A festa de
inauguração da linha turística na praia santista foi assim relatada no jornal A Tribuna em 11 de junho de 1984:
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A inauguração do bonde turístico, ontem, no Embaré,
trouxe muita gente à avenida da praia e tudo virou festa
A viagem inaugural
Texto de Áureo de Carvalho e Antônio Alberto de Aguiar
Fotos de Francisco Dias Herrera
O bonde retornou à praia, ontem, cercado por milhares de
pessoas de todas as idades, misturando saudosismo e curiosidade. Foi uma festa, a que a Cidade há muito não assistia, mobilizando os diversos
segmentos da sociedade num congraçamento cheio de calor humano.
Teve de tudo, desde as lágrimas de antigos motorneiros e condutores da Cia. City e do SMTC, até
exclamações de curiosidade e espanto dos jovens, entremeando-se com manifestações de carinho e aplauso dos que conhecem o sistema elétrico sobre
trilhos e acreditam na sua eficiência.
E o bonde andou, depois de 13 anos de ostracismo, menos pelo simples objetivo de implantação de
uma linha turística, e muito mais pela prova da existência de um transporte barato, fácil, popular, não poluente e utilizando energia elétrica que o
Brasil produz e já exporta, através de Itaipu.
Não
faltaram empurrões e desorganização à festividade, porque o público suplantou numericamente todas as previsões, mesmo as mais otimistas: havia um só
veículo para satisfazer 20 mil pessoas, ou mais, explicando-se a partir daí tudo o que ocorreu. A primeira viagem, que seria realizada em pouco mais
de dez minutos, nos 1.800 metros do percurso, durou quase uma hora e não chegou a ser completada porque a multidão cercou o veículo, impedindo o seu
deslocamento.
As autoridades e convidados que fizeram a viagem inaugural não esconderam o momento de alegria e
satisfação, mas também ficaram preocupados com o excesso de gente sobre os trilhos, e com as dezenas de garotos pendurados nas janelas e portas,
querendo entrar a qualquer custo, ansiosos.
Não faltaram as músicas das bandas, os confetes, as serpentinas, os aplausos, os gritos de
contentamento e até o papel picado lançado do alto dos edifícios, para saudar o velho camarão, de prefixo 42, reformado e pintado de forma
vistosa, com muito capricho, por antigos servidores da CSTC.
A linha turística é a primeira do Brasil no gênero, e Santos é a primeira cidade que traz de volta
o bonde, iniciativa que a Prefeitura adotou, expressando a vontade popular.
"A população santista agradece ao prefeito Paulo Gomes Barbosa; aos diretores Mílton Moraes,
Haroldo Damato e Társio Jordão; aos funcionários da CSTC e ao jornal A Tribuna, pela reimplantação do sistema de bondes. Santos, 10 de junho
de 1984". Estes eram os dizeres da placa de bronze, descerrada ontem, por volta das 10h30, no bonde turístico, defronte da Igreja do Embaré, pelo
prefeito Paulo Gomes Barbosa e pelo diretor-presidente deste jornal, Giusfredo Santini.
A comemoração marcou a volta do elétrico à Cidade após 13 anos. Inicialmente, a viagem inaugural
estava marcada para as 10 horas, mas, devido à multidão que se espalhava pela praça e pistas da avenida, os convidados custaram a entrar no bonde 42
da linha 13. Passava das 10h30 quando os motorneiros Henrique Pedro dos Santos e Genésio Pedroso, com a presença simbólica do condutor (cobrador)
Sílvio Alves de Oliveira, deram partida no veículo, vagarosamente, com as crianças e adultos fazendo um verdadeiro carnaval na calçada.
Na viagem inaugural havia cerca de 60 pessoas no bonde, dentre elas, além do prefeito e do
diretor-presidente de A Tribuna, o diretor-presidente da CSTC, Mílton Moraes; o coronel PM Lino de Jesus Lavor, subcomandante do CPAI/6; o
coronel-aviador José dos Santos Sobrinho, comandante da Base Aérea de Santos; os vereadores Noé de Carvalho, presidente da Câmara; Geraldo Silvino e
Manoel Constantino; Silas da Silva, diretor do Sindicato dos Enfermeiros; os secretários municipais de Esportes e Turismo, Francisco Céspedes; de
Obras, Aníbal Martins Clemente; de Finanças, Adílson Bulo; de Saúde, José Pereira Sartori; o prefeito e o vice de Praia Grande, respectivamente
Wilson Guedes e José Olímpio da Silva; Neide de Aguiar Pestana e José Papa Sobrinho, da Secretaria da Educação do Município, além dos empresários
Cláudio Regina, diretor-presidente da Companhia Americana Industrial de Ônibus (CAIO), e Walter Lanza, diretor da Viação Santos-São Vicente-Litoral
Ltda.
Superlotado - Além do pessoal que ocupava os assentos e corredor do veículo, na parte
externa mais de 40 garotos, e também alguns rapazes, apoiavam os pés nos frisos laterais do bonde e agarravam-se às janelas, de nada adiantando os
apelos dos passageiros para que não fizessem aquilo, sob pena de alguns deles escorregarem e se ferirem sob as rodas. Durante todo o trajeto, a
multidão da calçada dava vivas ao bonde, ao prefeito, batia palmas, soltava fogos e jogava confete e serpentina sobre o veículo, chegando a colorir
internamente os assentos, corredor e pessoas que o ocupavam.
O clima era de festa total, e o elétrico seguia disputando, metro a metro, seu espaço sobre os
trilhos. No sentido do Canal 5, diversas crianças tentaram entrar no bonde pelas janelas e muitas reclamavam que assim procediam porque desejavam
dar uma volta.
O veículo praticamente se arrastou sobre as linhas até chegar ao ponto de retorno ao Embaré. Feita
a mudança de chave, em um desvio existente defronte da Rua Sampaio Moreira, novamente as pessoas forçavam o ingresso no elétrico, porque durante
todo o percurso vieram a pé, acompanhando-o.
Na volta à praça da igreja, repetiu-se o mesmo acúmulo de gente, o que fez os ocupantes da viagem
inaugural deixarem o veículo uns 200 metros antes do ponto de partida, porque iria ser difícil descer naquele local. Assim mesmo, a porta foi aberta
com o apoio externo dos PMs, o que permitiu a saída de todos. Concluída a operação, as crianças e adultos invadiram o velho camarão.
A primeira incursão do bonde na avenida da praia, não concluída inteiramente, durou 43 minutos:
ele deixou o desvio da Igreja do Embaré às 10h32 e parou, para a descida dos convidados, às 11h15. Em outras épocas, só a título de comparação, os
elétricos iam da Ponta da Praia à Praça Mauá em menos de 43 minutos.
As crianças agarravam-se ao camarão durante as
viagens
No Embaré, faltou espaço
Vinte ou 30 mil pessoas? Difícil o cálculo, porque à medida que o bonde se deslocava vagarosamente
do Embaré, em direção ao Canal 5, o povo acompanhava o elétrico, cantando, jogando confete, serpentina e soltando fogos. Não faltaram palmas e
vivas.
Ontem foi dia de festa na praia, que ficou sem trânsito de veículos entre as avenidas Siqueira
Campos e Almirante Cócrane. Havia gente por todos os lados, nas janelas dos edifícios, sobre as árvores e chegando a subir nos pára-lamas e capotas
dos automóveis estacionados ao longo da Bartolomeu de Gusmão. Porém, a maior concentração humana ocorreu nas proximidades do elétrico, que só não
foi invadido antes da inauguração da linha turística porque estava com as portas e janelas fechadas.
Para se ter uma idéia da multidão concentrada em frente à Igreja de Santo Antônio do Embaré,
ansiosa para andar no bonde, há o registro feito por um guarda de trânsito da PM, de serviço nas proximidades, que em menos de dez minutos, entre
9h50 e 10 horas, foi solicitado oito vezes para tentar localizar crianças perdidas. Por volta das 10h40, chegou ao local um choque da PM, que
conseguiu isolar o veículo e retirar os garotos, que, agarrados às janelas e portas do bonde, pelo lado de fora, não permitiam que se movimentasse.
Até a banda - A banda de música do 6º BPM/I chegou ao local às 9h30, mas os
policiais-músicos tiveram uma surpresa: o local a eles destinado fora tomado pelo público, que não quis arredar pé para não perder o espetáculo.
Só depois de muito esforço, os músicos conseguiram abrir um pouco de espaço na área, e com igual
dificuldade puderam armar as banquetas destinadas à exposição das partituras, numa operação que demandou mais de 15 minutos. Os acordes iniciais da
banda atraíram mais gente ainda, deixando os músicos num autêntico sufoco, que só terminou quando o bonde começou a movimentar-se vagarosamente,
fazendo o contorno do balão que separa as duas pistas da avenida da praia.
A banda da PM tocou sem parar, mas as músicas se misturaram com o som trepidante da Banda Frei
Gaspar, que seguiu atrás do bonde, animando o ambiente com sambas e marchas de carnaval, misturando esses sons com a fanfarra das Casas Bahia, que
tentou, inutilmente, apresentar um pequeno show circense: todas as atenções estavam voltadas ao veículo e ninguém parecia interessado em
outra coisa. A distribuição de refrigerantes às crianças, por isso mesmo, passou quase despercebida.
Curiosidade e emoção
Desde cedo, por volta das 8 horas, as pessoas, principalmente crianças, começavam a cercar o bonde
turístico, na tentativa de que os funcionários que o limpavam internamente abrissem as portas e as levassem no veículo. Os minutos iam passando e o
número de gente aumentava. Todos queriam matar a saudade, principalmente antigos funcionários da The City of Santos Improvements Ltd., depois SMTC,
que comentavam felizes, sobre a volta do elétrico.
Dentre os que mostravam recortes de jornais sobre bondes e outros documentos, estava um
ex-funcionário da Sorocabana (hoje, Fepasa), José Quintana Campo, de 82 anos, que trouxe um passe grátis, emitido na metade da segunda década deste
século, o qual permitia fizesse viagens em bondinhos puxados a burro, da Vila Matias até São Vicente. Contou que cada veículo era puxado por uma
parelha de muares, acrescentando que havia duplas de animais, descansados, para ocuparem o lugar dos outros na passagem pelo José Menino e pela Boa
Vista, em São Vicente.
Disse também que andou muito de bonde elétrico e que sentiu muito quando as autoridades resolveram
extinguí-los. "Hoje, dá até um nó na garganta a gente só em ver como está bonito este camarão, e que ele de fato voltou para a rua. Com tanta
promessa não cumprida, ficava meio apreensivo sobre o retorno dos bondes à Cidade. Agora, vejo que é uma realidade. Só espero que dê tudo certo e o
povo possa, novamente, ter esse transporte, que não polui e é barato".
Desabafo - Durante a passagem do elétrico na praça da Igreja do Embaré, um grupo de
senhores de idade já bastante avançada batia palmas e, com lágrimas nos olhos, um deles falava: "Graças a Deus, o bonde voltou. Agora nunca mais vão
tirá-lo daqui. O povo precisa ser mais unido e não permitir as loucuras que se fizeram no passado, quando maus administradores tiraram de nós
a melhor condução que possuíamos. Viva o bonde!"
Assistindo a tudo, estava o autor de dois livros sobre bondes, Waldemar Correa Stiel (História
dos Transportes Coletivos em São Paulo e, mais recente, História do Transporte Urbano no Brasil), que veio da Capital para assistir à
volta do elétrico à Cidade. "Esse é um momento muito importante para todo mundo", comentou, "pois a população devia orgulhar-se de Santos ser a
primeira cidade no País a reimplantar o sistema".
Antes da festa - A rede elétrica aérea e o bonde turístico foram testados ainda no sábado,
depois de uma complicada viagem que trouxe o veículo à praia sobre uma carreta, desde a Vila Matias, passando pela Ana Costa. Já na colocação do
elétrico sobre os trilhos, defronte da Igreja do Embaré, o pessoal começou a cercá-lo. Veio a parte da tarde, e o número de pessoas aumentava cada
vez mais, principalmente o de crianças.
Enquanto isso, a empresa Engenac ia fazendo o serviço nos cabos aéreos. Porém, por volta das 2
horas de ontem, perto de 300 crianças que rodeavam o veículo há horas conseguiram adentrá-lo, e todas diziam para os técnicos da CSTC que não
sairiam do elétrico sem dar pelo menos uma volta. A solução encontrada foi satisfazer os menores, que acabaram dando cerca de 30 viagens ainda na
madrugada. O próprio presidente da CSTC, Mílton Moraes, só pôde deixar o local quando os garotos se deram por realizados. Eram 4h30.
Barbosa e Giusfredo Santini entre os homenageados
E agora, o que falta
A recepção que o bonde recebeu ontem mostra que retornou para ficar, como turismo, ou mesmo para
servir aos santistas. Isso envolve um comprometimento da Prefeitura e da CSTC, que precisam dar ao elétrico uma retaguarda de apoio necessária à
operação contínua.
O camarão 42 foi recuperado de forma artesanal e pode deteriorar-se dentro de alguns meses,
inutilizando os esforços da Cidade, que o queria de volta, a qualquer preço. Por isso, mesmo improvisada, há necessidade de uma pequena cobertura no
terminal do Embaré, onde o pessoal da manutenção vai trabalhar. Segundo o engenheiro José Geraldo Barbosa, do setor de transportes da Cosipa, e um
dos grandes incentivadores do elétrico sobre trilhos, sem manutenção preventiva o bonde estará com os dias contados, pela exposição ao sol, à chuva
e ao ar salitrado permanente que pode corroer, a curtíssimo prazo, os ferros e todos os metais da estrutura.
Por se tratar de um local dos mais freqüentados da praia, no Embaré, acha que o coletivo dispensa
vigilância: "Penso que o próprio povo - disse ele - vai encarregar-se de vigiar o que é seu, impedindo a ação dos vândalos. Mas, a manutenção
preventiva, por parte da CSTC, é fundamental".
Viabilidade - José Geraldo Barbosa observou também que, com a possibilidade de extensão da
linha turística ao José Menino, a Prefeitura e a Sectur precisam pensar num esquema de exploração comercial do serviço. "Em qualquer cidade
turística", lembrou o engenheiro da Cosipa, "as atrações oferecidas são pagas, e nem poderia ser de forma diferente, porque a cobrança favorece o
controle e estimula novos investimentos".
Para ele, o bonde precisa ter uma tarifa, mesmo que reduzida, para a conservação do que existe, e
ampliá-lo, na medida das necessidades. "A Prefeitura e vocês da imprensa, cuja atuação deve ser destacada, fizeram o mais difícil: trouxeram o bonde
de volta às ruas e mostraram que o elétrico anda e pode ser útil à Cidade. Agora, há uma linha turística que não pode morrer na iniciativa da
implantação, e por isso os recursos são mais do que necessários".
Destacou que a população vai entender a cobrança, como forma de preservação do serviço. E a
receita, segundo ele, será suficiente para o custeio da nova rede, do Canal 4 até o José Menino, e à recuperação de dois outros bondes que a CSTC
descobriu nos parques infantis, ainda inteiros.
A inauguração da linha, em foto publicada por A
Tribuna em 6 de abril de 1988
A Cidade agradece
Na inauguração da linha turística, que a Cidade queria para rever o sistema de bondes, há
necessidade de um registro paralelo, que começa na iniciativa corajosa do prefeito Paulo Gomes Barbosa. Descompromissado com a política e com os
políticos, uase no fim do mandato, deu todo apoio à volta do sistema, empenhando-se ao máximo para que Santos vivesse um dia de festa como o de
ontem no Embaré.
O registro engloba depois a diretoria da CSTC, que inicialmente ouviu a idéia do bonde com
certa dose de ceticismo, mas depois se entusiasmou com a perspectiva de entregar a Santos um serviço de transporte paralelo às linhas de ônibus e
trólebus. A lista de colaboradores dentro da CSTC, que começa com o presidente Mílton Moraes, é muito extensa, mas os nomes de João Monteiro,
encarregado do setor de trólebus, e Henrique Pedro dos Santos, responsável pela parte mecânica do camarão, não poderiam ficar de fora; ambos,
nos últimos dois meses, atravessaram noites nas oficinas da Vila Matias.
A rede elétrica aérea, com material da CSTC, foi instalada pela firma de engenharia Engenac,
cujo diretor, o engenheiro Fernando Rodrigues Vasques, vibrou com a possibilidade da volta do bonde às ruas.
Com o 42 reformado e pintado, e a rede pronta para recebê-lo, surgiu um problema: como
transportar o carro até a praia, a partir da Vila Matias? Aí foi a vez do empresário Manoel Pinheiro, diretor-presidente da Ma-Pin, entrar na
história, oferecendo não só a carreta de 30 toneladas como também todos os equipamentos necessários, além da experiência dessa empresa na remoção de
volumes pesados.
Durante a festa, que certamente ainda não terminou, porque nem 5% da população conseguiram
andar ontem no bonde do Embaré, foi muito importante o serviço prestado pelos guardas do 6º BPM/I, cujo comandante interino, o major PM Osmair Paulo
Sachetto, soube agir no momento exato, adotando as providências de reforço quando as condições exigiam.
Para as crianças - O elétrico da Linha 13, de prefixo 42, tem exatamente 64 anos de
idade: chegou à estação de bondes da Vila Matias no dia 8 de junho de 1920, adquirido na Inglaterra pela The City of Santos Improvements Company
Limited. E, a partir de hoje, fora da atração turística permanente, vai receber diariamente alguns passageiros muito importantes: as crianças dos
orfanatos locais.
Os meninos e meninas viajarão até a praia em ônibus que
a CSTC vai oferecer, seguindo uma programação idealizada e organizada pela empresa. Quem está cuidando disso é o engenheiro ferroviário Miguel Elias
Hidd, que foi o responsável pela via permanente da SMTC, antes da extinção do serviço, em 1971. Miguel Hidd, espontaneamente, examinou os trilhos
remanescentes da praia e deu o seu parecer, antes de se fixar uma data para retorno do sistema. Ontem, durante a festa, preferiu misturar-se ao
povo, anonimamente, talvez para ocultar a emoção.
A festa não durou nem dois anos. Logo, o bonde 13
entraria no desvio... |