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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [10]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                             NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[10] Expulsão de indesejáveis

Lojistas e forasteiros - A ação vigilante da Câmara - Os que trabalham e os que atrapalham - O "caso" de Roiz Pacheco - Porteiro a muque - A farândula dos "travestis"

os arredores da vila, São Miguel, Guarulhos, N. S. do Ó, Pinheiros, Uapira, Itapecirica, Barueri e Parnaíba, estendem-se roças, sítios, chácaras, fazendas, onde se pastoreia o gado e se cultiva a terra. Ali se estendem loiros trigais "com seus moinhos de moer", canaviais, vinhedos, algodoais, pequenas culturas cerealíferas, rosais...

O trigo serve para o fabrico do pão de que o paulista se alimenta. A cultura deste cereal é intensa no frígido planalto, a ponto de, muitas vezes, o exportarem para o Rio. A cana dá ao paulista o açúcar. O vinhedo, vinho. O algodão, após o trabalho dos tecelões paulistas, fornece-lhe pano para as roupas. Os rosais, cultura poética, não os criam os paulistas para enlevo dos olhos, mas para o fabrico da "água de rosas", de largo consumo então.

Trabalha-se de sol a sol. Os paulistas e seus escravos, "gentio da terra e da Guiné", quando não lavram a terra, criam gado - "vacas fêmeas", como se diz ao tempo, suínos, carneiros, ovelhas e cavalos, desde o "cavalo macho", isto é, o reprodutor fidalgo, até o "sendeiro", pangaré felpudo da velha estirpe do Rocinante.

Alcântara Machado, escrevendo sobre o paulista de então, afirma:

"Dentro do seu domínio, tem o fazendeiro a carne, o pão, o vinho, os cereais que o alimentam; o couro, a lã, o algodão que o vestem; o azeite de amendoim e a cera que, à noite, lhe dão claridade; a madeira e a telha que o protegem das intempéries; os arcos que lhe servem de broquel. Nada lhe falta. Pode desafiar o mundo".

E assim é. O paulista do seiscentismo "basta-se a si próprio". Pode escrever, portanto, como realmente escreveu a História, a epopéia do Bandeirismo.


Bufete
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Na vila mora pouca gente. Tipo rural por excelência, o paulista prefere o roçado à urbe, aonde, contudo, acorre em dias de procissões ou quando precisa comerciar. Se, nos arredores do burgo humilde, o trabalho é intenso, dentro do núcleo urbano não há lugar para vadios.

A primeira loja, no século XVII, da vila de São Paulo, surge em 1603.

Abre-a, com autorização da Câmara, onde comparece para prestar juramento de "como bem e verdadeiramente servirá o seu ofício de vendedeira", a cigana Francisca Roiz. Não lhe permitem, talvez, ler a buena-dicha nas mãos alheias...

O certo é que abre a loja, animada de sacratíssimas intenções, pois promete contentar-se, nas suas vendas, com apenas dez por cento de lucro. O que indiscutivelmente boquiabrirá de pasmo os seus colegas de hoje que, mesmo não sendo ciganos, vivem a lamuriar-se quando não empalmam lucros líquidos de cem por cento...

Surgem, depois, muitas outras lojas - ou "lógeas", como se diz ao tempo, mais de acordo com a etimologia. À Câmara comparecem, para prestar juramento e fiança, alfaiates, merceeiros, barbeiros, sapateiros, ferreiros, correeiros, carpinteiros, tecelões... muitos, naturais da vila; outros forasteiros que vêm trabalhar com os paulistas. É verdade que nem sempre pautam a sua vida pela linha reta da honradez comercial; de vez em quando, elevam arbitrariamente os preços e furtam nos pesos e medidas. Mas o povo protesta, a Câmara intervém e, por algum tempo, tudo volta à normalidade.

Mas não é só junto aos que trabalham que se faz sentir a ação repressiva dos "homens bons da governança da terra". É principalmente contra os forasteiros que para aqui vêm sem profissão definida e - o que é pior - sem vontade de trabalhar. Numa terra em que todos labutam, a presença de malandros é sempre indesejável. Daí, a solução sumária e inapelável: olho da rua!


LEILÃO JUDICIAL - "...o porteiro do Conselho Gaspar Fernandes, dizendo em voz alta e inteligível: - Onze mil e quarenta réis me dão pelos chãos que foram do defunto Pero Fernandes, silos nesta vila, que partem com o quintal das casas da defunta Antônia Gonçalves, de uma banda, e da outra com os chãos da defunta Maria Gomes que estão defronte das janelas e outão das casas de Manuel Pais Linhares! Onze mil e quarenta réis me dão em dinheiro logo de contado por estes chãos, há quem mais lance? Venha-se a mim, receber-lhe-ei o lanço que logo se hão de arrematar! Dou-lhe uma, dou-lhe outra e outra mais pequenina em cima! Há quem mais lance? Porque logo se hão de arrematar, afronta faço, porque mais não acho, há quem mais lance? Arremato, afronta faço, arremato, afronta faço porque mais não acho!..." (Inv. e Test.)
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Na sessão da Câmara, em 27 de maio de 1633, levanta-se o procurador do Conselho para declarar que "andam nesta villa alguns forasteiros e vivem com grande escandalo e dão ocasião aos pregadores dos pulpitos pregarem e repreenderem o seu máu viver, pelo que requería os mandassem notificar que abandonassem a terra ou vivessem bem"...

Não se sabe ao certo em que consistia esse incômodo "mau viver" que atormentava os "homens bons" e escandalizava o senhor vigário e mais sacerdotes, a ponto de ser o homem alvejado por discursos na Câmara e sermões na igreja. Mas que os tais forasteiros eram indesejáveis, não há dúvida alguma. Como não há dúvida sobre um outro forasteiro complicado, de quem diz o procurador, noutra sessão da Câmara:

"... Geo de meri soares, ora estante nesta villa, é muito prejudicial á terra, por falar em honras alheias, do que póde resumir muitas desinquietações por ser homem desbocado..."

E, como além de "desbocado" é vadio, pede à Câmara que mande seus oficiais agarrarem o homenzinho e porem-no fora de portas, pois o povo não quer saber de "desinquietações".

Mas os que aparecem mais na vila, vindos de longe, são numerosos representantes da infinita, indestrutível legião dos vadios. São Paulo, terra de trabalho, combate-os sem descanso, chama-os à ordem, adverte-os, ameaça-os e, finalmente, expulsa-os. Uma das atas de 1623 reza que o procurador do Conselho requereu que "todo forasteiro que existir nesta villa, acuda a esta, Camara, aos nove dias deste presente mez de agosto, a darem razão de si, de sua vida e officio de que vivem, e o cabedal que cada um tem, de seu trato e manejo..." sem o que, despejariam a terra.

Ou então, em 1635:

"... que nesta villa andam vadios que não tem officio..."

Gente sem profissão definida, só os equipara aos maldizentes, aos beberrões, aos escandalosos... E, para todos, um só remédio, que a sabedoria popular condensará, depois, numa frase expressiva: "a porta da rua é serventia da casa". É para esse remédio heróico que apela o procurador da Câmara de 1641, requerendo "que se désse execução ao mandato que estava passado para serem notificados Mariana Lopes e seu marido Braz Dias para effeito de despejarem esta villa, visto as queixas que se lhe haviam feito por algumas mulheres e homens honrados e antigos desta villa".

Mais curioso é o caso de um indivíduo que atende pelo nome solene de Antão Roiz Pacheco. Aqui chega ele, um dia, vindo não se sabe de onde, e fica a mandriar, a beber, a falar da vida alheia. Exemplar completo e acabado daquilo a que os homens do Conselho dão o nome de "homem prejudicial", tratam estes de expulsá-lo da terra. Na sessão do dia 10 de setembro de 1663, levanta-se o procurador do Conselho e declara que, "a requerimento do povo", exige a expulsão do malandro. Os oficiais da Câmara, em resposta, afirmam que "a tudo acudirão".

Na sessão seguinte, porém, no dia 17, aparecem na Câmara, empunhando um vasto requerimento, trinta e cinco dos mais respeitáveis moradores da vila, para fazerem esta queixa: que Antão Roiz Pacheco fora expulso da vila, de acordo com o desejo dos moradores. Mas, ostensivamente, voltara! Voltara e por ali andava, a "embaraçar a terra", o que lhes parecia um abuso e um desafio. Se o homem "fora botado fora", e voltara, "que o botassem fora de novo".

O homenzinho, porém, não parece disposto a respirar outros ares. Gosta de São Paulo e, por nada deste mundo, quer sair. Tanto que, ao ter notícia de que há ordem terminante para a sua reexpulsão, esconde-se em casa de um amigo, de onde o vão arrancar os oficiais da Câmara, com grande desespero seu e do seu hospedeiro Clemente Alves.

Resultado do gesto acolhedor e humanitário do amigo Clemente: na sessão da Câmara do dia 1º de outubro, o procurador levanta-se para requerer "que se condenassem a clemente alves porcoanto fôra notificado não recolhesse a sua casa antão roiz pacheco por mandado deles ditos oficiais da camara e não quisera obedecer pelo que requeria ocondenasen".

Com os senhores do Conselho não se brinca. Ou o indivíduo trabalha como os demais ou vai espairecer noutra freguesia... quando não trabalha à força. Que o diga um refratário que atende pelo nome esquisito de Francisco Leão. Escolhido para servir como porteiro da Câmara, o Leão fica desassossegado e recusa-se esbravejando e afirmando que já havia exercido esse cargo e não lhe agrada continuar. Os rugidos do Leão não assustam os senhores vereadores porque, na sessão do dia 21 de janeiro de 1612, diante da recusa, "accordaram que frco. lião fosse preso e o obrigassem a servir o dito officio".

Que fazer? O Leão sossegou e foi servir...


"Uma capilha de cetim, um saio de melcochado preto e saia com passamanes" (Inv. e Test.)
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Um dia, porém, os senhores vereadores se assustam seriamente com a notícia de que do Reino vêm vinte e tantas pessoas que, segundo o procurador, parecem "facinorosas" - "padres fugidos dos seus mistéres, e molhéres em trajos de homens, e homens em trajos de molhéres, e leigos em trajos de frades"...

Uma complicação desnorteante, essa leva de turistas que mais parece um cordão carnavalesco. Que pretende fazer, no vilarejo austero, tão estranho e funambulesco séquito?

Não se sabe. Rezam as crônicas que é intento desses forasteiros rumar para Vila Rica, o burgo hispano-guarani encravado à ilharga da Capitania. A verdade, contudo, é que os esquisitos indivíduos aqui chegam e, com seus surpreendentes "travestis", aqui vão ficando.

E muito mais tempo ficariam se o procurador Luís Furtado, escandalizado com os frades em trajes de leigos, e leigos em trajes de frades, e homens em trajes de mulheres e mulheres em trajes de homens, não pedisse a imediata expulsão dos incríveis hóspedes que se davam a tão inexplicáveis extravagâncias...

Lá longe, na Corte e no Reino, vigoravam as "Ordenações". Aqui, na pudibunda, austera vila do planalto, surgiam as correições dos senhores Ouvidores, mas mandavam, de direito e de fato, os "homens bons" da Câmara. Se estes mandavam sair os vadios, os maldizentes, os escandalosos, não havia apelo nem agravo. Fazia-se, assim, discricionariamente, o saneamento moral da vila.

Porque, para o bem dos paulistas de então, a maravilha do "habeas-corpus" só apareceu muito tempo depois...


Candeeiro
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


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