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CRÔNICA
Arte moderna
Santos, além de ser o mercado onde se resolve a vida
econômica do Estado, pela sua cultura e pelos seus artistas, impôs-se singularmente como um centro mental notável.
Os nossos pintores procuram a cidade de Braz Cubas, fazendo jus a duas espécies de
consagrações artística e financeira. As melhores companhias representam nos seus teatros; concertistas célebres exibem-se nos seus salões.
Promovem-se conferências e festas literárias nos seus clubes; organizam-se jogos florais e ligas. O trabalho mental, ao lado de uma efervescência
comercial admirável, agita a sua vida intensa e febril.
Talvez nem mesmo os próprios santistas observem esses fenômenos. Quem, porém, a certa
distância, lhe segue o tumulto da sua vida e progresso, constata, com simpatia e admiração, todo esse latejar de vitalidade.
Sob o ponto de vista artístico, após a exposição Mugnaino, excelente amostra do
progresso e do modernismo da arte nacional, a exposição Helios Seelinger constituiu outro acontecimento.
Hélios é, como disse alguém, um pintor ultra-modernista, inspirado nas correntes
estéticas mais ousadas e novas.
Prêmio da nossa escola de Belas Artes, fazendo seus estudos na Alemanha, deu, nos
grandes centros artísticos, plena expansão ao seu temperamento. Com uma profunda intuição dos exotismos decorativos da hodierna fase pictural,
nacionalizou a sua arte, e refletiu sua personalidade em quadros originais e profundos.
A nova arte, além dos retrocessos às escolas primitivas - egípcia e assíria -
estilizadas por um requintado impressionismo séc. XX, trouxe o subjetivismo como elemento essencial à pintura. Onde entre essa parte psíquica, entra
o símbolo, porquanto qualquer extrinsecação de estados anímicos é sempre uma caracterização simbólica de maneira de sentir subjetiva.
Alguns pintores e desenhistas levaram a tal extremo essa liberdade, que descambaram
para o futurismo ou para o gongorismo psíquico. Um crítico nosso, arguto e sincero, ao ver umas abstrusas realizações cromáticas de um desses
iniciados na arte de se não fazer compreender, afirmou que certo pintor debuxara um repolho, ao querer representar uma alma integrada no Nirvana...
Helios não cai nesses extremos. Apesar de ser simbolista, seus quadros guardam
honestamente as expressões das coisas concretas, que estão dentro da vida. Suas figuras, estilizadas, são sempre antropomórficas; as periferias das
suas formas são conscienciosamente anatômicas, não transformando pés em asas, nem torsos em rabos de delfins ou caldas de hipogrifos...
Até aí eu compreendo a arte. O diabolismo de Stattler, a fantasia plástica de
Dmetrovich ou Brecheret, o macabro simbolismo de Durero ou de Goya, nunca foram ao absurdo apocalíptico de desvirtuar a vida. Só o futurismo
delirante é que tirou à pintura a sua natural função, transformando as figuras em charadas, o colorido em "rebus" e o ambiente em enigmas...
Helios, apesar de moderníssimo em sua técnica, de bizarro nas suas concepções, de
ousado nas suas atitudes, continua a ser clássico, isto é, humano.
O que há, porém, de original na sua arte, é suas preocupações nacionalistas. Apesar de
ter vivido na Alemanha, não se desbrasileirou: continuou a ser o artista tropical, com uma visão nítida da nossa paisagem quente, com um amor
constante à ambiência física onde viveu e se educou. É ainda a bela Guanabara, que ele pinta; o pinturesco Jacarepaguá, a nossa Moema, a nossa
cabocla, a nossa queimada, a nossa alegria e tristeza, as nossas florestas e a nossa gente.
Em tudo isso misturou, para acrescentar um ressaibo de originalidade, algo do que de
teutônico e nebuloso vigiava no fundo do seu temperamento. Daí esse gosto de mistério, que nos faz cismar diante das suas telas. Esse resquício
atávico da velha teogonia germânica, com seus deuses sangrentos e seus grifos, acresce às realizações dos seus quadros uma certa religiosidade, que
se casa bem com a que vela no fundo indígena da nossa alma.
Nós, também, na selva, temos a mitologia pavorosa dos nossos trasgos, sentimento
místico que criou toda essa flora de monstros, entre os quais urra a mula-sem-cabeça, guincha o saci unípede, e trota, na noite negra, o
lobisomem...
Não nos choca, pois, na arte de Helios Seelinger, esse travo de mistério. É por isso
que sua exposição tem agradado e tem sido compreendida por todos.
Hélios é um belo artista. Santos saberá devidamente apreciá-lo. Sua exposição é, pois,
bem uma nota viva da nossa cultura e do nosso bom gosto. Com Mugnaino e Di Cavalcanti, Helios é, na geração nova, um dos pintores nacionais que está
na vanguarda dessa arte que não se contaminou de preciosismo doentio, mas que se libertou de moldes anacrônicos e cediços.
Menotti Del Picchia
Imagem: assinatura do cronista, em clichê, no final de sua crônica
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