Imagem: reprodução parcial da matéria original
O 50º aniversário d'A Tribuna
Um pouco de história da terra andradina mal contada por velho jornalista sem
memória
(Crônica de Euclides Andrade)
[...]
Em 1909, quando tive a honra de ingressar no quadro dos
seus redatores, a Tribuna era assim:
Uma vasta sala de paredes caiadas, encardidas, parcamente iluminada por alguns bicos
combustores de gás. Mesas de paginação, caixas e caixotins de tipos, um cheiro acre, a tinta, querosene e óleo. Era aí, nessa peça do vetusto
edifício de um só pavimento, que dedicados artistas gráficos compunham e paginavam as quatro minguadas páginas da rósea Tribuna, que Olímpio
Lima fundara e Nascimento Júnior acabava de adquirir em hasta pública.
Na oficina de composição, que abrigava também a veneranda máquina plana de impressão,
ronceiro amontoado de ferro velho gemebundo, fabricada por Alauzet, tipógrafos suarentos, de fisionomias cansadas, flagelados pelo calor, exerciam o
seu honrado mister de cozer o "pão do espírito" para alimento de milhares de criaturas esfomeadas de notícias. E essas criaturas não iam, naquela
época, além de três mil e quinhentas, que tantos eram os números da folha destinados à venda avulsa e aos assinantes.
Na sua mesa de trabalho, Francisco Escudero distribuía originais para a composição.
A corporação tipográfica da Tribuna contava cerca de quarenta compositores,
muitos dos quais encanecidos diante dos caixotins, respirando vapores de chumbo, antimônio e estanho e que vinham trabalhando na casa desde os
primeiros dias do jornal.
Rafael Gonzalez Torquemada, Hermógenes Reis, Pajuaba - são nomes de alguns desses
dedicados componentes da corporação gráfica da Tribuna, chefiada por essa boníssima criatura, que se chamou Francisco Escudero. E todos eles,
desde o mais graduado compositor ao mais humilde varredor das oficinas, eram meus amigos. Gente boa, gente simples e sincera nas suas amizades.
A redação era num compartimento paralelo à sala das oficinas. Tinha uma porta para
entrada e outra, no fundo, dando para um pequeno pátio interno. À direita de quem entrava, vindo da Rua General Câmara, uma comprida mesa com tampa
móvel (a "baia", consoante nós a chamávamos), servia de "bureau" ao secretário, ao gerente e a um redator em serviço. Os repórteres,
que eram apenas três (Bacalhau, Fábio Saddi e Borba) dispunham, para escreverem suas notícias de polícia e das repartições públicas, apenas
de uma pequena mesa e nela se revezavam.
A colheita de notícias da Alfândega e da
Mesa de Rendas e a transcrição dos manifestos, fornecidos pelas agências de vapores, incumbiam ao Alberto Muller, o
Bavária, e João Ernesto de Figueiredo, o Puva, como eu os chamava.
Na revisão, que era feita num quartinho dos fundos do prédio, trabalhavam redatores,
repórteres e até mesmo o diretor e o secretário do jornal. A Tribuna daqueles bons tempos de parcos recursos financeiros não dispunha de
verba para organizar um corpo de revisores.
O pessoal da redação era pau para toda obra. Breno Silveira fazia sensacionais
reportagens de polícia, desvendando misteriosos crimes e fazendo pesquisas e investigações por conta própria, proporcionando, enfim, ao grande
público, a leitura que mais parece lhe agradar - a referente a casos policiais.
Breno era uma espécie de "Deus ex-machina" dentro da Tribuna.
Secretariava o jornal, controlava a paginação, escrevia sueltos, redigia artigos e notícias e ainda dispunha de tempo para bater um papinho com os
colegas ou para atender aos numerosos "sapos" que vinham todas as noites palestrar com o pessoal da Tribuna ou ler os jornais de S.
Paulo.
Manoel Pompílio dos Santos, que Nascimento Júnior conservara na gerência depois de
adquirir o jornal de Olímpio Lima, era uma criatura esquisitona, de poucas falas, mas de rígidos costumes e de excelente coração. Pompílio,
solteirão irredutível, grande caráter, honestíssimo e muito trabalhador, gostava de uvas. Era doido por uvas. Mas, chupava-as às escondidas,
tirando-as sorrateiramente de dentro da mesa em que trabalhávamos todos, levantando para isso, sem fazer rumor, a respectiva tampa e, depois de
esgueirar um olhar pesquisador, para verificar que ninguém lhe via os movimentos, enfiava o bago de uva na boca, emoldurada por um basto bigode
aloirado e crespo e por lábios grossos e gulosos.
E nesse vai-vem de mão, tirando uvas de dentro da mesa e metendo-as na boca, o bom
Pompílio devorava, diariamente, um quilo daquela saborosa fruta.
Ao meio dia, infalivelmente ao meio dia, quando o sino da matriz tangia doze
badaladas, Manoel Pompílio dos Santos - bom cristão, excelente católico apostólico romano - recolhia-se ao gabinete sanitário da redação, no quintal
do prédio, e aí, em atitude devota, compungida, rogava ao Senhor que lhe perdoasse os pecadinhos de moço, sussurrando um Padre Nosso, três
Ave-Marias e um Creio em Deus Padre.
Essa descoberta fê-la certo dia o Bacalhau, que a divulgou na redação. E desde
então, cada dia, à hora referida acima, um de nós seguia cautelosamente o Manoel, a fim de vê-lo, olhos em alvo, mãos postas, elevar suas preces ao
Criador.
Quando entrei para a Tribuna, já aqui encontrei Argemiro Barbosa Acaiaba,
paulista do interior, e que trabalhara no Comércio de S. Paulo, ao tempo em que aquele brilhante matutino era dirigido pelo inolvidável
Joaquim Morse.
Argemiro viera para a Tribuna, a convite de Breno Silveira, para fazer uma
porção de coisas interessantes, inclusive reportagens e revisão. Eu fui admitido, pouco depois, e tinha várias incumbências: substituir Valentim de
Morais, que pedira exoneração, tomando a meu cargo a popular seção Rabugices de um Velho; redigir sueltos, várias e notas policiais, além de
cooperar com os demais colegas na revisão de provas.
Dos graves problemas municipais e estaduais incumbia-se Alberto Veiga (Silvio de
Lores), que os tratava com superior critério e invejável tino jornalístico.
As Rabugices de um Velho fizeram-me criar calos nos miolos. Nascimento Júnior
resolver manter aquela seção, criada por Olímpio Lima, tornando-a, porém, menos agressiva. E as Rabugices transformaram-se, adotando o velho
bordão latino: "ridendo castigat mores".
Durante três anos e meio, dia a dia, tive que esturricar os miolos, em busca de
assunto para escrever as Rabugices e, quando deixei a Tribuna, para fundar com Carvalhal Filho e João Salerno o vespertino A
Notícia, muitas vezes acordava, sobressaltado, por haver sonhado com a falta de um bom tema para a seção de Velho Tinoco, pseudônimo que
eu herdara de Olímpio Lima.
Fábio Saddi (o Turquinho) morreu jovem. Era um menino encantador e muito
serviçal. Bom, ingênuo, puro de costumes e de caráter. Começou na Tribuna como "sapo" de redação. Para cá vinha visitar amigos e
aqui se deixava ficar por longas horas. Breno Silveira resolveu um dia aproveitá-lo como repórter. E o saudoso Fábio foi sempre um ativo e
incansável auxiliar do Bacalhau.
Bacalhau era alcunha. O nome desse grande boêmio eu jamais cheguei a conhecer.
Era carioca, de boa família do Rio. Um dos seus cunhados era trunfo na redação do Jornal do Comércio, da metrópole brasileira. Desconfio
muito que Bacalhau fora deportado para Santos pelos parentes, cansados de lhe aturarem as estroinices.
Bacalhau era excelente copo. Gostava da "bitra". E quando a pressão
alcoólica lhe subia a três atmosferas no cérebro, os companheiros logo isso notavam, pois uma lágrima indiscreta despregava-se-lhe do canto do olho
esquerdo, rolava, silenciosa, e vinha plantar-se, cristalizada, transformada em gota solidificada, junto à asa do nariz, no mesmo lado.
Lágrima cristalizada junto ao nariz de Bacalhau era sinal infalível de "noroeste"
brabo na mioleira do rapaz, cuja infelicidade era ser devotado amigo da "água que passarinho não bebe", pois no restante era um ótimo
repórter, bom amigo e dedicado colega. Bacalhau morreu no Rio de Janeiro, atropelado por um automóvel, logo depois de haver saído de Santos.
Os primeiros tempos da Tribuna do Nascimento foram muito duros para o
Nascimento da Tribuna. Parece que estou a vê-lo, à noite, na redação, mãos atrás das costas, cabisbaixo, a passear de um para outro extremo
da sala. O seu cérebro devia estar refervendo, cozinhando planos, engendrando melhoramentos, grandes e radicais transformações, na folha que
adquirira de Olímpio Lima.
De quando em quando, parava, murmurava palavras sincopadas, que nós não podíamos
compreender:
- Não... Não pode ser... Ficará muito caro... Está difícil...
Enfiava o queixo dentro do pescoço, tapando o gogó, cruzava novamente os braços atrás
das costas e recomeçava a caminhar, medindo o pavimento ladrilhado da sala, a largas passadas, numa cisma misteriosa, sussurrando frases desconexas.
É que no interior daquela cabeça chata de nordestino se esboçava uma nova Tribuna,
um grande matutino, que fosse, não apenas o primeiro da cidade de Santos - pois já o era nessa época -, mas um dos maiores, mais prestigiosos e mais
queridos do Brasil.
Para execução do seu magnífico programa, teve Nascimento de curtir muitas penas; teve
de atravessar noites em claro, com o cérebro a trabalhar, fazendo contas, delineando planos. Tudo isso ele suportou com aquela fé inabalável de
homem do Ceará, onde as secas periódicas, os sofrimentos cruéis que o fenômeno acarreta para o sertanejo, lhe encouraçam a alma e lhe dão novas
forças para a luta tremenda contra o Destino.
O prédio onde está instalada, com todas as suas seções, A Tribuna. Especialmente
construído para servir de sede a um grande jornal, é magnífico em toda a extensão da palavra. Moderno e sólido, é um dos mais confortáveis e
elegantes com que conta a imprensa de todo o país, sendo um justo motivo de orgulho para a cidade de Santos. Foi edificado em 1932, empreendimento
dos mais arrojados para aquela época
Foto publicada com a matéria
|