Senso de justiça na vida pública
Foto: arquivo, publicada com a matéria, na primeira página
O Esmeraldo que a História não esquece
Se vivo estivesse, Esmeraldo Tarquínio completaria 85 anos hoje. Deputado estadual, foi eleito prefeito de Santos em 1969. Mas sequer assumiu a cadeira. Teve os
direitos políticos cassados pelos generais da ditadura militar.
Esmeraldo, uma lembrança viva
O prefeito que não assumiu, cassado pela ditadura, faria 85 anos
Eduardo Brandão
Da Redação
Uma voz grave enchia salão da Sociedade Humanitária e invadia a Praça José Bonifácio. Era assim todas as
noites, de quinta a domingo, no efervescente Centro de Santos no começo da década de 1950. Entre boleros, sambas-canção, blues, jazz e casais a bailar, o jovem despachante aduaneiro defendia alguns trocados, que o ajudariam a pagar o curso de
Direito.
Era outra época e Santos significava quase sinônimo de Café – apesar de ser um tempo após a crise mundial de 1929. Não havia nenhum curso superior na Cidade. Assim, para formar-se advogado, ele
precisou estudar no Rio de Janeiro, à época capital do Brasil.
Os bailes da vida não foram apenas uma forma prática de viabilizar o estudo: neles o amor também lhe mostrou o seu mais belo sorriso. Foi em cima do palco que conheceu Alda Terezinha Camargo,
companheira de vida, que o acompanhou até o fim.
O carismático crooner sequer tinha ambições de seguir passos na vida pública, fato decisivo para ele ser protagonista, décadas depois, da história santista. Mas com o microfone nas mãos, o
vicentino Esmeraldo Soares Tarquínio de Campos Filho transmitia uma de suas mais significativas qualidades: o carisma.
Se um aneurisma cerebral não tivesse encurtado sua vida, em novembro de 1982, o político completaria hoje 85 anos. "Ele era uma dessas pessoas que não se encontra ninguém que possa falar mal",
resume o jornalista Mauri Alexandrino.
"Aliás, ao contrário, Esmeraldo era muito querido. Andar com ele era complicado; cada quarteirão levava cerca de uma hora. Ele parava para conversar com todos e o fazia com muito prazer", continua.
A memória era outro atributo: não se esquecia de nenhum nome, rosto ou endereço. "Não era uma imagem fabricada, falsa; era apenas ele", completa.
Porém, não soltava a voz somente nos palcos santistas. Na Capital, o ex-político participava do programa Titulares da Notícia, na TV Bandeirantes, onde se debatia futebol – sua outra grande
paixão. E no futebol, o amor sem fim pelo Santos F. C. Ao término da edição, ele ia à região dos bares no Centro de São Paulo.
"Era comum ele cantar nos cabarés da Capital. Não como amador, mas como profissional. Ganhando para isso. Fez participações em shows de estrelas do jazz internacional. Era ovacionado",
recorda o amigo.
Jornalismo – O espírito boêmio, a facilidade em cativar as pessoas e o senso de justiça o levaram naturalmente à vida pública. "A trajetória política de meu pai foi curta, durou cerca de nove
anos. Mas seu legado é eterno", avalia Esmeraldo Tarquínio Neto.
Em 1959, Esmeraldo chegou à Câmara Municipal de Santos, eleito pelo então PSB. Três anos depois, elegeu-se deputado estadual, cargo que exerceu até 1969, quando teve o mandato cassado pela ditadura
militar. "Foi uma época difícil, muitas portas se fecharam", recorda seu filho.
O exílio da vida pública não o impediu de lutar por justiça social. Em 1971, aos 44 anos, matriculou-se na primeira turma de Jornalismo da Sociedade Visconde de São Leopoldo, atual
Universidade Católica de Santos (UniSantos).
Apesar de ser duas décadas mais velho que os demais alunos, Esmeraldo transformou-se numa espécie de líder da garotada de 20 e poucos anos. "Era algo natural dele, um magnetismo sem explicação",
cita Alexandrino.
No meio de teorias de comunicação e técnicas jornalísticas, encontrava tempo para fazer o que mais gostava: o bom trato com o próximo.
"Ele entrava na sala de aula, caminhava elegantemente até sua cadeira, sempre a primeira da fila. Sentava-se, olhava para cada um de nós e percebia quem precisava de atenção, de uma conversa. E
sempre nos ajudava com bons conselhos", recorda, emocionada, a editora-executiva de A Tribuna, Vera Leon. Juntos dividiram os quatro anos de estudo superior.
Do companheirismo da sala de aula à amizade foi um salto. "Foi um mestre, uma referência, uma figura paterna nutrida por muitos de nossa turma", continua. Vera ainda lembra com carinho das conversas
nos bares próximos à faculdade, o ponto de encontro de todos os estudantes com a mística figura pública santista.
Assim que se formou, foi convidado a lecionar para as turmas mais novas. O político cassado, cantor e advogado passou também a ensinar aos futuros jornalistas.
Vida dura – A leveza que conduzia seus passos contrastava com os tempos amargos de sua infância. Nascido negro num país que mascara (mas não esconde) seus preconceitos, Esmeraldo conheceu
desde a infância o lado amargo da vida.
Ficou órfão aos 7 anos, idade em que começou a fazer os primeiros trabalhos remunerados. Aos 10 anos, já trabalhava como office-boy, para ajudar no sustento da casa.
Após a Segunda Guerra Mundial, já com 18 anos, deu início à vida política. Atividade que dividia com a música, os estudos e o trabalho. "Tarquínio era alto, bonito, elegante, um gentleman.
Onde quer que fosse, era o centro das atenções", recorda Alexandrino.
Comemoração |
Desde 1998, está em vigor a Lei Municipal 1.678, que celebra o Dia Esmeraldo Tarquínio. De autoria do ex-vereador Martinho Leonardo, a medida institui que, em todo dia 12 de abril, escolas
municipais e demais centros de ensino da Prefeitura comemorem a data |
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Esmeraldo Tarquínio é lembrado pelos amigos como um homem elegante, alto, bonito, um gentleman que era o centro das atenções por onde passava
Foto: arquivo, publicada com a matéria
Símbolo santista da resistência ao Golpe
Acontecimentos adversos marcaram a trajetória pública de Esmeraldo Tarquínio. Perseguido pela ditadura, teve seus direitos políticos suspensos em 1969, quando exercia o cargo de deputado estadual.
Cassado com base no Ato Institucional nº 5 (AI-5), o fato deu-se um mês antes de assumir como prefeito de Santos, cargo conquistado de forma legítima nas urnas. Foram 45.210 votos obtidos nas
eleições de novembro de 1968 (39,5% dos votos válidos). O golpe o afastaria da vida pública por 10 anos.
Solidário com seu parceiro, o vice-prefeito Oswaldo Justo renunciou ao posto. Os militares se apressaram em resolver o impasse: Santos foi considerada "área de interesse da segurança nacional".
Condição mantida até 9 de julho de 1984, quando a Cidade teve a autonomia política reconquistada.
Após retomar os direitos políticos em março de 1979, Esmeraldo procurou logo recuperar o tempo que ficou impossibilitado de atuar na vida pública. Entretanto, em 1982, uma doença o tirou da reta
final da campanha eleitoral de volta à Assembleia do Estado.
Autonomia – Merecidamente considerado um dos símbolos santistas de resistência ao golpe militar, Esmeraldo não testemunharia o retorno da autonomia política da Cidade. Após 20 dias internado
em decorrência de um aneurisma cerebral, faleceu em 10 de novembro de 1982.
Nove meses depois, o Diário Oficial da União publicaria o decreto-lei nº 2.050, marcando a eleição municipal para o dia 9 de julho de 1984. O resultado do primeiro pleito para a prefeitura,
após 15 anos de intervenção federal, consagraria a ausência do último prefeito eleito democraticamente.
Sagrou-se vencedora a chapa liderada por seu antigo companheiro e vice-prefeito, Oswaldo Justo, e do seu filho, Esmeraldo Tarquínio Neto.
Sessão solene |
Os 85 anos de nascimento de Esmeraldo Tarquínio serão lembrados amanhã, em sessão solene na Câmara Municipal de Santos. O ato, iniciativa do vereador e líder do PT, Reinaldo Martins,
atendendo pedido do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Santos, acontece às 19 horas, no plenário do Legislativo, à Praça Tenente Mauro Batista de Miranda, 1 (antigo quartel dos Bombeiros), na Vila Nova. |
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Tarquínio gostava de estar em contato com as pessoas, tanto como homem público como na convivência na faculdade, entre amigos, nas ruas
Foto: arquivo, publicada com a matéria
Na voz da filha, herança artística
Um homem é a sua obra. E se o legado do ex-prefeito eleito não se limita apenas à vida política, na arte há uma herdeira: sua filha, Deborah Tarquínio. "Hoje (ontem), uma senhora me parou na rua e
disse eu ao me ver cantar lembra-se de meu pai", diz a cantora.
O amor à música é uma ligação que a faz recordar das tardes de domingo de sua infância. "Era o único momento que eu podia ficar com meu pai". Nessas tardes, vitrola e discos faziam companhia para a
garota e seu maior ídolo. "Aprendi a ouvir boas músicas e a dar valor à MPB, ao jazz e aos blues com meu pai", afirma. Com ele, Deborah desenvolveu o ofício de cantar. "Ele sempre estava a cantarolar alguma melodia. Era lindo".
De todas as músicas do repertório de Deborah Tarquínio Trio, uma não pode faltar: My Funny Valentine, eternizada por Frank Sinatra. "Era a canção que meu pai cantava para minha mãe. Até hoje
ouço e me emociono".
Ela recorda da alegria que seu pai tinha em viver. "Ele adorava dançar, cantar, sorrir. Adorava dar importância aos outros, ajudá-los".
Para Deborah, contudo, muitas narrativas sobre a trajetória do ex-prefeito eleito são apenas histórias aprendidas na escola. "Quando meu pai morreu eu tinha apenas 14 anos". Mas são os invisíveis
fios que fazem o mundo mover. Quis o destino que 15 anos depois da morte de Esmeraldo, nascesse o filho de Deborah: exatamente no mesmo dia que Santos ficou órfão do homem que marcou sua história. |