Dois jornalistas de Santos, na década de 1980, promoveram o
retorno do bonde, que se efetivaria com uma linha turística na Praia do Embaré em 1984/5. Eles assinaram uma série de
matérias de página inteira sobre os bondes santistas. Como esta, publicada no jornal A Tribuna em 17 de novembro de 1980:
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Uma fábrica de bondes desativada. Em Santos
Texto de Áureo de Carvalho e Antônio Alberto de Aguiar
Fotos de Rafael Dias Herrera
Fabricam-se bondes sob encomenda, modelos 1950 e 1960. Servem a qualquer cidade poluída pelo monóxido
de carbono. Tratar na Avenida Rangel Pestana, 100, Santos
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Um anúncio como esse pode ser publicado a qualquer momento
pela Companhia Santista de Transportes Coletivos (CSTC), que ainda vai oferecer tecnologia e assessoramento técnico à implantação da rede aérea com
as respectivas subestações, formação de motorneiros e condutores e um revolucionário e exclusivo sistema de assentamento da via permanente (trilhos)
sem o emprego de dormentes.
Todo esse know-how
está escondido há dez anos e resistia a todas as ameaças de extinção da empresa: velhas formas e desenhos empregados na fabricação dos bondes foram
conservados, às escondidas, juntamente com grande parte da maquinaria pesada que quase foi vendida como sucata em 1971, quando o sistema de carris
urbanos foi extinto.
Grande parte dos técnicos dos bondes ganhou aposentadoria compulsória, nas circunstâncias turvas
de 1971. Os restantes foram remanejados de setor, mas preservaram todo o manancial de conhecimentos adquiridos em muitas décadas, desde os tempos da
Cia. City e do SMTC. Esses podem, a curto prazo, reativar a extinta fábrica de bondes: aguardam apenas um sinal verde.
Contribuição inicial
A gasolina custa Cr$ 45,00 o litro e vai a Cr$ 52,00 nos próximos dias. O óleo diesel, que
movimenta os motores dos ônibus, talvez chegue a Cr$ 30,00 o litro ainda este ano. Tudo isso assusta o Brasil e os brasileiros: ninguém sabe onde e
como as coisas vão ficar em 1981, num país que possui bastante energia elétrica mas vive na dependência do óleo importado.
A crise (e as nuvens negras) não são de hoje. Tiram a tranqüilidade dos que assumiram algumas
responsabilidades e já estão roubando o sono dos mais indiferentes. É hora de mudar, porque os conceitos e valores estão mudando: o que já não
servia, por obsoleto, volta a ser útil, nas circunstâncias, e readquire importância que nunca deveria ser subestimada.
Talvez seja essa a posição do serviço de bondes, que a Cidade (ou quem respondia por Santos, na
época) abandonou, reverenciando o automóvel. Como a fase do deslumbramento pelo carro já está passando, o recurso é encarar a realidade, sem
críticas ou retaliações pessoais, que não levam a nada. A hora é de pensar, e de planejar, agora com os pés no chão, dentro do hoje, para o futuro.
Pensar talvez na volta dos serviços de bonde, provavelmente em outros moldes, para trafegar sobre trilhos assentados em ruas e avenidas exclusivas,
privativas e proibidas a outros veículos. Porque o bonde sozinho dá conta do recado e pode transportar, sem esforço, tudo o que transportam os
milhares de automóveis, ônibus e trólebus.
Em Santos, se dependesse apenas de Mílton Moraes, atual diretor-presidente da CSTC, o bonde já
estaria circulando. Ele não reluta em confessar que a CSTC não tem recursos para pensar na volta dos bondes. A Prefeitura talvez ofereça a mesma
resposta, sem fugir à realidade. Então restam os recursos da União ou do Estado, que podem se interessar pelo problema, que não é exclusivo de
Santos.
Se o bonde puder voltar, a CSTC está mostrando a sua contribuição inicial, redescobrindo uma
fábrica desativada.
O segredo dos bondes escapou à destruição
Quando o serviço de bondes foi extinto em Santos, em 1971, houve um consenso dentro da CSTC,
talvez propositadamente, para eliminar todos os resquícios do sistema, tornando a sua desativação irreversível. Quem explica isso são dois antigos
técnicos da empresa. João Monteiro e Henrique Pedro dos Santos, 34 anos de serviço na empresa, 25 dos quais nas oficinas de fabricação e reforma dos
bondes.
"Foi com dor no coração e lágrimas nos olhos - disse João Monteiro - que nós assistimos, aqui no
pátio do Jabaquara, à destruição de quase 80 bondes remanescentes do SMTC. O que era de madeira, quase um serviço de artesanato dos carpinteiros,
foi arrancado a machadadas, e o que era de ferro e aço vendido a peso, como sucata. Nós, os velhos, vimos tudo isso quase chorando e sem
condições de protestar, sob penas de sermos demitidos".
Henrique Pedro dos Santos completa o quadro: "E vi também, com amargura e revolta, motores
elétricos de tração dos bondes, completamente reforçados, sendo retirados da estufa de secagem para os caminhões dos ferros-velhos, que arremataram
tudo sem mesmo ver o que estavam comprando no leilão".
De passagem, Monteiro explicou que depois de trabalhar mais de 20 anos nas oficinas dos bondes,
foi remanejado e destacado para um serviço parecido, junto com outros muitos técnicos: a manutenção e operação dos ônibus a diesel.
O segredo - Monteiro e Henrique olham ao redor - como para levantar se há alguém por perto
-, e confessam quase em coro: "Nós guardamos tudo o que foi possível das oficinas, dos equipamentos, parte da ferramentaria e até alguns modelos
empregados na fabricação dos bondes.
João Monteiro, por exemplo, esclarece que nos últimos nove anos, desde que o último bonde deixou
de circular, ele passou por diversos setores da CSTC, e só nos últimos dois anos fixou-se na área dos trólebus. Nesses quase nove anos, sempre que
possível, às escondidas e mesmo contrariando determinações superiores, carregou consigo o que ainda restava do serviço dos carris urbanos,
conservando tudo, à espera de uma nova oportunidade de serventia.
"Pouca gente sabe, por exemplo, que nós temos, aqui na Vila Matias, dois velhos bondes só na
carcaça, sem os motores e rodeiros, que podem servir à fabricação de novos modelos. Temos também a réplica de um pequeno reboque, construído há dez
anos, mas observando a mesma linha e características dos primeiros bondinhos de tração animal, de 1896. Tudo isso pode servir agora, ao menos para
mostrar como eram os veículos da época".
Fabricação - Se vier uma ordem para retomar a fabricação de bondes, inicialmente em caráter
experimental e depois em escala industrial, Monteiro e Henrique explicam que todas as oficinas poderão ser reativadas a curto prazo, utilizando
grande parte da maquinaria ainda existente, como os grandes tornos e prensas, a estufa para secagem dos motores, a fundição para os aros das rodas.
Faltariam a remontagem da carpintaria, cujos 17 artífices foram dispensados, remanejados para outros setores ou ainda aposentados compulsoriamente,
e a nova ferramentaria.
"Inicialmente - diz Monteiro -, para a fabricação das primeiras unidades, nós temos condições de
improvisar e adaptar muita coisa. Temos até o endereço de quem comprou antigos motores dos bondes e ainda os conservam, pelo que sei. Isso evitaria
a importação imediata, enquanto se fizerem novas encomendas à indústria nacional. Os rodeiros, como outro exemplo, antes eram importados, numa época
em que se comprava tudo com facilidade no exterior. Hoje, há rodeiros nacionais, fabricados por mais de uma indústria - as mesmas que fazem vagões e
locomotivas ferroviárias".
Tanto Henrique como Monteiro têm muitas idéias por onde começar, que se conflitam no interesse
comum da volta dos bondes. E alinhavam sugestões que eles mesmos podem aplicar. Nos novos bondes, a partir dos modelos convencionais e conhecidos
entre 1950 e 1960, segundo eles, podem ser aplicados controles modernos eletro-pneumáticos, iguais aos dos trólebus de fabricação nacional.
O comando central de controle da demanda energética, como outro exemplo, segundo Monteiro, pode
ser do tipo Schopper, igual ao empregado no metrô de São Paulo, representando uma inovação tecnológica que independe da compra de equipamentos no
exterior. "Estou sabendo - confessa ele - que a Cosipa, de Cubatão, vai desativar nos próximos dias um conjunto de motores e um grupo de
retificadores de correntes, ambos do sistema de chapas grossas. São motores e retificadores de corrente contínua, basicamente novos e que podem ser
aplicados nos bondes. Essa tecnologia é nossa, ou melhor, é da CSTC".
Quando alguém pensa na instalação de um serviço de bondes, pensa logo na importação dos veículos
da Bélgica, da Alemanha ou do Canadá. Esse conceito pode mudar, com o que existe na CSTC. Henrique, por exemplo, garante a formação de motorneiros e
condutores, reativando uma escolinha que ele chegou a dirigir, hoje talvez a única no Brasil. "E se nos derem as longarinas suficientes - arremata
Monteiro -, podem deixar o restante por conta da CSTC, que dentro de poucas semanas o bonde estará pronto e em condições de voltar às ruas, em
Santos, no Rio de Janeiro ou onde houver necessidade de transporte".
Via permanente (trilhos) dispensando os dormentes
A via permanente dos bondes é tão importante quanto o próprio veículo. Ambos se completam,
juntamente com a rede elétrica aérea. O engenheiro Miguel Elias Hidd, 15 anos de experiência anterior em ferrovias, e depois 24 anos trabalhando com
a via permanente da CSTC, não quer alimentar polêmicas sobre as necessidades ou não da volta dos bondes em Santos. Evita quaisquer comentários sobre
o crime que se cometeu contra a Cidade e prefere, como repetiu muitas vezes, aguardar a volta da razão, do juízo, da lógica e do bom senso.
"Se houver necessidade - diz ele -, nós temos uma inovação tecnológica para oferecer, já aplicada
em Santos, com êxito, e que pode ser útil aos bondes: a implantação de trilhos sobre uma base longitudinal de concreto, sem o emprego dos dormentes.
Isso barateia o custo inicial e dispensa grande parte da mão-de-obra de manutenção, hoje cada vez mais cara e difícil.
Esse sistema foi aplicado em trechos das avenidas da praia, pioneiramente no Brasil, com
excelentes resultados, segundo ele. "Nesse caso, quando se tratar de uma via pública urbana, de uso misto, para bondes e veículos de rodas
pneumáticas, é necessário o emprego de trilhos com vinhole. Antes, esses trilhos eram importados à Alemanha, tipo PSS1-C, com peso de 47 kg por
metro linear. Não tenho muita certeza, mas acho que, sob encomenda, Volta Redonda terá condições de fabricá-los.
"Em relação às ferrovias, a via permanente dos bondes tem algumas diferenças fundamentais. Uma
delas é nas curvas, pois enquanto as ferrovias exigem uma sobre-elevação, no lado contrário ao raio de abertura, o bonde dispensa essa providência
com emprego do vinhole, que é uma espécie de caneleta onde corre o friso do rodeiro. Outra diferença está no próprio rodeiro, que dispensa o aro
sobreposto, porque o bonde desenvolve baixa velocidade.
"Por outro lado, o vinhole atua como guia e impede descarrilamentos. É necessário, notadamente em
ruas pavimentadas com paralelepípedos, que se deslocam à passagem dos veículos com rodas pneumáticas. Sem ele, os paralelepípedos acabariam
encostando no trilho propriamente dito, promovendo danos nos aros e rodeiros.
Vitrificados - Miguel Elias Hidd foge também aos comentários sobre quais as vias públicas
de Santos que poderiam comportar a volta do serviço de bondes: não quer polemizar. Mas enumera rua por rua onde ainda existem trilhos dos bondes,
cobertos ou expostos, o total de metros lineares, o peso e o respectivo valor.
"Mas todo esse material - diz ele - está condenado,
infelizmente. Sofreu, ao longo dos anos sem uso, um fenômeno chamado vitrificação, ou enrijecimento, que o torna quebradiço se for reativado. Tem
aço do bom, dos melhores na época, mas envelheceu por ficar marginalizado. Curiosamente, é como o trabalhador braçal, que de um momento para
outro deixa de movimentar o corpo: em pouco tempo perde a vitalidade, com os músculos atrofiados".
Olhe para baixo. O que vê:
asfalto ou trilhos? |