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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [21]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                            NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[21] Relações sociais

Obrigações masculinas e prendas femininas - O que nos revelam algumas cartas - A curiosa psicologia bandeirante - Educação e cortesia - A gata do vizinho e a ibicuíba assada...

sses bravos homens do planalto, cuja vida áspera e difícil é um dos fatores do seu temperamento mal limado mas de um metal mui fino, como escrevia o capitão general d. Luís Antônio de Sousa ao rei de Portugal, não são, por isso mesmo, alheios às regras da cortesia.

Poucas mulheres, na vila, sabem ler - pois o alfabeto não entra no rol das prendas que se exigem do sexo fraco senão como fator ímpio e dissolvente. Mas, cada vez que os tutores comparecem em juízo para prestar "termo de curadoria", se obrigam a cuidar dos órfãos, ensinando os machos a ler, escrever e contar e as fêmeas a coser e lavrar a fazer renda e todos os mais misteres que as mulheres por suas mãos usam...

Daí, naturalmente, a existência de não poucos livros que arrolamos em outro capítulo, e de alguns documentos muito expressivos, principalmente algumas cartas particulares, de inestimável valor para o conhecimento da psicologia bandeirante.

Se a correspondência de Mme. de Sevigné é considerada, com justa razão, um extraordinário meio de informação da vida social do seu tempo, é claro que não pretendo chegar ao absurdo de colocar as quatro ou cinco cartas, que nos vieram do seiscentismo, nesse mesmo nível. Não se encontram nelas, em verdade, elementos de nenhuma espécie para qualquer reconstituição da vida social paulistana do século XVII, dos seus hábitos e costumes. Valem, contudo, e muito, como curiosos subsídios para o estudo da psicologia dos rudes homens de então, pois, ao contrário da correspondência oficial, fria e pragmatista, ressuma delas uma tão grande intimidade e uma tão indisfarçável sinceridade, que a sua simples leitura constitui um prazer, quando não encerra uma lição.


Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Os testamentos, na sua maioria escritos ou ditados pouco antes da morte, obedecendo a normas habituais e orientados pelos padres, não têm a sinceridade, a espontaneidade, a ingenuidade das cartas. O que neles se contém, o que ressalta de sua frieza angustiosa são, mais do que os anseios de um vivo, os pavores de um quase morto. A não ser o caso de Henrique da Costa, que aproveita o seu testamento para "desabafar'', descompondo uma porção de gente, os outros seguem a praxe secularmente estabelecida, limitando-se a expor, cada qual a seu modo, as suas últimas vontades.

As cartas, ao contrário, surpreendem o homem nos momentos mais imprevistos de sua vida e revelam-nos, em toda a sua nudez, o seu caráter e a sua educação.

É, por exemplo, o que se observa na carta que Antônio Rodrigues Moreira escreve de Pintagim [1] à sua mulher d. Filipa do Prado, curioso documento revelador do cavalheirismo dos homens do planalto e da cortesia com que se tratam, mesmo entre os mais íntimos parentes.

Desde as primeiras linhas dessa missiva - "minha esposa e Senhora" até as últimas - "Deste seu esposo que muito a ama" - observa-se o respeito com que se tratam, mesmo quando, nessas linhas tão íntimas, se fazem referências a terceiros:

"... o senhor nosso tio Pedro de Lima", "... seu irmão o senhor meu cunhado", "... ao senhor nosso pai Snr. Pedro do Prado", "... a senhora nossa mãe" [2].

Esse modo cortês e respeitoso de trato revela-se ainda no bilhete que Bartolomeu Bueno escreve ao seu sobrinho que, pelos modos, está em véspera de casar-se:

"Senhor sobrinho - Vae o noivo satisfeito e cá lhe fica a vossa mercê na minha mão os 480 que á falta de troco lhe não mando, tambem a folha quando nos virmos lhe darei na festa do padre Lourenço. Eu para servir a vossa mercê fico certo com minhas lembranças a vossa mercê a quem Deus guarde muitos anos. De vossa mercê tio e servo Bartolomeu Bueno" [3].

Não deixa, evidentemente, de ser grato a todos quantos ainda se aferram a certas normas de educação caídas em desuso, constatar que os tios do seiscentismo ainda concedem aos sobrinhos tratamento de vossa mercê e de senhor e se consideram seus servos, sem imaginarem que, poucos séculos depois, com o cigarrinho na boca, uma dose de whisky em punho, os filhos darão aos pais, com muita camaradagem, apenas um plebeíssimo você...

Bartolomeu, porém, não constitui exceção, num tempo em que a cortesia, devida às pessoas amigas, deve ser regra geral. A boa educação reponta, aqui e ali, das cartas que os paulistas trocam entre si e que revelam, na sua espontaneidade, uma curiosa e surpreendente psicologia. Embora os tempos sejam hostis e a luta pela vida chegue ao extremo de arremessá-los constantemente aos sertões, onde vão enfrentar todas as asperezas, não se despojam esses homens dos seus princípios de civilidade, nem dos seus deveres de cavalheirismo.

João Pimenta de Carvalho, por exemplo, escreve a um amigo e, depois de enviar à esposa deste muitos beija-mãos esperando boas novas, entra no assunto que é a cobrança de um pouco de trigo. A João Pimenta, porém, tais assuntos parecem deselegantes e é com certa timidez que lembra o empréstimo, acrescentando logo: como anda em uso a cobrança de semelhantes coisas, vossas mercês o não devem estranhar, mas só mandarem-me em que os sirva...

Não se pode, em verdade, ser mais galante e mais hábil. O destinatário por sua vez responde que, apesar de o ano ter sido trabalhoso e de perdição, os vinte alqueires de trigo lá se acham, e que os mandasse buscar os tinha certos.


"...que os juízes acudam às brigas e tomem as espadas ou armas de fogo..."
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Antônio Pompeu é outro que não se afasta das normas da boa educação. E é assim que ele inicia uma carta: "Estimo as boas novas da saúde de vossa mercê como sou obrigado que o mostrarei em ocasião de seu proveito fico ao serviço de vossa mercê..."

Essa delicadeza no trato, essa elegância de expressões, são sempre gratas a quem as recebe. Quem cobra uma dívida, usando termos políticos, pode estar certo de que não solicita em vão, pois o devedor não sabe fugir ao cumprimento de um dever, principalmente quando este lhe é lembrado de forma tão amável.

Como exemplo disso, e se não bastasse o que nos revela a carta de João Pimenta de Carvalho, que é um cobrador gentil, temos outro caso nas linhas que Baltasar da Silva dirige a seu compadre. Este escreve a Baltasar lembrando-lhe uma dívida. E Baltasar, muito confundido, responde ao compadre que não possui nem um real... contudo, quando a necessidade for muita, venderei um negrinho que tenho para pagar a vossa mercê, que quem deve é cativo, e os termos políticos que vossa mercê usa comigo é merecedor para que eu seja moleque de vossa mercê [4]...

Não nos espantemos com a declaração final. O moleque, aí, é apenas sinônimo de escravo, e escravo de segunda classe, simples negro de recados e carregador de embrulhos, sem serventia nenhuma para trabalho de maior vulto. Os termos políticos do cobrador produzem, como se vê, o maior efeito, pois Baltasar, na ânsia de agradar o compadre, chega a fazer destas coisas feias que ele, com admirável sinceridade, conta:

... a negra leva uma gata para vossa mercê que furtei para mandar a vossa mercê...

E, não contente de presentear o amigo com a bichana surrupiada alhures, acrescenta:

... também leva essas ibicuíbas para vossa mercê comer cada pela manhã uma assada pr'amor dos vômitos é bom.

Não é da minha competência negar ou confirmar as virtudes terapêuticas da ibicuíba ingerida em jejum, assada. O que porém me é lícito e justo assegurar, à simples leitura de tão expressivos trechos de correspondência, é que os paulistas do seiscentismo, impetuosos e de gênio mui alevantado, sabem, no seu trato social, ser amáveis e educados. E, quando se referem às damas, são de uma deliciosa galanteria, como nos revelam os miríficos beija-mãos do senhor João Pimenta de Carvalho à excelentíssima senhora dona Benta Dias... [5].


Arcabuzeiro
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] Pitanguí.


[2] Inv. e test. XXIV, 500.


[3] Inv. e test. XXIV, 95.


[4] Invent. e test. XXIV, 489.


[5] Segundo se lê na relação dos "Bens gravados pertencentes ao Collegio de S. Paulo", este dr. João Pimenta de Carvalho é, em 1697, "governador do bispado de São Paulo".


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