
amplos, gerais e irrestritos podem não servir para materiais utilizados
na produção. Responsáveis por 80% do dinheiro gasto
pela indústria e cujo abastecimento é crítico na fluidez
da linha.
Para evitar amores de verão
em ambientes propícios à promiscuidade comercial, as empresas
buscaram marketplaces privados. Esvaziaram os portais, fugindo de
aventureiros queimando estoques. Ou de modelos de cobrança por porcentagem
sobre a transação, geradores de efeito cascata nos custos
dos materiais. Para a gestão segura do ciclo de produção,
preferiram uma relação de fidelidade com número limitado
de parceiros. Em uma plataforma confortável, que abrigasse suas
comunidades de negócios. Alcova familiar para relações
seguras.
De olho na fatia - Mostrar
que isso era possível, foi o que tranqüilizou o diretor de
uma multinacional, cuja fábrica brasileira adotou nossa solução
de marketplace privado. "Qual a porcentagem que cobram por transação?",
perguntou à queima-roupa. Expliquei que não participávamos
da transação. Fornecíamos a plataforma tecnológica
que garantia uma relação de privacidade entre ele e seus
fornecedores habituais. "É o que procuro", respondeu. "Não
quero sócios se alimentando de nossas compras".
Nem meu pai queria, quando conseguiu
comprar seu pernil e o deixou para assar em uma pequena padaria. Ao voltar,
não encontrou ninguém no balcão. Seguiu o aroma do
assado até o forno aberto, de onde sobressaía a nádega
crocante do enrubescido pernil. Tendo ao seu lado o padeiro, pãozinho
aberto numa mão e faca afiada na outra. Olhando arregalado para
meu pai e desejando nunca ter nascido. Mais rápido do que o The
Flash, fez sumir a faca e o pão. E meu pai nunca se perdoou por
não ter oferecido ao padeiro uma fatia da saborosa iguaria.
(*)
Mário
Persona é diretor de comunicação da Widesoft,
que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos
via Internet, editor da Widebiz
Week e moderador da lista de debates
Widebiz. |