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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
1927 - por Rudyard Kipling

"...atiram-se ao redor das praias de areia dura em carros envernizados..."

Na obra As Crônicas do Brasil, o escritor britânico Rudyard Kipling relata sua passagem por três portos brasileiros: Recife (então chamado de Pernambuco), Rio de Janeiro (então capital federal) e Santos. Uma resenha desse livro foi publicada pelo site PortoGente, na coluna Porto Literário de 24 de abril de 2007:


Trecho do cais santista, vendo-se também parte da Rua Tuiuti e do estuário, em 1928
Foto: jornal santista A Tribuna, em 26 de março de 1928 (cor acrescentada por Novo Milênio)

Texto publicado em 24 de Abril de 2007 - 02h17
Relatos de viagem
Três portos brasileiros nas crônicas de Rudyard Kipling

por Alessandro Atanes (*)

O texto de hoje registra a publicação de mais um documento literário que cita o Porto de Santos. São As Crônicas do Brasil, do escritor britânico de ascendência indiana Rudyard Kipling (1865-1936), autor de romances de aventura como Mowgli, o Menino-Lobo (O Livro da Selva) e considerado o "poeta do império" de Vossa Majestade. Devo a indicação da leitura ao escritor santista Flávio Viegas Amoreira.

A contracapa desta edição de 2006 informa que esta é a primeira tradução para o público brasileiro destes textos publicados originalmente no jornal Morning Post entre 29 de novembro e 20 de dezembro de 1927 e reunidas em livro após a morte de seu autor.

"Sofrendo de graves problemas de saúde" (expressão da contracapa), Kipling inicia em 1925 uma longa viagem de navio que renderia também os textos de Notas Americanas, outro relato de viagem. Em 1927, cruza a Linha do Equador e chega ao Brasil no meio do verão, em fevereiro, a uma semana do Carnaval.

Em primeiro lugar, um esclarecimento: embora estejamos acostumados a chamar de literatura o corpo de obras ficcionais e poéticas, o termo literário não se limita ao ficcional ou lírico; as obras de história também são literatura, como são também a "literatura médica" ou "literatura técnica" (já o valor literário é que são elas). As crônicas do Brasil, por sua vez, não são ficção, mas relatos de viagem produzidos para jornal. Ainda assim merecem o termo "documento literário", tanto pelo ofício do autor e o estilo pessoal dos textos como pelo próprio valor literário (em 1927, as regras jornalísticas eram outras, mas creio que até nos dias de hoje um relato de viagem redigido por um escritor não deveria segui-las).

Mas os limites se misturam na própria obra de Kipling. À frente das crônicas, um poema ilustra o tema de cada uma das sete delas. Os próprios títulos são bem mais literários que jornalísticos, como atestam os exemplos A Montanha que Guarda os Jardins do Rio, sobre a então capital federal, ou O Deus dos Relâmpagos: Como a Energia chegou a São Paulo, com a chegada em Santos e a descrição da Usina Henry Borden em Cubatão, e ainda O Romance da Construção da Estrada de Ferro: Uma Escalada de Seiscentos Metros, que descreve a descida da Serra do Mar desde São Paulo até Santos. O início do relato também colabora para o efeito literário do relato:

"Certa vez, em um sonho infantil, perambulei até o fim do mundo e encontrei coisas muito distintas de tudo o que aprendera; como apenas as crianças e os povos antigos querem que sejam. Agora o sonho se tornou realidade."

Mas vamos à viagem de Kipling: tudo começa no cais de Southampton, Inglaterra, onde o autor embarca em um navio sul-americano no qual as perguntas dos passageiros são respondidas em português ou espanhol, línguas também dos letreiros da embarcação. Estamos na primeira crônica, A Busca da Beleza: Viagem ao Exterior.

Nas escalas de Lisboa, Portugal, e Vigo, porto da Galícia, na Espanha, o barco se enche de imigrantes que "espalhavam-se no castelo de proa e viviam ao ar livre" e, cada vez mais, o português e o espanhol tornavam-se a "língua franca" da viagem. Após breves descrições sobre os passageiros, Kipling relata a chegada à primeira escala brasileira:

"Então, logo cedo em uma manhã, nosso navio parou e, por conseguinte todas as pequenas aragens e brisas que corriam acima e abaixo dele também cessaram; e o calor - o calor genuíno das terras que não têm mau tempo - golpeou gentilmente às costas. Era Pernambuco abrindo outro dia precioso, com barcos atracados bordo-a-bordo, onde homens vendiam mangas rosas e douradas, periquitos verdes, cada mancha e clarão de cores definidas como um trabalho esmaltado; tudo sustentado pelo concreto dos novos ancoradouros, tanques de óleos e armazéns."

O autor começa a crônica seguinte - A Montanha que Guarda os Jardins do Rio - comentando o intervalo de tempo entre a chegada à enseada e a atracação do navio:

"Em países sensatos não há afobação, nem mesmo para ir a hospitais ou delegacias. Assim, ainda que tivéssemos entrado na enseada do Rio no início da tarde, não foi antes do começo do anoitecer que ladeamos o embarcadouro, e toda a cidade e as enseadas ao seu redor reservaram aquele momento para acenderem-se em constelações de estrelas opacas de eletricidade sem controle."

Escoltado pelo Rio de Janeiro (sem qualquer menção à atualidade), Kipling sobe o morro de Santa Teresa, trafega pelas ruas da cidade, nota que os motoristas conduziam a uma velocidade "mais que suficiente", passa por Copacabana e, no dia seguinte, vai até o Jardim Botânico para encontrar uma vitória-régia em seu habitat.

Em O Deus dos Relâmpagos... o autor começa o texto aconselhando seus conterrâneos a viajar do Rio para São Paulo por mar, bastando dirigir-se à avenida principal e acenar para um navio a vapor, "pois lá estes são tão abundantes quanto os ônibus", comparação que, com a devida atenção ao exagero, pode oferecer uma pista do fluxo interno migratório que se avolumava naquele período. Mas para chegar a São Paulo vindo do mar, é preciso aportar em Santos:

"Alcançamos Santos, o porto de São Paulo, sob o olhar atrevido do céu da África Ocidental; um rio de estilo holandês vagueava e se contorcia em planícies muito verdes; desaguou no cais em que todos os vapores do mundo descarregavam mercadorias luxuosas, maquinários e trajes, ou embarcavam sacas de café que deslizavam por centenas de metros de esteiras rolantes, e decantavam a si mesmas, como porcos Garadene acéfalos, em compartimentos próprios. Pilhas de bananas desciam rio abaixo em barcaças e uniam-se ao esverdeado convés de carga dos navios cor de creme, com chaminés rubro-negras."

Como é comum na literatura que descreve o movimento do cais santista, o autor não tem como escapar da descrição do movimento de cargas ("todos os vapores do mundo"), tanto a importação de objetos de luxo quando a exportação do café, nossa principal matéria-prima naquele momento que antecedia o crash de 1929.
A menção aos porcos, explica uma nota de edição, refere-se à passagem bíblica em que Jesus Cristo livra um homem dos demônios de Garadene e os direciona a uma manada de porcos, e os animais correm para um penhasco e de lá se arremessam em um rio no qual se afogam. Na prosa de Kipling, a imagem revela a mecanização do trabalho de embarque.

Além do porto, o autor descreve aos seus leitores do Morning Post as ações contra a febre amarela tomadas nos anos anteriores e como a doença afetava as tripulações:

"Mais tarde, eles drenaram os pântanos, lutaram contra a febre, substituíram as mulas por vagonetes, e agora tudo está muito limpo. Mas a antiga cidade selvagem, com casas de cores vivas e a impressionante descida do café, ainda parece contar, a meia voz, sobre senzalas e enfermidades."

A descrição da cidade termina com uma comparação entre Santos e Brighton. A antiga vila de pescadores do litoral inglês, explica outra nota da edição, torna-se em meados do século XVIII um balneário para banhos de mar, sugestão de alguns médicos para a cura de determinadas enfermidades. O rei George III seguia esse tipo de prescrição médica e seu filho, George IV, chega a construir um Pavilhão Real na cidade, o que acaba atraindo para Brighton as classes mais "abastadas" da sociedade britânica, que acabam adotando o balneário para suas férias. Logo depois, com a chegada dos trilhos, o lugar se transformaria em popular ponto turístico, daí o paralelo com Santos:

"O lugar é agora utilizado como uma espécie de Brighton, as pessoas descem de São Paulo, a cinqüenta quilômetros de distância, para passarem o dia, e atiram-se ao redor das praias de areia dura em carros envernizados."

(*) Alessandro Atanes é jornalista, servidor público do município de Cubatão e mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo.

Rudyard Kipling e sua obra, na edição bílingüe lançada no Brasil em 2006
Imagens publicadas com a matéria

Na coluna seguinte, publicada no mesmo site PortoGente em 1º de maio de 2007, Alessandro continua abordando o tema e relacionando-o com outros textos literários:

Texto publicado em 01 de Maio de 2007 - 01h31
Relatos de viagem
A geografia literária do Império Britânico

por Alessandro Atanes (*)

Porto Literário registrou na semana passada as descrições que o escritor britânico de ascendência indiana Rudyard Kipling (1865-1936) fez sobre os portos e as cidades de Recife, Rio de Janeiro e Santos. Kipling, prêmio Nobel de 1907, escreveu romances de aventura dos quais um dos mais conhecidos é Mowgli, o Menino-Lobo (O Livro da Selva). As cenas destes portos estão As Crônicas do Brasil, lançamento do ano passado da Landmark, em edição bilíngüe.

Na ocasião, foi citado que Kipling era considerado o "poeta do império" britânico. A orelha da edição conta como seus contos "mostram os costumes indianos e o choque de cultura com o Império Britânico", cujo exemplo é O Homem que Queria ser Rei. E é sua faceta de poeta do império que vamos explorar no texto de hoje.

I

Antes vamos retomar um pesquisador que volta e meia passa pelo Porto Literário, o geógrafo Franco Moretti, autor de Atlas do romance europeu 1800-1900, em que trata dos conteúdos geográficos de clássicos do século XIX como o francês Honoré de Balzac e o inglês Charles Dickens. No primeiro capítulo - Terra natal - sabemos como os romances de Jane Austen (autora de Razão e sensibilidade, Orgulho e preconceito e Emma) se desenvolvem numa Inglaterra de "colinas, parques, casas de campo" como estamos acostumados a ver em suas versões cinematográficas.

As histórias de Austen formam os "romances de casamento" em que as protagonistas circulam por esse espaço bucólico em busca de casamento, descrito assim por Raymond Williams em O campo e a cidade, trecho transcrito no Atlas...:

"Em Jane Austen, os vizinhos não são as pessoas que moram mais perto; são pessoas que moram a uma distância um pouco maior e que, em termos de reconhecimento social, podem ser visitadas. O que ela vê em todo o campo é uma rede de casas e famílias de proprietários, e nos buracos dessa rede fechada situa-se a maioria das pessoas concretas, que simplesmente não são vistas. Estar face a face nesse mundo já implica pertencer a uma determinada classe. [...] o campo [...] só se torna real na medida em que está relacionado às casas que constituem nódulos verdadeiros."

Esse espaço literário, lembra Moretti, é mais inglês que britânico, isto é, estão fora dele a Irlanda, a Escócia, o norte industrial e os países que formam o império (Austrália, Índia, parte do Caribe). Mas o escritor italiano lembra o seguinte: o espaço das trocas matrimoniais, no qual as protagonistas circulam sozinhas com relativa segurança, só existe graças à exploração econômica das colônias. E é aí que voltamos a Kipling, o órfão indiano educado por pais adotivos e em um internato na Inglaterra, a sede do império.

Em Memórias de um Prêmio Nobel de Literatura ao chegar ao Rio de Janeiro, publicado no Estado de São Paulo em outubro de 2006, o professor Elias Thomé Saliba destaca a "nostalgia dos padrões morais vitorianos" nas crônicas brasileiras de Kipling, ainda que em 1927, data de sua viagem pelo Brasil, ele já não se apresentava tão crente na "obsessão civilizadora" devido à morte de seu filho na Primeira Guerra Mundial (1914-1917).

Saliba lembra que é de Kipling a expressão "o fardo do homem branco", referente à responsabilidade civilizatória ocidental, representada então pelo império de Vossa Majestade. Lembremos que o conhecimento científico da virada do século XIX para o XX é marcado pela hierarquização de raças e nações (cientistas inventaram até mecanismos para medir crânios para identificar desvios mentais e criminosos).

II

Nas crônicas de sua viagem pelo Brasil, podemos colher pistas da sobrevida dessa visão no autor - não a do mecanismo medidor do crânio, mas sim a do processo civilizatório que, lógico, fazem parte do mesmo contexto histórico, mas não podem ser confundidos - evitemos as generalizações.

São três as civilizações que surgem na leitura das crônicas. A do império britânico, com referências a cidades indianas, inglesas, australianas como referências para que seus leitores britânicos usem na comparação com as paisagens humanas e naturais do Brasil. A civilização britânica se apresenta até no próprio Brasil, onde engenheiros ingleses implantaram ferrovias (Kipling inclusive descreve o cotidiano de um dia na Usina Henry Borden, em Cubatão). Essa presença é bem clara no trecho em que mostra a chegada a Recife de um funcionário de um banco inglês:

"Fixando o olhar, mais adiante se desenrolava um filme bem conhecido - um barco litorâneo trazia um homem em um conjunto branco um tanto gasto. Ele subiu a bordo e se apresentou a outro, muito jovem, que vestia um branco londrino bastante novo, com os vincos ainda pendendo à frente das calças, e que virou para os companheiros e deu-lhes adeus. Era apenas o Banco de Pernambuco ganhando um novo funcionário. Quando os dois partiram - a figura mais jovem olhava para todos os lados ao mesmo tempo - e eu acabei de contar os barcos litorâneos, em diferentes portos, àquela hora, descontando uma pequena variação de tempo, que escoltavam o mesmo par de homens de branco - perguntei a um homem 'O que ele achará daqui?' 'Ele irá gostar muito, e falará sobre seu primeiro cargo em Pernambuco enquanto viver. Todos fazem isso. Eu sei pois eu fiz. Este é um lugarzinho muito agradável'. Essa pode ser uma boa notícia para alguma mãe distante, do outro lado do mar."

Mas a presença britânica não é capaz de encobrir a natureza "latina" do Brasil, evocada ainda no navio sul-americano cheio de imigrantes que trazia Kipling para o Rio de Janeiro:

"A vida para a qual seguiam, disseram-se, seria igual à que deixavam, com a diferença de que no Sul poderiam enriquecer segundo os próprios talentos. Eles não tinham dificuldades a superar; um italiano poderia aprender português instrumental em duas semanas. Clima, costumes e idioma eram partilhados por esses sulistas devido ao latim."

E, por fim, em nosso Brasil Kipling identifica na Bahia, onde seu navio não atraca, traços da antigüidade, do "antigo regime", onde o "antigo coração da terra bate mais forte".

Sobre os comentários de Kipling sobre a Usina Henry Borden, escrevi Autor de Mowgli, o Menino-Lobo descreveu o funcionamento da Usina Henry Borden um ano depois de sua inauguração, texto produzido como assessor de imprensa da Prefeitura de Cubatão. Leia o texto na íntegra.


Referência:
Rudyard Kipling. As Crônicas do Brasil. Edição Bilíngüe. Tradução de Luciana Salgado. São Paulo: Editora Landmark, 2006.

Franco Moretti. Atlas do romance europeu 1800-1900. Tradução de Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

(*) Alessandro Atanes é jornalista, servidor público do município de Cubatão e mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo.