A ciranda fatal das profissões
Aureo Emanuel Pasqualeto Figueiredo (*)
Todo cais é uma saudade de pedra
Fernando Pessoa
Uma pequena nota fúnebre, triste e humilde entre tantas
outras, passaria facilmente despercebida, já que não conheci a pessoa, mas um item chamou-me a atenção. Anunciava o falecimento de Severino de tal,
57 anos, calceteiro...
Não, essa profissão não tem nada a ver com costuras e calças, como alguém desavisado
pode supor. Até o software que uso para escrever, estranha e reclama, afinal trata-se de atividade artesanal, pesada e exaustiva, o que dá arrepios
à alta tecnologia.
Calceteiro, enfim, é o artífice que assenta os paralelepípedos nas ruas compondo-os em
panos regulares e simétricos. Ocupa-se, de forma singela, do chamado calçamento, técnica ancestral do que hoje é o estado da arte da ciência chamada
pavimentação.
Imagino tantos severinos, anônimos e humildes, morte e vida em sua faina de estirar
linhas, antecipando os segredos de caimentos das superfícies, deixando a cargo das linhas retesadas intuir as razões de declive, para que, mesmo
mínimos, venham a ser reconhecidos e obedecidos pelas águas pluviais, tangidas pela gravidade.
Pessoas simples, quase sempre com poucas ou nenhuma letra, agachados sobre os leitos
carroçáveis em construção ou reparo, fecundando-os com seu suor e habilidade.
Regularizar a base, distribuir o colchão de areia, tomar cada paralelepípedo nas mãos,
sentir seu peso e forma, girando-o no ar algumas vezes num movimento suave, quase um malabarismo, aceitá-lo ou rejeitá-lo, colocá-lo no chão batendo
com sua marreta até chegar à posição definitiva, onde ficará quem sabe por quantos anos, quiçá séculos.
Todo o cuidado para garantir a amarração das juntas, nessa quase alvenaria, depois
preencher os vãos com areia, compactar toda a superfície, dando-lhe travamento e condições de trabalho conjunto.
Nenhum charme, nenhum glamour há nisso? Trata-se apenas de um serviço
pesado, de resultado grosseiro? Claro que não! Basta lembrar os arcos concêntricos das ruas de Paris e Roma, verdadeiros mosaicos embelezando o
chão.
Ou então o familiar mosaico português alegrando nossas calçadas, com as pedrinhas
alternando-se em ondas em preto e branco à guisa de mar e areia surpreendentemente regulares. Também nos jardins da praia, conformando os peixes,
siris, polvos e tantas figuras que íamos descobrindo ao passear nas alamedas, tão queridos quanto o insólito casal de leões que toda criança
santista já montou.
Nas calçadas, como as pedras são menores, muitos desses operários adquirem um curioso
hábito de ficar permanentemente tamborilando seus martelos nas pequenas pedras, mantendo o ritmo, enquanto com a outra mão vão rapidamente
escolhendo as peças e encaixando-as nos moldes.
A existência do calceteiro está diretamente ligada à do canteiro. Esta outra categoria
de artesãos, defronte a uma pedra bruta, de grande porte, perscruta seus veios e com certeiros golpes ou com seus fogachos explosivos vão
fracionando-as e conformando-as de acordo com as necessidades.
Entre tantas aplicações, lousas que ajudaram muitos a aprender, vai à pedra, menino,
ou lápides que emprestam sua dignidade eterna ao repouso final, sit tibi terra levis, vale!
Porque canteiros? Porque com seu marrão fazem os cantos, os bizotes, afeiçoando os
blocos em arcos e poliedros. Vão daí as abóbadas de construções antigas, pontes, túneis, catedrais, monumentais esculturas a resistir ao tempo e
intempéries. São as chamadas obras de cantaria, como os primeiros trechos do cais do Porto de Santos.
Mas, se em nossas ruas, docas e pátios industriais ainda remanescem os calçamentos em
paralelepípedos, isso se deve, em parte, à limitada capacidade de suporte de nosso subsolo, exigindo freqüentes reparos para renivelamento.
Quando ao passar dos anos adquirem uma razoável consolidação, estabilizando-se os
recalques, são sepultados sob camadas de asfalto, afinal os veículos exigem pistas de superfície contínua, sem as juntas que causam trepidação. As
melhorias agradam a todos, principalmente aos eleitores.
A tecnologia avançou muito, aperfeiçoando os concretos asfálticos e de cimento para os
pavimentos, que são realizados com alto índice de mecanização, resultando em superfícies uniformes de alta qualidade.
Em contradição, aí reside a grande perda pelo avanço do conhecimento e da inovação.
Morrendo os severinos, calceteiros e canteiros, suas artes e segredos de pedra vão-se embora com eles. Com certeza, deixam saudades em muitos,
tantos aos que ficaram quanto aos que partiram.
(*)
Aureo Emanuel Pasqualeto Figueiredo, 54, é engenheiro
mecânico e civil, mestre em Engenharia pela Escola Politécnica da USP e diretor de Pós Graduação, Pesquisa e Extensão da Universidade Santa Cecília. |