O café e a Praça de Santos
Por Cyro Lacerda
Santos, Campinas e Ribeirão Preto são, de modo
incontestável, nomes que se acham fortemente ligados à evolução da cultura cafeeira no Estado bandeirante. E essa cultura representa, como por certo
não o ignoram brasileiros e estrangeiros, o alicerce da economia nacional, pois constituiu, desde seus primórdios, o fulcro da riqueza que
possibilitou o nosso progresso e o nosso desenvolvimento em todos os campos de atividade.
Desconhecer o papel desempenhado pelo café no cenário brasileiro não é apenas
demonstração de ignorância, mas também um alheamento que pode ser considerado anti-patriótico. Cremos, por isso, não necessitar de um estudo
profundo, a respeito da rubiácea e sua significação na economia nacional, o modesto artigo que nos propusemos inserir neste retalho de página.
Não pretendemos, por exemplo, entrar na apreciação dos elementos que tornaram Campinas
o pião do movimento irradiador das plantações cafeeiras, formando-se em seu recesso a heráldica da agricultura paulista.
Muito já se escreveu, visando demonstrar ter sido nessa privilegiada fração
territorial que o inteligente empirismo dos agricultores condensou as regras, determinadas pela experiência, para a escolha de terrenos propícios à
cultura cafeeira, com base na vestimenta vegetal nativa, chamada de padrões.
Quanto mais rica em padrões, tanto melhor a terra, variando a categoria de acordo com
a proeminência de alguns. Geralmente, e isto não é ignorado pelo lavrador paulista, terrenos bem vestidos, enxutos, permeáveis, humosos, situados
entre 450 e 750 metros acima do nível do mar, e não expostos ao vento Sul, são indicados para café.
Julgamos também não ser necessário alongar-me sobre
as causas que tornaram Ribeirão Preto a capital agrícola do Estado, desde que a Mogiana pôs a descoberto o maior bloco de terra roxa caroável que
forra a superfície de S. Paulo, convergindo para aquela urbe todo o movimento comercial da média e alta Mogiana. Foi esse florão que alicerçou os
créditos da terra roxa, considerada como inigualável para a produção do "ouro verde".
***
Não desejamos, e nem a índole deste artigo o
comporta, penetrar no âmago das condições de variada espécie que facultam o desenvolvimento da lavoura da rubiácea. Em Santos, tanto quanto no
interior paulista, não são absolutamente desconhecidas as peculiaridades que a caracterizam.
Assim, pois, vamos tratar do café, quando colhido, beneficiado e ensacado, é remetido para
esta cidade, onde os comissários e exportadores, após diversas operações laboriosas, o transformam em objeto precioso de comércio. E o produto,
negociável conforme seu tipo e qualidade, é transportado para os armazéns da faixa do cais, aguardando praça em navios que o conduzirão para os
quadrantes do globo, dando-nos em troca o maior número de divisas cambiais necessárias ao equilíbrio orçamentário e ao desenvolvimento de nossas
condições existenciais.
É notável, sob todos os pontos de vista, a contribuição da praça santista para o bom
funcionamento da complicada engrenagem que aciona o comércio cafeeiro. Mas, não obstante sua complexidade e dificuldades supervenientes, é um
mecanismo que se destaca pela harmonia e regularidade de seus movimentos.
Desde as grandes molas dessa maravilhosa engrenagem - e entre essas colocamos os
exportadores, comissários, corretores e auxiliares de escritório - até as mais modernas - nas quais enfileiramos os ensacadores, transportadores,
estivadores etc. - todos, conscientes da missão que desempenham em benefício da coletividade, se desdobram, se multiplicam no sentido de que o
trabalho seja executado com exatidão, porque sabem eles muito bem que essa virtude é apreciada por quantos se dedicam ao comércio.
Sabem ainda que da exatidão decorrem a confiança, o
conceito e a prosperidade dos negócios, que é a prosperidade de cada qual, justo prêmio ambicionado pelos que sabem cumprir o seu dever. Na praça
santista, o cumprimento do dever constitui uma tradição que, mau grado os modernos métodos de comerciar, pelos quais muitos dela se afastam por
egoísmo ou ambição, dia a dia se adorna de galas esplêndidas, na mais formosa afirmação de ética e probidade comerciais.
***
Outrora, quando o corrente modernista mal
balbuciava, porém esperava as oportunidades do futuro, um fio de barba era o mais seguro penhor que garantia uma transação. A palavra representava
também um empenho valioso, tanto assim que ficou nas páginas da história o emocionante episódio de Dom Egas Moniz, o qual, não podendo cumprir a
palavra empenhada ao rei de Castela, por não lhe permitirem as combinações políticas de seu soberano, o rei D. Afonso Henriques, saiu de Portugal,
com sua mulher e filhos, descalço e com o baraço ao pescoço, a fim de que o monarca castelhano mandasse aplicar-lhe, e aos seus, o castigo que
julgava merecer. O rei de Castela, porém, emocionado ante tal integridade de caráter, não só perdoou a Dom Egas Moniz, como ainda lhe brindou sua
amizade.
Este episódio, que resumimos, em que pese sua grandeza como exemplo edificante de pundonor e
probidade, guardadas as devidas proporções no tempo e no espaço, serve para estabelecer as primícias do juízo que se há formado sobre os processos
seguidos pelas grandes firmas do comércio cafeeiro da praça santista.
Esses processos são do mais estrito e rigoroso cumprimento da palavra empenhada,
embora isso muitas vezes represente nos negócios a termo o abalo de fortunas feitas em anos e anos de continuado labor. E como se trata de
transações feitas somente de boca, seria talvez admissível que a parte a sofrer o prejuízo se furtasse à responsabilidade do compromisso, uma vez
que este não foi documentado.
Mas, isto não se dá na praça de Santos, e o comissário ou exportador, sabendo embora
comprometida sua fortuna particular, prefere ficar sem vintém que deixar de cumprir a palavra dada. E não se diga que isso é fantasia, pois muitos
casos desses já se têm verificado, e atestar o grau de honradez dos que exercem sua atividade na praça santista, que é uma autêntica escola de
probidade, onde até os meninos de escritório, que saem à rua conduzindo grandes somas para pagamentos e depósitos em bancos, seguem as belas normas
de conduta irreprochável de seus chefes. |