Imagem: reprodução da página 16 da publicação
Um copo de garapa
THEO, de Santos
É a segunda crônica que envio, desta deliciosa praia de banhos. Não fosse o completo descanso que me impus, durante estas férias, e um sem número de coisas interessantes poderia contar. Por aqui,
tudo vai correndo às mil maravilhas: até a minha Binoca – é assim que chamo a minha mulher – conseguiu passar duas semanas sem atrito comigo.
Dizem que as briguinhas entre marido e mulher são sintomas de muito amor; é possível que, de fato, assim seja! Embora convencido de que minha mulher e eu muito nos queremos; embora viva obcecado por
esse laço de afeição que nos liga há tantos anos, nem por isso perdi a capacidade de julgar, com justiça, as coisas que nos dizem respeito. E é talvez por isso que não atribua exclusivamente ao muito amor que me devota a minha esposa a causa das
nossas quizílias.
Nós brigamos, forçoso é confessá-lo, porque a minha Binoca é muito neurastênica.
Trata-se de uma moléstia como outra qualquer: não sendo infectuosa, nem contagiosa, não haveria razão para que eu deixasse de proclamar, alto e bom som, que a causa das nossas brigas reside na neurastenia da minha mulher.
Como disse, acabamos de passar duas semanas sem o menor atrito, e esse fato impressionou-me bastante! Já começava a sentir saudades das nossas últimas discussões! Aí vai o resumo dos dois últimos
pegas:
- Você, hoje, não tomou sorvete, ao jantar!
- É verdade; abusaram da hortelã-pimenta; achei-o com gosto de dentifrício; além do mais, não me estou sentindo bem.
- Por que não toma uma dose da minha homeopatia?
- Deus me livre!
- É por isso que você anda magro: a sua doença não passa de mania; você precisa comer e deixar esses luxos!
- Não me acho magro; ao contrário, estou pesando 65 quilos!
- 65 quilos, esse palito!
- Palito é você com toda a sua homeopatia!
- Por favor, não zombe da minha medicina; parece até que você ignora que a homeopatia se assenta em princípios científicos muito sólidos e incontestáveis!
- Com efeito: similia similibus…
- Como é? !!!
- Sim, esse é o princípio básico da homeopatia, e significa: curar-se uma dor de cabeça, provocando-se no doente, e por meio de uma insignificante dose de aguinha, outra dor de cabeça. Ora,
sendo princípio corrente em mecânica que duas forças iguais e contrárias, atuando sobre o mesmo ponto, se destroem, segue-se que duas dores, provocadas por causas diversas e atuando sobre a mesma cabeça, devem forçosamente anular-se.
Em tese, tudo isso é muito bonito; na prática, porém, não tem grande aplicação, mesmo porque as tais aguinhas nem sequer poder têm para provocar uma dor de cabeça! Haja vista ao que se deu com
o filho do dr. Oliveira, que ingeriu 12 vidros de drogas homeopáticas e nada sofreu! Eis, minha filha, como se desmoraliza uma ciência!
- Percebi logo que o seu intuito é provocar-me, dizendo tolices!
- Tolices, não, senhora!
- Tolices, repito.
- Olhe, se continuar nesse tom, meu bem, acabo proibindo a entrada da homeopatia em nossa casa.
- E onde foi você buscar autoridade para tal proibição?
- !!!...
Não mudasse eu de assunto, e só Deus saberia onde iríamos parar!
"Um interessante grupo de banhistas na Praia do José Menino, em Santos"
Foto e legenda publicadas na página 14 da revista A Cigarra de 1/8/1915
Já no dia anterior, tínhamos registrado o seguinte diálogo:
- Onde foi, todo perfumado?
- É boa: fazer uma visita!
- E para que todo esse chiquismo?
- Pois você não sabe que na casa do dr. Ribeiro há muita moça bonita?
- São coisas que você não devia dizer, nem brincando! Nãofica bem a um homem da sua idade dizer asneiras.
- Asneiras?!!! Mas… minha filha, uma mulher deve sempre sentir-se ufana ao ver o seu marido dar letras…
- Dar letras: um velho dando letras! Tem graça!
-Isso lá não: velho, tenha paciência…
Senti o sangue subir-me à face; ia ficar enérgico; mas… lembrei-me da neurastenia, e julguei melhor mudar de assunto!
"Grupo surpreendido pelo repórter fotográfico d'A Cigarra em um bote, na Praia do
José Menino"
Foto e legenda publicadas na página 33 da revista A Cigarra de 1/8/1915
Sinto sempre imenso prazer em provocar a minha boa Binoca; e, se o faço, é porque já verifiquei que ela precisa dessas discussões: a sua neurastenia o exige.
Como todo o marido deve estudar a sua mulher, a fim de conhecer as necessidades do seu temperamento, as exigências das suas manias e doenças, fui sempre muito solícito em não deixar faltar a Binoca
uns bons pretextos para as suas discussões.
A mudança de ares, os passeios e as diversões, porém, como que por encanto, afastaram da nossa convivência aqueles atritozinhos que já faziam parte integrante da nossa vida conjugal. E como foram
longas aquelas duas semanas! Como sofri a alteração por que ia passando a minha Binoca! Não parecia a mesma: senti que ia perdendo um pouco da estima que me devotava!
Não tardou, porém, que tudo voltasse às boas. Um passeio de automóvel, lá pelos lados da ponte pênsil, deu-nos ensejo para o início dos nossos antigos afetos.
Íamos a caminho da Praia Grande, vencendo as encostas de um morro, quando um casebrezinho muito pobre e quase em ruínas atraiu a nossa atenção. Fizemos uma parada e pedimos
um copo de garapa. Binoca não queria provar o delicioso caldo de cana, mas, tanto eu insisti, tantos louvores teci ao sabor do suculento líquido, que acabou por aceitar o meu oferecimento.
Íamos partir quando teve ela a infeliz ideia de meter a cabeça para dentro de um quartinho escuro do casebre, de onde uma vivaz menina trazia os copos de garapa.
Deparou-se-lhe, então, o seguinte quadro: a garapa estava sendo coada por uma velhinha, muito velha, através de uma toalha e dentro de uma bacia já bem carcomida pelos longos anos de uso!
Resultado:
- Que horror; venha ver que desaforo! Foi por isso que você me ofereceu garapa: outra coisa não podia eu esperar de você! Olhe para isso!
- Mas, minha filha… eu não sou culpado, e, além do mais, é possível que esteja tudo muito limpinho!
- Como não é culpado? Eu bem não queria garapa; e você a insistir, a insistir! E, com certeza, naquela bacia até pés se lavam! E, na toalha, enxugam-se horrores! Ah! Meu Deus, sou a mulher mais
infeliz do mundo!
Íamos entrando no automóvel, quando ouço a pequena que nos havia servido, dirigir-se à minha mulher, gritando indignada:
- Nois nun semo porco como meceis; nóis nun lava os peis naquela bacia; nois lava nela só as mão e a cara!!!...
"Outro grupo fotografado para A Cigarra, por ocasião das últimas regatas
realizadas, na Ponta da Praia, pelo Clube Saldanha da Gama"
Foto e legenda publicadas na página 37 da revista A Cigarra de 1/8/1915
No automóvel fui gozando um sem número de acres censuras, uma série interminável de lamúrias e queixumes, como já há duas semanas não ouvia!
Nesse mesmo dia, porém, ficamos mais amigos do que nunca: tudo devido ao delicioso copo de garapa!
SANTOS (Parque Balneário), julho de 1915 - THEO
Imagem: reprodução da página 17 da publicação
"Aspecto do salão do Parque Balneário, por ocasião do baile ali realizado em benefício da
Capela de Santo Antonio do Embaré"
"Grupo de banhistas a passeio pela Praia do José Menino"
Imagem: reprodução da página 18 da publicação
"Grupo de rowers, posando para o repórter fotográfico d'A Cigarra, por
ocasião das regatas realizadas na Ponta da Praia, pelo clube Saldanha da Gama"
"Grupo fotografado especialmente para A Cigarra, por ocasião das mesmas regatas"
Imagem: reprodução da página 21 da publicação |