Detalhe da publicação original
A Pátria brasileira
(Fragmento de um discurso)
[...]
Qual o problema? A Pátria livre. Qual a solução? Ouvide-a nos campos do Ipiranga:
Independência ou Morte.
Expira o século XI (N.E.: correto é XIX),
transmitindo aos tempos os germes da mais profunda das revoluções, substituição de crenças fictícias por concepções reais: queda de um sistema
provisório, e reinado do sistema definitivo. Que importa que a religião do Grande São Paulo tenha pela sabedoria de seus Padres alastrado o Ocidente
com o cultivo do oração? Que importa que o feudalismo, de purificação em purificação, haja instituído o proceder cavalheiresco e o culto da Mulher
pelo da Virgem?
Eram os fados: e o mundo viu, de um lado, o poder temporal, de outro o espiritual
ruírem, portanto. As comunas, senhoras da indústria, e de uma nova propriedade - a do trabalho - que não a territorial, libertam-se, germe da nova
ordem política; e o saber positivo que afugenta ficções, a Física, sempre acima da metafísica, penetra na Europa vinda do Oriente com os filhos de
Maomé - sintoma da nova fase espiritual.
O livre exame caminha veloz às almas sedentas de razão; a Reforma avança
destruidora, Galileu fere de morte a Teologia com a descoberta do duplo movimento da Terra, Gutenberg dá a cada inteligência uma voz alto clamante
com a imprensa, Franklin tira o raio da mão dos deuses e submete-o ao poder humano; Diderot, o grande enciclopedista, vota pela reorganização sem
Teologia nem realeza; têm-se constituído as ditaduras monárquicas, abafando as múltiplas coroas feudais, mas a seu turno as monarquias vêm ante si o
problema da República, a tempestade largo tempo elaborada desaba, e o mundo, no anseio esperançoso de uma nova ordem, pasma ante os clarões de 89!
1º de janeiro de 1789! Anseio da era moderna; o espírito que acendia o patriotismo da Imortal Convenção e abrasava o formidável Danton, corria o
planeta, chamando a postos as novas gerações; supremo anelo, a fraternidade universal!
E Portugal? Proa da nau ocidental, seguira a rota luminosa da evolução da Humanidade.
Constituído pela tendência inevitável dos grandes impérios ao desmembramento e pela vizinhança do Oceano, a palmo e palmo conquistado o território,
derramada a fé ardente que inspirara a lendária visão de Afonso, suas quinas sulcaram audazes
"Os mares nunca d'antes navegados,"
enfrentaram a figura horrenda do Adamastor, seguiram a rota do Oriente e deram ao
sultão europeu novos mundos, soberbas odaliscas; o gênio das descobertas inspirava-lhe os largos cometimentos, e os feitos valorosos do Gama, de
Albuquerque terrível e Magalhães pareceram eternizar-lhe o invejado poder.
Álvares Cabral engastara em sua coroa a mais bela pérola americana, tesouro virgem,
natureza selvagem e ubérrima, vastíssimos mares a cingirem-na com seu ruído eterno, céus de anil, valentes filhos fetichistas, ai deles, tão
barbaramenmte massacrados, riquezas escondidas, mundos a saírem do fiat (N.E.: latim: faça-se!)
do trabalho! E a metrópole dormira nos seus triunfos, esquecendo-se de que era humana, e que é dos humanos a liberdade!
Ventura para ti, porém, pátria americana, por uma tal Mãe; não doutro modo conservaras
as recordações da grande civilização católico-feudal, os antecedentes ibéricos, o sentir e o pensar afetuoso, os hábitos cavalheirescos e a pureza
das múltiplas instituições.
Não de outro modo te libertaras da exploração industrial da dominação protestante que
trar-te-ia a invasão holandesa, em boa hora repelida pelo denodo dos Vieira, Camarão e A. Dias, e não mantiveras venerante e orgânica a mentalidade,
aberta, portanto, aos apelos da Humanidade; e essa luta pela defesa comum, em que três raças congraçadas, branca, negra e amarela, almejavam
constituir-se uma Pátria, assinala com a vitória dos nacionais uma das mais gloriosas páginas de tua História.
Ventura, para ti, digo, porque pelo valor dos Nóbrega, dos Anchieta e dos Vieira,
defensores dos míseros selvagens e continuadores das crenças de nossos Pais, conservaste o influxo feminino nas relações domésticas, a união
conjugal monogâmica, sem as vis preocupações dotais, isenta a Mulher do lide alheio ao lar, e o divórcio exceção.
Sombra no quadro dos bons legados da Mãe Pátria, não obstante, vergas ao peso do
remoto crime do massacre de nossos pobres irmãos fetichistas americanos, expulsos pela crueza de bárbaros sem humanidade da taba amada que
falava-lhes das belicosas glórias, e dos sonhos de inocentes fetiches; e mais, inda hoje cora-te o pejo à face aos reclamos dos filhos africanos
escravizados, brasileiros que servem-te, não por amor mas pela força, a Ti, vítima e algoz do crime ocidental, problema duro, condenação viva,
terrível, da Humanidade, à voz de nosso terrível egoísmo!
Filha porém algemada por uma injusta subordinação, chegara-te a idade da reflexão, da
compreensão do próprio valor, e o jugo tornara-se-te insuportável. Por toda a parte eram-te incitamentos poderosos à emancipação; o vendaval
protestante libertara a Holanda, sublevara a Inglaterra e sacudira o jugo da metrópole de tua irmã americana do Setentrião
(N.E. região setentrional do planeta - refere-se aos Estados Unidos), arruinando para sempre o
regime colonial, e assinalando o irrevogável fracionamento de todos os domínios demasiado vastos.
Os choques do mundo, lá fora tão vibrantes pelas almas dos Washington, Franklin,
Jefferson e outros tantos, deveram ecoar nas de teus filhos, pois que tudo na Humanidade é solidário, é conspirador, é cúmplice; e a República
Ocidental, o conjunto das nações francesa, italiana, espanhola, inglesa e alemã, acompanhadas de seus anexos coloniais ou emancipados, ligam-se na
Preitoria após o grande Carlos por uma indissolúvel irmandade.
Esqueceras a pouco e pouco a Mãe, em madrasta tornada, a enviar-te férreos opressores;
e como não olvidaras "esse Portugal longínquo que jamais tinhas visto e cujas caravelas só apareciam para levar-te o melhor de tuas riquezas?
Carecias um filho que altissonante bradasse seu profundo amor ao solo natal, e que, se tanto fora mister, orvalhasse com seu sangue as sementes de
tua liberdade; cedo apareceu esse, não apenas aceso nos fogos do patriotismo, que também aureolado pela coroa do martírio".
[...]
Silva Jardim
|