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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [09]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                             NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[09] Asseio e salubridade

O Rio e o planalto de Piratininga - A limpeza das ruas - Exigências sobre exigências - Um pouco de urbanismo - O adro das igrejas e a sarjeta das ruas

o Brasil do século XVII, as cidades primam pela sujeira, mas na vila de São Paulo há, permanente e implacável, a preocupação do asseio. Enquanto no Rio os poderes públicos cruzam os braços, em desalento infinito, ante o repelente espetáculo da cidade que, na opinião de Luccok constitui "a mais imunda associação humana vivendo sob a curva dos céus", a vila de São Paulo não demonstra sujeira, nem ausência de higiene.

Os senhores vereadores, sempre atentos ao "bem comum", não permitem que as ruas se ericem de cardos, os terrenos se povoem de mato, os quintais se façam florestas. Os moradores da vila são obrigados, com desesperante insistência, a trazer as suas "testadas" sempre limpas, seus quintais sem focos de miasmas, as ruas sem águas empoçadas.

Não há como fugir ao rigor dos homens do Conselho que ali estão, vigilantes e exigentes, advertindo, intimando, multando os recalcitrantes. Quando estes, porventura, vão adiando a limpeza para depois, fazendo-se esquecidos, um dia chega em que não há mais escapatória possível: na véspera de procissão.

Nesse dia, o próprio morador se apressa em cumprir as intimações da Câmara e corre a limpar a rua - talvez isso seja levado à conta corrente de suas virtudes para um ingresso fácil no suspirado reino dos Céus...

Desde o início do século vem a Câmara exigindo asseio no burgo incipiente. Com o constante afluxo de forasteiros que, do litoral, demandam o planalto pelo dificílimo "caminho do mar", a vila cresce, povoa-se, adquire fisionomia diferente, vai-se fazendo importante. E os senhores vereadores, muito compenetrados de sua missão, não deixam os moradores em sossego. No dia 9 de abril de 1600, rezam as atas que "se ajuntaram em camara os ofissiais della e assentaram q. todos os q. tiverem chãos de longuo desta villa, os mãdem carpir e alimpar dentro em oito dias com pena de mil reis pa. captivos e conselho..."

Daí por diante, não cessam as exigências da Câmara e é de crer que não cessem os trabalhos da população, pois a maioria desta possui, em casa, enxadas e picaretas, não só para a labuta nos campos mas também para a limpeza da rua. Volta e meia, surgem as providências do Conselho:

"...requeria a elles officiaes mandasen limpar as ruas dos cardos e todas as testadas, com a penas que lhe parecesse...

... e lhes requeria mandassem limpar e carpir...

... e que se notifique a todos os moradores desta villa alimpem suas testadas e os chãos e mais partes onde houver cardos e espinhos os mandem cortar e alimpar para que cesse a raiz de tão má herva..."


Uma cantareira (suporte para o cântaro)
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

O prazo para a limpeza varia de oito dias a um mês, devido, talvez, à maior ou menor quantidade de mato a desbastar ou à maior ou menor complacência dos senhores do Conselho. Estes, via de regra, são inexoráveis. Concedem o prazo mas, findo este, não transigem. Às vezes são minuciosos e descem a detalhes, como a Câmara de abril de 1647 que manda cortar o mato e os cardos, explicando depois: que os queimem e botem fora...

E, diante dos desidiosos, não os perdoam porque as ameaças repontam sempre, numa terrível salvaguarda do princípio de autoridade: com pena de dois mil réis para os cativos; com pena de mil réis para os cativos e conselho; limparem os chãos sob pena de serem eles dados a outrem; sob pena de perderem suas datas de terra e serem dados de novo às pessoas que os pedirem para os beneficiarem e aproveitarem.

Às vezes, cabras, vacas e bois deixam as chácaras e vêm, placidamente, flanar pela vila. Não se contentam, porém, apenas com o passeio e, talvez estimulados pelo exercício feito, realizam, nos lugares mais impróprios para isso, certos atos fisiológicos que a higiene não admite. Numa das sessões da Câmara, em 1624, "pelos ofisiais foi acordado que o gado que anda nesta villa fas muito damno as igrejas pello que mandarão fosem notificados os donos delles a saber bartollomeu gonzalez tenha cuidado de alimpar o adro do collegio e o adro da santa misericordia e alleixo jorge tenha cuidado de alimpar o adro da matriz e o adro de nossa snra do carmo isto com pena de quinhentos rs..."

É claro que Aleixo Jorge e Bartolomeu Gonzalez não sorriem ante a perspectiva de desempenharem, todos os dias, tão desagradável tarefa. Providenciarão para que seus animais não reincidam no feio delito de sujar o adro das igrejas, dando, assim sossego à Câmara e asseio à cidade. Justiça fácil e exata que bem demonstra como são sensatos os "homens bons" do século XVII...

Como se vê, é indiscutível a preocupação dos senhores vereadores de trazerem a vila asseada, tanto que acodem, não só para livrá-la dos matagais, como também para que nas ruas não se multipliquem, nem sequer existam os focos de infecção. Daí, os contínuos requerimentos para que os moradores consertem as ruas, de modo a evitar estagnação de águas:

"... pelo procurador do conselho foi requerido mandase concertar e aterrar a rua que vae da mizericordia para santo antonio por fazer nella lagoas.

... ditos ofisiaes da camara mandaram aleixo jorge, pedro gonzalez, raphael de oliveira o moço, domingos machado, manuel joão, antonio de madureira, joão pedroso e jorge gonzalez entupam suas testadas dentro de oito dias, de modo que a agua não repreze e corra pela rua direita...

... que nenhuma pessôa faça cóvas nesta villa, pelo muito dano e prejuizo que disso resulta".

Diante de tamanha insistência, é de crer que a vila ande asseada, com o mínimo de mato e de águas empoçadas. Os ouvidores passam correições, os vereadores mandam afixar quartéis e os moradores vão trabalhando. Aos desidiosos, multa. Aos reincidentes, penas maiores. Aos recalcitrantes, confisco. Tudo, como se assegura, pelo "bem comum" e, ainda pelo "bem comum" a ordem para que os moradores dos pátios e praças limpem o adro e alpendre das igrejas tão lamentavelmente profanados, às vezes, pelo gado à solta...


Ferrolho de uma arca
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Mas, além da limpeza, os esforçados vereadores seiscentistas cuidam também de urbanismo - inexistente ainda como arte e ciência - mas em formação embrionária nas decisões dos senhores do Conselho. A vila não cresce arbitrariamente, como poderá supor-se, pois certas providências demonstram a preocupação de torná-la habitável e de dar-lhe, relativamente ao meio, um certo sentido estético.

Tal é, por exemplo, o caso de uns terrenos no largo da Matriz. O seu proprietário, Francisco João, deseja erguer uma casa ali, em 1642. Não o consentem, porém, os vereadores, e tratam logo de desapropriar o imóvel, ao mesmo tempo que declaram de utilidade pública todo o correr de casas dali por diante, a fim de que a praça se torne mais ampla.

"... o qual procurador requereu que se avaliassem uns chãos de Francisco João e se lhe pagassem para assim ficar a villa mais enobrecida e a praça della; e que ficasse por assento que qualquer daquellas casas da mesma carreira que cahir e se derrubar, não se levante mais".

E, no mês seguinte, na sessão do dia 6 de setembro, o procurador Simão Roiz Coelho requereu "que no outão da cazas de lionel furtado se não fizessem mais casas pera que a praça ficasse mais desafogada".

Providência de tal ordem, em pleno século XVII, nas terras semibárbaras da América e num vilarejo distante do litoral, perdido no planalto à boca do sertão áspero e bruto, revela um inesperado anseio de progresso no espírito desses homens rudes que escreveram, ao vivo, a história épica do bandeirismo.

Mas não é só. Para que as enxurradas das chuvas não lanhem o solo, enchendo-o de covas e valetas, exigem os vereadores que o meio-fio da ruas seja "ladrilhado", isto é, calçado a tijolos, para que as águas corram livremente; e se as chuvas, porventura, danificam esse leito, lá vem ordem para que o consertem:

"... requereu o procurador Braz Rodrigues de Arzão que suas mercês mandassem notificar aos moradores desta villa, que todas mandassem concertar e ladrilhar o damnificamento das enxurradas das aguas que correm pelas suas ruas, e para que nenhum tenha desculpa dizerem quenão lhe viera a noticia requereu mandassem fixar quarteis..."

A vila de São Paulo não é, pois, no século XVII, um pobre burgo abandonado e sujo. Observa-se, pelo menos, a preocupação de conservá-la asseada e saudável. Desbasta-se o mato dos quintais, saneiam-se os terrenos baldios, carpem-se as ruas e praças, limpam-se os adros das igrejas, escoam-se as águas empoçadas, empedram-se as sarjetas, proibe-se a abertura de covas... A vida áspera dos sertões não embrutece o bandeirante que, sofrendo horrores nas selvas, exige, dentro de sua vila, o máximo que pode exigir de asseio e salubridade.


"Capilha com sua volta de renda" (Inv. e Test.)
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


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