Imagem: capa do livro Vidas em Pauta
Habitar as ruas
Por Luciana
Vaz
Eu voltava da padaria e lá
estava o mendigo se preparando para dormir. Ele não pediu nada, mas andei duas quadras e voltei para a padaria. Pedi pão com manteiga e café com
leite para viagem, uma viagem de pouco mais de um metro. Fazia muito frio e chovia torrencialmente. Ele deve ter escutado meus passos e percebeu que
parei ao lado dele. Espiou pela porta de sua casa de papelão e recebeu minha oferta com um largo sorriso. Em troca, perguntou se eu queria um pouco
de água e estendeu a mão com uma garrafa pet. Confesso que ao ver a garrafa pensei que fosse aguardente, mas não me senti em condição de julgar o
meu próximo porque jamais precisei enganar a fome ou o frio. Aliás, o meu próximo é um vizinho, um vizinho sem teto. Acho que ele queria fazer
amigos, conversar um pouco. O fato é que parei ali e logo descobri que ele não é um mendigo, mas um morador de rua.
Para entender a vida de quem habita
as ruas, é preciso derrubar mitos, desfazer-se de preconceitos, compreender as situações sócio-econômicas e culturais que rondam a vida dessas
pessoas há mais de 500 anos. Refletir sobre o passado é indispensável para a compreensão do presente e o preparo diante da expectativa de passos
acertados no futuro. Quando um cidadão entra em uma escola para matricular o seu filho ou em um posto de saúde para buscar socorro, precisa
apresentar no balcão de atendimento o documento de identidade e comprovante de residência. É preciso comprovar a sua cidadania.
Provavelmente, o único direito que
um morador de rua tem assegurado é o de ir e vir e, dependendo do ponto de vista, até meso este é limitado. E o seu dever de cidadão talvez seja
sobreviver. Dentro do universo de invisíveis sociais, há moradores de rua que trabalham, há mendigos que têm onde se abrigar e há gente que sonha,
mas não consegue caminhar sozinha. Há gente sem teto que se movimenta em grupos organizados tentando encontrar um lugar ao sol, mas sem sol o tempo
todo batendo na cara. E há solitários que se entregaram às sombras. É preciso não só entender o que leva uma pessoa a morar na rua, mas,
principalmente, saber distinguir quem realmente dorme ao relento.
Franceilton José dos Santos não é
mendigo, mas mora na rua, dorme nas calçadas da cidade de Santos. Faz questão de frisar a sua profissão: "eu sou biscateiro, sim, senhora!" Ele é
uma espécie de nômade dos tempos modernos. Passa os dias andando pela cidade à procura de trabalho. Não tem lugar fixo para dormir, não toma banho
todos os dias, mas tem endereço para correspondência, o bazar do Seu José Carlos, no bairro Aparecida. E quem manda cartas para Franceilton? Sua
família que mora no distrito de Vila de Abrantes, município de Camaçari, a 41 km de Salvador.
Abrantes é um dos tantos lugarejos
que existem ao redor de Camaçari. São vários pequenos distritos e nunca sabemos qual faz parte de que cidade. Ficam todos lado a lado na belíssima
Costa dos Coqueiros, a conhecida Linha Verde que vai até a Costa do Sauípe. Muitas belezas, mas também muita miséria. A capital, Salvador, já é uma
amostra da pobreza em que vive o povo baiano. Passear no Pelourinho é uma volta ao passado, mas não há como ignorar a realidade atual. Muitos
pedintes, muitos biscateiros, muitos vendedores desesperados para comercializar suas miçangas, suas cores, seus orixás e tudo que se possa imaginar.
Infelizmente, muitos pequenos ladrões também.
Os invisíveis sociais têm enormes
glebas em estatísticas, estudos e discursos, mas poucas perspectivas. Em uma pirâmide social, ricos ocupam a ponta menor e mais alta. Já os pobres,
junto com as massas excluídas e marginalizadas, ficam com a extensa e sólida base, tão sólida que dificilmente será desfeita. Há algumas décadas,
era muito fácil identificar as classes alta, média e baixa, mas, atualmente, o que temos são fragmentos de uma sociedade.
Odilon de Carvalho é sociólogo e
músico. Através da arte, teve a oportunidade de conhecer todo o Brasil, além de Angola, Suíça, Portugal e Espanha. Nestas viagens, fez suas próprias
observações. Para ele, antes de compararmos o cenário brasileiro com o de outros países, é preciso folhear as páginas da História do Brasil. A
colonização é um fator determinante na nossa condição de vida atual.
Odilon
explica que a nossa colonização foi extrativista, diferente da colonização norte-americana. Ele concorda que nos Estados Unidos da América também há
moradores de rua, mas afirma que, nesse caso, seria atacar o coração capitalista. No Brasil, não houve construção, caminhos que apontassem para um
desenvolvimento local. O nosso país era apenas uma oferta de riquezas a serem arrancadas daqui e levadas para abastar a Europa. Com a Lei Áurea,
negros e mestiços foram libertados; entretanto, sequer sabiam ler e escrever. Foram literalmente jogados na rua, sem eira, nem beira. Passaram da
condição de escravos para filhos da precisão.
O sonho de liberdade não passou de
permuta entre um pesadelo e um lamento. Pode-se dizer que até mesmo sonhos precisam ser alcançados com planejamento ou não duram mais do que um
alento fugaz. Resistem apenas o temo de uma canção para comemorar o poder de andar para qualquer direção, mas é exatamente este o problema. Veio a
liberdade, mas que rumo tomar? Segundo Odilon, o resultado de tudo isso é esse caos social, desde a Amazônia loteada, inclusive com placas indicando
propriedades dos EUA, até os nossos ignorados habitantes de viadutos, pontes e vias públicas. Ele explica que muitas famílias em situação de rua se
perdem na embriaguez e, na falta do álcool, chegam a urinar no próprio corpo para se aquecer por alguns minutos.
Franceilton é mestiço, é livre, tem
documento de identidade e a honra de dizer que, apesar dos pesares, não deve nada a ninguém. Mas Franceilton engrossa a base sólida da pirâmide
social, o que limita a sua liberdade. A passagem de Salvador para São Paulo custa em média R$ 200,00. Ele conseguiu juntar metade do valor quanto
planejou vir para São Paulo. A outra metade ele pediu emprestado a um amigo e foi pagando em suaves prestações. Levou aproximadamente um ano e meio
para quitar o empréstimo. Ele afirma não beber nem mesmo para afugentar o frio das ruas e também diz não fumar, não usar drogas, não ter vícios,
contrariando quaisquer estatísticas e censos.
Imagem: ilustração de um capítulo do livro Vidas em Pauta, na página 13
Todos os brasileiros comemoraram os
seus 500 anos e em Salvador o Pelourinho se enfeitou, a música tocou, a festa teve carros alegóricos, encenações e até mesmo a caravela de Cabral.
Mas 500 anos é um período relativo. É muito tempo para as gerações que estão jogadas nas ruas há séculos, mas é pouco para uma nação se desenvolver
culturalmente. A partir daí, o sociólogo Odilon faz as comparações. Do que viu na Europa, a única exceção é Portugal, coincidentemente nossos
colonizadores. A antiguidade da civilização européia pressupõe um desenvolvimento superior em questões sociais, culturais e intelectuais. Odilon não
viu na Suíça ou na Espanha sequer lixo, o que dirá gente jogada na rua. Ele afirma que, se por um lado o povo tem menos calor humano, por outro lado
tem mais respeito ao próximo e nas ruas. Isto começa pela atitude positiva dos motoristas, limpeza urbana, ordem geral.
Já Portugal tem muitos aspectos
parecidos com o cenário brasileiro, inclusive habitação em morros, juventude em massa ligada às drogas, lixo jogado nas ruas, gente jogada no chão.
Mas, ainda assim, não se compara com o exército invisível que temos no Brasil. Na concepção do sociólogo, o grande diferencial, além do tempo, é a
cultura, e, enquanto o nosso país continuar sendo colônia, haverá muitos moradores nas ruas. É o caso de Angola e, naquela nação africana, condição
humana é algo que nem existe. Ele explica que para as vidas que se perdem, vítimas do subdesenvolvimento, o que existe é um órgão público que
recolhe os corpos como se desfaz do lixo, tamanha a banalização.
Eis um ponto imprescindível para
compreender a sociedade diante dos ignorados moradores de rua: a banalização. Se mudarmos de endereço para uma rua mais movimentada,
conseqüentemente barulhenta, no início incomoda; entretanto, a repetição faz com que num dado momento os inquietantes ruídos desapareçam. Quando
somos submetidos a estímulos repetidos, eles deixam de serem percebidos. O mesmo ocorre com o que está ao nosso redor. Passamos a banalizar os
problemas sociais porque eles estão por toda parte e se tornaram lugar-comum.
O programa Fantástico,
exibido semanalmente pela Rede Globo de Televisão, mostrou isso quando falou sobre ética. A exibição do quadro "Ser ou não ser" começou com uma
imagem chocante. O corpo de um turista, que morreu afogado na Praia Vermelha, ficou horas no calçadão, enquanto não era removido. Mas esse estranho
elemento em um dos cenários mais bonitos do Rio de Janeiro não abalou os outros visitantes. Eles simplesmente ignoraram o cadáver ao lado. Pior
ainda: passavam sorrindo, fotografando o cenário, brincando e transitando ao lado do corpo como se ele não estivesse ali.
A conclusão de especialistas foi
que uma pessoa ignorada é como um objeto, sem vida, sem importância. A banalização leva à indiferença. E o que a indiferença faz é desconsiderar e
desqualificar o outro. O que choca no Brasil hoje não é tanto a quantidade de crimes e escândalos políticos que vemos todos os dias nos jornais, mas
a absoluta indiferença com que reagimos a tudo isso. Talvez este seja o sinal de um desejo de destruir o que não temos coragem de transformar.
Ainda no Rio de
Janeiro, vamos a um outro cartão postal: "Copacabana princesinha do mar" [*],
bairro repleto de turistas, alguns curiosos pela fama dos tempos áureos do bairro; outros em busca de sexo, já que "Copa" se transformou em um lugar
decadente e reduto de prostituição. Quem mora na cidade e transita freqüentemente pelo bairro certamente nota a enorme quantidade de moradores de
rua, mas ignora. Isso já se tornou banal, como é banal também o fato de a maioria ser meninos cheirando cola. Não precisa fazer um censo. Basta ter
o bom senso de não ser indiferente.
Esses meninos de rua podem ser
ignorados pela maioria dos moradores, sempre com pressa, e até por turistas, que por alguma razão não ficam chocados, talvez porque só tenham olhos
para o que foram buscar ali. Mas, se você não estiver só de passagem e não for morador do local há muitos anos, acaba percebendo que os meninos de
Copacabana são alvos de mais uma mazela social. Ao caminhar pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana, sendo um pouco mais observador, nota-se que
tão grande é a quantidade desses meninos quanto a de pedófilos agindo ao redor.
É comum ver carros parando para as
prostitutas que clamam por dólares e euros dos estrangeiros, os clientes mais fiéis do lugar. Mas também é comum ver carros parando e chamando
meninos que mal conseguem ficar em pé, seja pela fome ou pelo efeito das drogas. A degradação desses meninos é absoluta, mas não se vê nada para
inibir tal abordagem. Vêem-se apenas os policiais, o chamado "rapa", correndo atrás de ambulantes descredenciados. Coisas incomodam porque obstruem
a passagem, atrapalham os comerciantes ou por qualquer razão não deveriam estar ali. Mas há mesmo pessoas que se tornam objetos, sem vida, sem
importância, sendo que, algumas vezes, apenas as que têm coisas realmente são percebidas.
Um artista plástico suíço chamado
Christian Pierre Kasper veio ao Brasil, em 1997, fazer um doutorado. Sua monografia chama-se Habitar a rua. Um dos capítulos, A força das
coisas, aborda o comportamento de quem vive na rua diante de seus pertences. Ele aprofunda e questiona o conceito de habitat. Os moradores de
rua, não tendo acesso aos meios comuns para criar e manter uma casa, inventam outros modos de morar. O ser humano seria, antes de tudo, portador de
necessidades corporais, tais como sono, alimentação e preservação da temperatura corporal. Do lixo, os moradores de rua tiram objetos para suprir
necessidades de sobrevivência, páginas soltas de conhecimento e também buscam o belo fazendo peças de decoração.
Kasper afirma em sua tese: "Um
detalhe que observei é que quase todos os moradores de rua têm uma vassoura. A varredura do chão pouco tem a ver com um hábito remanescente da casa
que não se tem mais. É fundamentalmente marcação e a criação de um território. Só depois vêm as funções: um canto para dormir, cozinhar, guardar
pertences".
Reforçando os conceitos de "A força
das coisas", o famoso "jeitinho brasileiro" faz com que Franceilton tenha solução para tudo. Ele corta o próprio cabelo e, cá entre nós, não leva o
menor jeito para o serviço. Barbeia-se olhando um pedaço de espelho que achou no lixo. Suas roupas estão bem gastas, mas ele não pode se dar ao luxo
de fazer compras e acaba contando com a ajuda de pessoas de bom coração, como ele costuma dizer.
Fiquei olhando aquele homem
franzino. Não tenho idéia de quanto ele mede porque só o vi sentado ou deitado em meio a papelões. Até as propagandas eleitorais tão debatidas por
poluírem a cidade acabam servindo de abrigo para gente como Franceilton. Ele só tem o que pode carregar em uma velha bolsa de nylon e um saco
de lixo, daqueles pretos bem reforçados. Ele tem uma fala mansa, dizem que típica de baiano, mas eu conheci baianos que falam com certa ligeireza e
gesticulam muito. Franceilton nem gesticula, talvez pelo cansaço.
Voltando à cidade maravilhosa, em
2004, foi montada uma operação chamada Cata-tralha. Consistia em se apoderar dos pertences de moradores de rua através do serviço público de limpeza
urbana, muitas vezes com o respaldo da Polícia Militar e sempre por determinação das subprefeituras. A associação Médicos Sem Fronteiras e o
Centro de Justiça Global, uma ONG dedicada à promoção dos Direitos Humanos, resolveram intervir enviando ofícios para as autoridades competentes.
Vale a pena examinar o documento na íntegra e os resultados da intervenção das ONGs, porque é um retrato fiel da situação como um todo.
OPERAÇÃO CATA-TRALHA
(Tópico: Relator Especial sobre o
Direito à Saúde (ONU))
Ref. Operação "Cata-Tralha" -
Recolhimento forçado de pertences de moradores de rua pelo serviço de limpeza urbana, Rio de Janeiro, Brasil.
Ofício nº JG/RJ 225/04
Rio de Janeiro, 13 de setembro de
2004.
Prezado Sr. Kothari,
O Centro de Justiça Global e a
organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) vêm comunicar uma série de operações de limpeza urbana denominadas popularmente como "Cata-Tralha", que
consistem no recolhimento forçado de pertences de moradores de rua, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. A MSF tem registrado inúmeros casos
semelhantes. Vamos enfocar neste relato casos ocorridos entre os dias 14 de janeiro e 11 de agosto de 2004.
Contexto
Segundo a organização Médicos Sem
Fronteiras, existem atualmente aproximadamente 2.500 moradores de rua na cidade do Rio de Janeiro. Razões sócio-econômicas, desestrutura familiar e
dependência química são alguns dos principais fatores que conduzem essas pessoas a adotarem as ruas da cidade como suas moradias, vivendo
permanentemente em situações de risco.
Os moradores de rua são vítimas
extremas da exclusão social. A discriminação e, muitas vezes, a ausência de documentos, não permite que os moradores de rua sejam inseridos nos
sistemas sociais e de saúde pública. Na verdade, eles são tidos como pessoas indesejáveis pela sociedade, que lhes nega, sobretudo, o essencial para
a condição humana: a dignidade pessoal.
Nesse contexto, a presente denúncia
tem por objetivo informar as operações arbitrárias mencionadas anteriormente, executadas pela Companhia de Limpeza Urbana da cidade do Rio de
Janeiro (Comlurb), conjuntamente com a Guarda Municipal e, eventualmente, com a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Vale destacar que
essas operações são determinadas administrativamente pelas sub-prefeituras locais.
Os fatos
No dia 14 de janeiro de 2004,
guardas municipais do Rio de Janeiro, conjuntamente com a Comlurb, recolheram os pertences do morador de rua Antônio Carlos. Nesse dia, o lavador de
carros Antônio Carlos foi comprar um jornal e um maço de cigarros e quando retornou um grupo de guardas municipais, conjuntamente com funcionários
da Comlurb, estavam recolhendo os seus pertences. Além dos pertences de Antônio Carlos, os guardas municipais recolheram forçosamente os pertences
de vários outros moradores de rua na mesma operação.
Antônio Carlos perdeu as roupas que
estavam em sua bolsa, um laudo médico original, remédios, um exame de Raio X, seus documentos, R$ 80 (cerca de US$ 30) e um balde usado por ele como
material de trabalho. Quando Antônio Carlos reivindicou os seus pertences aos guardas municipais que o abordaram, os mesmos lhe responderam, em tom
de ameaça: "É melhor ficar calado, vocês estão errados dormindo aqui debaixo".
Segundo os Médicos Sem Fronteiras,
que se encontravam próximo ao local dos fatos realizando naquele momento atendimento de saúde e social, participaram dessa operação aproximadamente
oito guardas municipais. De acordo com informações concedidas por representantes dos Médicos Sem Fronteiras, com seus bastões levantados de forma
ameaçadora, os guardas municipais procuravam os moradores de rua e seus pertences e juntavam caixotes, vassouras, papéis, garrafões de água e outros
objetos pessoais de vários moradores de rua, e jogavam tudo no caminhão da Comlurb, empresa responsável pelo recolhimento do lixo da cidade.
Um outro caso emblemático é o de
Adriana, 33 anos. Adriana nasceu e cresceu no litoral de São Paulo, mas mudou-se em janeiro de 2004 para a cidade do RIo de Janeiro, onde desde
então é moradora de rua. Durante as primeiras semanas no Rio de Janeiro viveu nas calçadas da Praia de Copacabana, na Avenida Atlântica, Zona Sul da
cidade. Segundo Adriana, durante esse período os funcionários da Comlurb e os guardas municipais em cooperação com a Polícia Militar recolheram
várias vezes os pertences dos moradores de rua, entre eles os seus. Adriana ainda afirmou que, por diversas vezes, pessoas que residem no bairro de
Copacabana, que costumavam fazer doações (como roupas, cobertores, alimentos e remédios) para a população de rua local, foram abordados pelos
guardas municipais, que, em tom de ameaça e intimidação, os orientaram a não continuar fazendo as doações.
Em março de 2004, Adriana mudou-se
para o Centro do Rio de Janeiro e presenciou, por diversas vezes, as operações Cata-Tralha da Comlurb e da Guarda Municipal no local. No dia 11 de
agosto de 2004, por volta de 10:30 h, chegaram dez guardas municipais, quatro policiais militares e o caminhão da Comlurb com quatro funcionários da
empresa, na Avenida Presidente Wilson, na altura do número 147. Os guardas municipais e os funcionários da Comlurb xingaram Adriana, que havia se
instalado há algum tempo no local, de "ladra" e "vagabunda", e recolheram seu casaco jeans e seu cobertor. Recolheram também um monte de papel que
pertencia a Leandro, 20 anos, que havia recolhido durante um dia inteiro de trabalho com o objetivo de vendê-lo. Nessa data, Adriana estava no
segundo mês de gravidez e estava fragilizada por uma ferida aberta na perna esquerda.
Segundo Adriana, essas operações
ocorrem freqüentemente na cidade do Rio de Janeiro. Elas são conhecidas popularmente como "operações cata-tralha". Inúmeros outros moradores de rua
confirmaram aos Médicos Sem Fronteiras e à Justiça Global que essas operações ocorrem com freqüência em diversos bairros do RIo de Janeiro.
Segundo Selma, 23 anos, que mora na
rua desde setembro de 2002, no Centro do Rio de Janeiro, as "operações cata-tralha" ocorrem todas as segundas, quartas e sextas-feiras. De acordo
com Selma, numa quarta-feira do segundo semestre de julho de 2004, entre 8:30h e 9:00h, um caminhão da Comlurb, acompanhado por um carro da Guarda
Municipal e um carro da Polícia Militar, chegou na passarela da Avenida Chile, esquina com a Rua do Lavradio, no Centro da cidade, de onde foram
recolhidos vários objetos pessoais de Selma como roupas e chinelos novos, carteira de vacinação e uma bicicleta nova, do seu filho Roberto, de 4
anos. O menino havia ganhado a bicicleta de um funcionário da Petrobrás. Também levaram o "burrinho" do marido de Selma, que estava cheio de papel
coletado. Segundo Selma, alguns dias depois, revoltado com a situação, o funcionário da Petrobrás que havia doado a bicicleta ligou para a Comlurb a
fim de recuperar o objeto, porém seu pedido foi ignorado.
No bairro de Copacabana as
operações acontecem com uma freqüência ainda maior. O recolhimento é feito de segunda a sexta-feira, duas vezes por dia, segundo o morador de rua
Ricardo, 39 anos, cujos pertences também já foram recolhidos durante uma operação cata-tralhas.
Uma outra vítima foi o adolescente
Raimundo. Até junho de 2004, Raimundo viveu nas ruas do bairro da Barra da Tijuca bairro nobre na zona Oeste do Rio de Janeiro. Segundo ele, em um
dia, em meados de junho de 2004, guardas municipais acompanhados de um caminhão de Comlurb solicitaram a sua carteira de identidade. Como ele não
quis entregá-la, alguns guardas municipais o seguraram pelas pernas, enquanto outros guardas municipais batiam com paus nas suas costas e joelhos. A
moradora de rua Carmem, que se encontrava no mesmo local, confirmou o depoimento de Raimundo e contou que ela foi obrigada a entregar o seu cobertor
para os funcionários da Comlurb.
Alguns dias depois, Raimundo se
dirigiu à Central da Comlurb da Barra da Tijuca e à sede da Guarda Municipal para solicitar a restituição de sua carteira de identidade. Contudo,
Raimundo não recebeu de volta o seu documento. Esse fato não surpreendeu os Médicos Sem Fronteiras, que têm informações de que os pertences
recolhidos vão direto para o depósito de lixo da Comlurb. Essa tampouco foi a única vez que Raimundo sofreu com essas operações. Em outras ocasiões
ele perdeu, entre outros objetos, seu material de trabalho - doces e refrigerantes, que ele vendia durante o dia.
De acordo com testemunhas ouvidas
pelos Médicos Sem Fronteiras, os moradores de rua são obrigados a entregar até mesmo pertences considerados essenciais a qualquer cidadão, como
documentos, roupas, cobertores e água potável. Nas mesmas ações têm sido recolhidos remédios (contra HIV, tuberculose etc.) e exames de saúde. Vale
destacar que já é muito difícil o acesso da população de rua a medicamentos e serviços de saúde pública, e o recolhimento de remédios e exames
médicos durante as "operações cata-tralha" vem agravar ainda mais o quadro da saúde pública, além de expor as vítimas a sérios riscos de vida.
Como foi anteriormente exposto, os
casos narrados nesse documento não são casos isolados. Trata-se apenas de alguns entre dezenas de outros casos sobre os quais MSF vem recolhendo
depoimentos das vítimas. De acordo com os Médicos Sem Fronteiras, a Companhia de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro (Comlurb), acompanhada
principalmente da Guarda Municipal e da Polícia Militar do Rio de Janeiro, começou há alguns anos o recolhimento forçado de pertences de moradores
de rua, porém essa prática se intensificou consideravelmente em meados de 2003, em razão da implantação do projeto "Zona Sul Legal" pelo Governo do
Estado do Rio de Janeiro.
Inicialmente, o projeto "Zona Sul
Legal" possuía o objetivo de retirar crianças, adolescentes e adultos que vivem nas ruas da Zona Sul (a área nobre do Rio de Janeiro, que inclui
bairros famosos como Copacabana e Ipanema, entre outros) e do Centro (zona comercial), através da ação da Polícia Militar, para interná-los
compulsoriamente em abrigos. Ocorre que os abrigos públicos oferecem condições muito precárias, sem serviços de atendimento à saúde ou assistência
social satisfatórios, além de precariedade de higiene e limpeza em suas dependências. Assim, os internos costumam evadir-se do local, retornando
logo às ruas.
Os Médicos Sem Fronteiras obtiveram
mais informações acerca das operações "Cata-Tralha" no ano de 2003, através da execução do projeto "Meio-Fio". O projeto da MSF busca a melhoria das
condições de vida da população em situação de rua do Rio de Janeiro e sua integração à rede pública de saúde e social. Todos os dias, uma equipe
multidisciplinar sai às ruas para o atendimento e encaminhamento de demandas dessa população, tais como questões prementes de saúde, documentação,
família e trabalho.
Segundo os Médicos Sem Fronteiras,
as vítimas dessas operações "Cata-Tralha" são majoritariamente trabalhadores com ocupações diversas tais como reciclagem e comércio informal e que
vivem nas ruas da cidade.
No dia 19 de janeiro de 2004, os
Médicos Sem Fronteiras enviaram ofícios para as autoridades do Rio de Janeiro informando sobre a situação dos moradores de rua e as graves
conseqüências das operações Cata-Tralha. Os ofícios foram enviados para o prefeito da cidade, César Maia, e para a governadora do Estado, Rosângela
Matheus de Oliveira. Até o momento de finalização deste informe, a Médicos Sem Fronteiras não havia recebido uma resposta oficial dessas
autoridades.
Os Médicos Sem Fronteiras também
enviaram dossiês sobre a operação "Cata-Tralha" para os presidentes da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Vereadores do Município do Rio de
Janeiro e da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de janeiro, vereador João Cabral e deputado Alessandro Molon, respectivamente. Esse último
ainda solicitou informações à Prefeitura da Cidade. Após ambas as presidências haverem mudado, novas cartas e dossiês foram encaminhados por MSF aos
atuais presidentes das comissões de direitos humanos, vereador Maria Del Rey e deputado Geraldo Moreira. Posteriormente, MSF enviou ofícios
solicitando uma resposta.
Apenas o presidente da Comissão de
DIreitos Humanos da Assembléia Legislativa respondeu, marcando, meses depois, uma reunião para o dia 9 de agosto de 2004. Infelizmente, essa reunião
foi cancelada e remarcada para o dia 17 de agosto. Nessa data, porém, nenhum representante da Comissão de Direitos Humanos compareceu no horário e
local determinados.
Salientamos que em 6 de abril de
2004 o dossiê que reporta as denúncias e testemunhos da população à MSF foi também enviado à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados
Federais em Brasília, que apenas remeteu aviso de recepção e promessas de que os fatos denunciados seriam apurados.
No dia 1º de julho do corrente ano,
durante a Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em Brasília, os Médicos Sem Fronteiras entregaram novamente, dessa vez em mãos, o
dossiê ao deputado estadual Geraldo Moreira. No mesmo dia, foi entregue o dossiê à ONG Centro de Justiça Global.
Até o momento da finalização deste
informe, os Médicos Sem Fronteiras não haviam recebido qualquer resposta das Comissões de Direitos Humanos anteriormente mencionadas.
O direito à moradia é reconhecido
como um direito humano e protegido, entre outros, pelo Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, ratificado pelo
Estado brasileiro no dia 24 de janeiro de 1992. O artigo 11 do Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais sublinha que os
Estados-parte devem reconhecer o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si, inclusive à alimentação e vestimenta. O General
Comment 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas enfatiza especialmente os problemas de moradores de rua como
uma transgressão do direito à moradia adequada.
Segundo os Princípios de Maastricht
(1997) sobre Violações de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais obriga os
Estados-parte a tomar medidas de promoção, a proteger esses direitos e, primordialmente, a respeitar esses direitos. A obrigação do Estado de
respeitar o direito à moradia exige do Estado a não-transgressão do exercício de tal direito pelos representantes do Estado.
Os moradores de rua já vivem sob
condições de moradia inadequadas e, além disso, enfrentam muitas dificuldades para acessar serviços públicos tais como saúde, educação etc. O
recolhimento de roupas, remédios e materiais de trabalho dessa população carente, sem qualquer base legal, pelos agentes do Estado, potencializa a
situação de risco na qual estão inseridos os moradores de rua e caracteriza a evidente violação do direito à moradia dos mesmos.
Gostaríamos de agradecer
antecipadamente a atenção dispensada ao caso relatado e colocamo-nos à disposição para informações adicionais ou maiores esclarecimentos através dos
telefones +5521 2547 7391, fax +5521 2549 3599, ou via correio eletrônico em
defensores@global.org.br.
Atenciosamente,
Susana de Deus
Coordenadora Geral
Médicos sem Fronteiras
Sven Hilbig
Coordenador de Projetos
Centro de Justiça Global
Mahine Dórea
Advogada
Justiça Global
Este ofício é mais do que uma denúncia de recolhimento
indevido de pertences, mas um retrato fiel da condição de vida dos moradores de rua. No Rio de Janeiro, segundo consta na carta, o abrigo é
precário. Mas, mesmo que em outras cidades existam abrigos decentes, a questão não é só dar um banho, um prato de sopa e um emprego. É preciso
oferecer dignidade e o primeiro passo é um tratamento médico adequado para cada caso.
Legítimos cidadãos têm empregos, mas se sofrem de
quaisquer doenças que os impeçam de exercer as suas atividades têm assegurado o direito de se afastar do trabalho até ter alta médica. Há casos de
depressão que culminam em aposentadoria por invalidez. Será que a Saúde Pública teria condição de absorver toda essa demanda de pessoas enfermas sem
casa, sem documento, sem vida?
Os consultórios psiquiátricos estão cheios de pacientes
com depressão que não têm sequer a iniciativa de escovar os próprios dentes, mas que têm casa, documento e meios para retomar suas vidas.
Legitimados cidadãos podem estar recebendo da sociedade apenas a oferta de um emprego, quando eles precisam, antes de tudo, de atenção médica.
Inclusão social deve ser pensada não só em termos de necessidades emergenciais como fazer barrigas pararem de roncar e oferecer um teto por uma
noite, muito menos um emprego para quem precisa urgentemente de cuidados especiais. Moradores de rua talvez não tenham braços para alcançar a
dignidade, apenas um prato de sopa. E o índice de problemas mentais na população de rua é bastante significativo, sem falar nas dependências
químicas e traumas familiares.
Imagem: ilustração de um capítulo do livro Vidas em Pauta, na página 99
A Prefeitura de Santos realizou em setembro de 2006 um
censo de população de rua. Com o objetivo de aperfeiçoar o atendimento, traçou o perfil genérico das 362 pessoas encontradas nessa situação. A
conclusão do censo é que a maioria desses indivíduos (81%) não é do município, embora alguns tenham aqui algumas referências familiares. Isso nos
remete aos inúmeros casos de cidades que recolhem seus moradores de rua e, literalmente, jogam em outros municípios, mas o resultado oficial dessa
pesquisa não expressa com clareza esse traço da sociedade.
As pessoas vêm para Santos à procura de melhores
condições de vida: moradia, trabalho e atendimento à saúde, entre outros. A falta de emprego e de lugar para morar, os conflitos familiares, o
álcool e a droga são as razões que levaram as pessoas às ruas, fixando-as. O assistencialismo do povo santista, quando fornece alimentação nas ruas,
sem outra perspectiva, não só mantém essas pessoas nas ruas, mas também dificulta o trabalho educativo realizado pelos Educadores de Rua, visando à
inclusão social, é o que diz no relatório.
A maioria dessas pessoas tem uma profissão, já
trabalhou, mas necessita de uma requalificação profissional para nova inserção no mercado de trabalho. O uso do álcool, drogas ilícitas e o
sofrimento mental são as maiores dificuldades no processo de inclusão social. A população em situação de rua tem problemas de saúde como o vício,
tuberculose, HIV, entre outras doenças, o que a torna bastante vulnerável. São todos dados oficiais do município de Santos.
Tendo os dados em mãos, a Prefeitura apontou metas de
trabalho. Uma das propostas é realizar um Seminário Metropolitano, objetivando estabelecer medidas mais eficazes para o enfrentamento do problema.
Os encontros com os demais municípios da região estão ocorrendo desde junho de 2006. As idéias são programar ações mais efetivas que reduzam o uso
de álcool e drogas, incluindo as internações. Outras preocupações são intensificar o recâmbio das pessoas às cidades de origem e ampliar o Programa
de Inclusão Cidadã - Fênix, que busca recolocar o morador de rua no mercado de trabalho e recuperar sua auto-estima.
O relato de Kasper em Habitar as ruas é mais
profundo. Ao acompanhar moradores de rua em São Paulo e Campinas, eis a expressão de sua visão etnográfica: gente que prefere viver ao relento,
porque em albergues é expulsa às 7 da manhã e não pode reservar seu canto; gente que foge da família para beber livremente; gente que vai e volta
porque não consegue pagar o quarto de cortiço; gente que freqüenta o local a negócios; gente jovem das redondezas que se esconde para consumir
drogas. "Um detalhe que me surpreendeu foi a longevidade da relação dos casais", ressalta o pesquisador. No último capítulo, Extermínio,
Kasper recorreu a uma leitura sociológica para mostrar como se cria uma categoria de pessoas descartáveis, sem funcionalidade na economia e sem
perspectiva de reinserção no mercado. "Na realidade, são consideradas matáveis. Morrem moradores de rua todos os dias e a mídia só faz
barulho em chacinas, que permanecem impunes", constata.
E Franceilton tem seus próprios números, sua história
para contar. Dos 38 anos de idade, todos foram de miséria e pouco mais de dois são de fuga, mas também de esperança. Pouco mais de dois anos é o
tempo que está em São Paulo e pouco mais de seis meses está em Santos porque encontrou aqui o que a Prefeitura chama de assistencialismo e ele chama
de solidariedade. Tem dois filhos (de 6 e 8 anos), esposa, mãe e irmãos. Ele não tem certeza de quantos irmãos porque seu pai, como ele mesmo
descreve, "era fogo"! Apesar da saudade de tudo, de todos, se sente confortado por estar à beira-mar. Aqui ele dorme na rua, mas consegue trabalho
esporadicamente. Limpa vitrines de lojas, varre chão, faz pequenos consertos, algumas vezes consegue um bico em construção e assim vai levando.
Em relação ao censo da Prefeitura de Santos, o que
chama a atenção é a postura diante das associações que, voluntariamente, levam alimentos às ruas. O poder público não estimula a ajuda através de
esmola e isso é fácil compreender. A maioria das pessoas afirma não dar dinheiro, mas oferecer comida se encontrar alguém pedindo dinheiro.
Há ONGs, associações de classe, grupos religiosos,
uniões fraternais que fazem a sua parte em nome da solidariedade - levando roupas e comida nas ruas - para minimizar o problema. Poderíamos encarar
isso como o atendimento de emergência - pelo menos é uma parcela da sociedade que não fica indiferente, não banaliza a situação e tenta não deixar
as pessoas morrerem de fome e frio. É gente que tenta salvar algumas vidas enquanto a solução definitiva não surge. Mas alguns profissionais dizem
que isso é paliativo. Há ainda quem diga que esse tipo de ação é prejudicial porque os moradores de rua se acomodam e não buscam uma ajuda eficiente
para solucionar o problema.
Vai virando um ciclo vicioso. A maioria dos moradores
de rua tem doenças, não quer ir para os abrigos porque afirma que será socorrida da fome e do frio, mas, em seguida deverá trabalhar. Nesse caso,
ela não será tratada de suas doenças, logo, não depende só de boa vontade essa recuperação. Mas a Secretaria de Assistência Social de Santos, por
exemplo, afirma que durante o censo e com freqüência oferece ajuda, incluindo atendimentos médicos. Entretanto, muitos recusam. O poder público não
pode obrigar as pessoas a irem para os abrigos, pois estaria ferindo um direito básico do cidadão, o direito de ir e vir.
O morador de rua tem a garantia do seu direito de ir e
vir, mas não tem assegurados outros direitos básicos de qualquer cidadão: Alimentação, Saúde, Educação. Muitos não têm sequer documentos para ter o
direito de ir por conta própria em busca de sua Cidadania. De acordo com o censo de Santos, 48,5% dos moradores de rua não têm quaisquer documentos.
Se o cidadão que mora nas ruas for de outra cidade, ao procurar o Serviço Público vai ser socorrido, mas também vai precisar voltar para o seu local
de origem, logo, acabou o direito de ir e vir.
A sociedade vive um dilema: arregaça as mangas ou (se
for um cidadão consciente) vive sob a culpa de ignorar os que têm menos oportunidades na vida. Um indivíduo que age por conta própria - leva um
prato de sopa, por exemplo - pode com isso atrapalhar as ações formais. Ele vota, elege seus representantes, trabalha para não ser mais um problema
social, mas convive com esse dilema. Ciclo vicioso, carrossel de ilusões, empurra-empurra, empurra, gira e não sai do lugar. Assim são tratadas as
feridas de quem mora nas ruas. Uns discursam, outros morrem, uns procuram pretextos, outros procuram no lixo. A única coisa concreta que existe na
vida de um morador de rua é a calçada onde ele dorme.
A atriz santista Camila Vaz mora no Rio de Janeiro há
cinco anos. Ela conta que aprendeu com as histórias familiares a praticar solidariedade, custe o que custar. Camila reconhece que nos tempos de seu
avô a realidade era outra, tanto que o "vô Antonio" abria a casa para mendigos sentarem à mesa junto com esposa, filhos e empresários, clientes de
sua empresa. Mas a insegurança de hoje em dia não permite mais esse tipo de concessão. Ela pensou ter encontrado um meio de ajudar quando conheceu
um casal em um centro espírita. Eles atuavam por conta própria. Juntavam uma turma de dez pessoas e em dois carros iam pelas ruas de Santos
distribuindo biscoitos, leite e roupas. Isso acontecia todas as segundas-feiras.
Alberto e Lígia a orientaram sobre as dificuldades e
afirmaram que não bastava apenas boa vontade, mas era necessário ter muita paciência e, principalmente, tentar não se envolver demais com as causas
individuais. Eles acreditavam que esse grupo estava ali para cumprir um dever espiritual e espiritualista. Camila tentou assimilar as lições, mas no
fundo sentia-se despreparada porque sentia medo de querer acolher demais, de ver uma criança jogada na rua e não poder levar para casa, apenas
amenizar o sofrimento.
Ela ressalta que a doação vinha de uma comerciante e
estava perto da data de validade, porém, em hipótese alguma o grupo doava um alimento fora de prazo. O leite era fervido e acondicionado em garrafas
térmicas para aquecer um pouco aquelas noites ingratas. Camila conta que a primeira aproximação é muito difícil, mas em pouco tempo passa a ser
instintiva. É quase como a questão da banalização, do sujeito ser estimulado até sentir indiferença, mas, nesse caso, às avessas. Com a repetição, o
voluntário se desfaz do receio e consegue ir em frente como se ligasse um piloto automático.
Camila fez esse trabalho por uns dias, mas houve um
momento em que ela não conseguiu mais. Quando se aproximou de um idoso e ofereceu o alimento, ele disse que não sentia fome, mas sonhava com um par
de meias. Ela conta que desabou e não suportou a dor. Quando chegou em casa, lembrou de todas as orientações que recebeu, mas não conseguia dormir.
Levantou-se da cama e, no meio da madrugada, tomou um ônibus até a Avenida João Pessoa levando todas as meias que encontrou nas gavetas.
Na opinião da atriz, o voluntariado faz o que o poder
público deveria fazer: "Não se pode atender uma pessoa em situação extrema sem levar também afeto. Funcionários públicos são muito burocráticos e
interferir na solidariedade alheia não é caminho para cumprir deveres". Mas ela reconhece que ser voluntário é um dom para poucos porque precisa ter
muita estrutura emocional.
Depois do episódio das meias, ela sentiu-se perturbada
a tal ponto que ajudava a embalar as doações, mas jamais voltou às ruas. Hoje, mora no Rio de Janeiro e ajuda duas crianças que se abrigam perto de
sua antiga residência. Ela não mora mais no bairro; entretanto, vai até lá apenas para dar assistência aos dois menores. Camila conclui dizendo que
faz o possível para não mudar a sua rotina e sempre lembra dos conselhos daquele casal que a levou para o voluntariado. Ela criou vínculos com as
crianças e mais do que levar comida, roupa ou brinquedo, sempre vai para conversar e visitar dois amigos, independente de onde eles morem.
Opiniões à parte, a Prefeitura santista iniciou, logo
após o censo, a campanha Em vez de esmola, ofereça ajuda, mas essa ajuda tem direcionamentos. A Secretaria de Assistência Social pretende
estabelecer parceria com os grupos que distribuem alimentos nas ruas, providenciando um espaço adequado e organizando as ações. O objetivo é
realizar campanhas contínuas para conscientizar a população dos efeitos negativos da esmola, levando a sociedade a colaborar com a rede social
(ONGs) do município.
Camila Vaz acredita que solidariedade não pode ser
monitorada e muito menos organizada por um serviço público. Ela conclui dizendo que antigamente os voluntários eram sempre bem-vindos, mas, agora,
as ONGs são aliadas de vários interesses. O terceiro setor é aclamado politicamente e, inclusive, faz parte de projetos de marketing das
empresas privadas; portanto, os interesses emergenciais dos miseráveis ficaram em segundo plano. Ela frisa que a sociedade precisa se unir, mas cada
um tem o seu papel; no caso, o Poder Público precisa agir mais e não apenas dirigir a cena. "Organizar os serviços dos voluntários, no meu ponto de
vista, é mais uma maneira de limpar as ruas, esconder os famintos, maquiar a verdade para a sociedade não precisar enxergar a verdadeira situação em
que vivemos".
O jornalista Paulo de Tarso explica que o Poder Público
conceitualiza a pessoa em situação de rua como um ser humano que precisa ser inserido novamente no contexto social (inclusão social). Para tanto,
disponibiliza uma parcela de seus recursos no sentido de atender essa parte da população. Coloca unidades e profissionais gabaritados para o
atendimento. Na opinião dele, a pessoa em situação de rua, seja uma vítima (ainda que temporária) da desestruturação familiar, da situação econômica
do País e, em muitos casos, de sofrimento mental (depressão, esquizofrenia etc.). O álcool também leva muita gente para as ruas. Nesse caso, é
importante que o atendimento seja feito por profissionais. Tarso conclui dizendo que a sociedade deveria, em primeiro lugar, votar nos governantes
certos e depois cobrar dos políticos as promessas de campanha. Deveria ainda canalizar recursos para as ONGs que atendem esta parcela da população.
A esmola pontual só ajuda a manter a pessoa em situação de rua, pois fomenta ainda o tráfico de drogas, o trabalho infantil e o consumo de álcool.
À margem dos debates, Franceilton já nem lembra mais a
última vez que votou. Apenas chora e rapidamente recobra a consciência de que gostaria de voltar para a Bahia, mas a família precisa do pouco
dinheiro que ele consegue mandar para casa, preciosos R$ 15,00, mas em meses melhores ele manda até R$ 50,00. Ele não tem profissão formal, mas
insiste em falar na carreira de biscateiro. Só não foi a única carreira que teve na vida porque também atuou na mendicância. Em Abrantes, não
conseguia nem "tirar R$ 10,00 por mês". "Agora que os meninos tão maiorzinhos eu tô pensando em voltar e podemos trabalhar todos juntos".
Lá ele vivia praticamente de esmolas, mas nunca gostou
de pedir dinheiro. Ele quer trabalhar, mas na Bahia tem pouco trabalho e muita gente precisando. "Todo mundo que pode acaba saindo de lá, mesmo os
mais estudados". A mulher dele faz "sacolé" e vende na praia, mas dá pouco dinheiro e nem sempre ela tem como comprar o material necessário.
O isopor furou e agora ela não pode mais ir à praia de Jauá, que é onde tem mais turistas. O sacolé não dura muito tempo com o isopor furado.
Além disso, precisa pegar condução e custa caro. Então, ela vende ali mesmo nos arredores de casa, mas tem pouca freguesia.
Ela começou a vender o sacolé quando perdeu o
serviço que fazia antes. Ela cozinhava maniçoba para um restaurante de Teixeira de Freitas, outro distrito nas proximidades de Salvador, esse
luxuoso e cheio de condomínios fechados. Maniçoba é um prato muito especial à base de folha de mandioca. Leva cerca de uma semana para ser preparado
e se não for bem feito pode causar sérios danos à saúde e até matar. O resultado é uma espécie de feijoada com várias carnes, mas no lugar do feijão
vai a maniva, que é a folha. O restaurante ia buscar a maniçoba na casa de Jarina, a esposa de Franceilton, mas posteriormente contratou um
cozinheiro que sabia preparar a maniçoba sem envenenar os clientes e ela perdeu o trabalho.
Aqui em Santos, Franceilton vai de loja em loja pedindo
serviço. De 15 em 15 dias, ele lava a vitrine de uma loja em um pequeno shopping. Vez ou outra ele vai para os lados do Mercado Municipal
carregar mercadoria e aproveita para almoçar no restaurante popular. Já tentou ficar em supermercados se oferecendo para carregar compras, mas os
seguranças o mandam embora ou "as próprias madames me enxotam".
Sérgio Roberto Vieira, atualmente jornalista do
Diário do Grande ABC, já teve a oportunidade de se aprofundar bem nessas questões. Em 1998, passou uma noite no Albergue Noturno de Santos, onde
pôde conhecer histórias de quem sabe o que é pertencer ao grupo da invisibilidade social. "Vi gente de todo tipo. Nem preciso dizer que passei em
claro aquela noite. Não só pelo espírito da curiosidade - estava lá sem me identificar como jornalista, passando-me por um deles". Ele admite que
sua insônia também foi proveniente da insegurança, preocupação consigo mesmo, afinal não sabia se encontraria um ambiente hostil. Apesar de já terem
se passado oito anos, aquelas horas se tornaram inesquecíveis. "Alguém poderia imaginar que no banheiro frio teria um poeta, no auge de sua
criatividade?"
Depois, Sérgio Roberto conheceu a dura realidade dos
moradores de rua da nossa imensa capital, quando em 2003 trabalhou na Secretaria de Assistência Social do município de São Paulo. "Lá tudo é
superlativo, até mesmo os invisíveis da sociedade. Ao todo, são 10 mil pessoas sem nenhuma perspectiva de vida, sem ânimo e o pior: sem dignidade.
Quando se conversa com alguns deles - já fiquei horas batendo papo com ex-jogadores de futebol, ex-advogados, ex-empresários, ex, ex, ex dos mais
diversos - eles não se cansam de falar de suas histórias, mas não conseguem enxergar um palmo à sua frente em termos de futuro". O jornalista diz
que o resgate é difícil, gradativo, mas é possível. O fato é que depende tanto ta pessoa quanto do Poder Público. Sem as mesma freqüência, é quase
impossível sair do lugar.
"Ainda assim, reconheço que é extremamente difícil
solucionar este problema com tantas variantes. O velho chavão de ensinar a pescar do que dar o peixe pronto talvez seja o mais verdadeiro entre
tantas outras teses. Mas, infelizmente, ainda falta muito para que possamos ver o cidadão de bem, muitas vezes despejado da própria sociedade,
sentado na beira do rio com sua varinha e o cesto cheio de peixes". Para ele, o problema envolvendo o morador de rua deve ser analisado sob duas
perspectivas: a visão legal e a social.
O Direito Constitucional de ir e vir garante a
liberdade a qualquer cidadão do País. Parece óbvio, mas este é o principal argumento para que assistentes sociais de prefeituras, por exemplo, não
obriguem alguém a pernoitar em um albergue. Ou nem mesmo para se alimentar ou tomar um banho quente. Por outro lado, isso não pode ser encarado como
desculpa pelo Poder Público para fechar os olhos diante deste problema. Na mesma direção vemos as ONGs, que tentam de todas as formas fazer a sua
parte. Mas nem sempre o terceiro setor também tem poderes para ir adiante. "Até que ponto um pouco de sopa dentro de uma garrafa pet cortada resolve
um problema tão complexo como este? Onde fica a dignidade em comer na rua, no sereno?", questiona Vieira.
Na verdade, é mesmo como andar em círculos e o quadro
de invisibilidade social, particularmente a vida dos moradores de rua, nos leva de volta à pirâmide social. São formas tão volumosas que começamos
sempre com respostas e terminamos com perguntas. Está tudo aí para quem quiser ver, mas o que fazer ninguém sabe ao certo. Daí, talvez seja mais
fácil fingir que é deficiente visual. Franceilton estudou até a quarta série do antigo primeiro grau, mas sabe recitar. Falou-me um texto, mas não
sabe quem é o autor. "Moça, a poesia diz assim:
"A Bíblia
já dizia
Pra quem sabe entender
Que há tempo de alegria
Que há tempo de sofrer
Que o tempo só não conta
Pra quem não tem paixão
E que depois do encontro
Sempre tem separação
Que o dia que é da caça
Não é do caçador
E que na alternativa
Viva e viva
E viva o amor
A gente vem da guerra
Pra merecer a paz
Depois faz outra guerra
porque não pode mais
E deixa andar e deixa andar
Até a guerra terminar
Vamos curtir, vamos cantar
Até a guerra se acabar".
Pesquisei e descobri que a poesia é de Vinícius de
Morais e chama-se A Bíblia. Num segundo encontro, eu disse isso a ele, que me agradeceu e disse: "Só podia ser dele, o hómi adorava a
Bahia, sabe?". De repente, as lágrimas, de repente, o olhar se perde, de repente, nos despedimos com um longo silêncio.
[*] Copacabana
princesinha do mar é trecho de uma música intitulada Copacabana, da autoria de Braguinha e Alberto Ribeiro.
N.E.: Em correspondência
eletrônica a Novo Milênio, em 6/2/2008, a autora
Luciana Vaz acrescenta que o termo "filhos da precisão", que usou no texto, é título de uma canção da MPB gravada
por Rita Ribeiro, com autoria de Erasmo Dibel.
Imagem: capa final do livro Vidas em Pauta
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