Relíquias de índios: 1) cabeça mumificada de índio Mandurucu; 2) Membi, flauta de osso, dos
índios; 3) Trombeta usada pelos índios da Amazônia; 4) Maracá, instrumento musical, feito com um cuité; 5) Machado indígena, com lâmina de ferro
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Arqueologia e Etnografia
Por E. Roquette Pinto
do Museu Nacional do Rio de Janeiro
Arqueologia
o Brasil, a Arqueologia
pré-histórica é antes um capítulo de pura etnografia: nem a pré-história consegue reconhecer aqui as épocas clássicas descritas na Europa; as idades
da Pedra, do Bronze e do Ferro.
Andaria muito mal quem pretendesse aplicar às nossas regiões todas as leis que o exame das jazidas
do Velho Mundo foram trazendo à luz sucessivamente.
Lá, o homem parece ter assistido a umas tantas modificações geológicas: é quase certo que ele já
vivia na Europa desde os primórdios do "Quaternário", senão mesmo, desde os tempos terciários.
Lá, desde esses tempos, de tão alta antiguidade, múltiplos movimentos migratórios se foram
operando e a civilização pré-histórica de todo o continente foi se modificando, destarte, cada vez mais, à medida que as invasões se verificavam.
Assim, quando a civilização greco-romana se firmou na Europa, os primitivos habitantes ficaram como gente estranha dentro de seu próprio habitat,
porque diferiam consideravelmente dos novos senhores influentes da terra.
No Brasil, o homem não parece ser tão antigo habitador. Apesar dos que se esforçam por encontrar
provas da existência dele durante o "Terciário" na América do Sul; embora a existência provada de Primatas, nesse período, mostre não ser impossível
aí a vida de hominídios, o autoctonismo do Homem Americano está longe de uma demonstração.
Não se pode todavia contestar grande antiguidade às populações pré-históricas da Sul América,
mormente àquelas que haviam alcançado já tão elevada cultura, como a que os espanhóis criminosamente destruíram na porção ocidental do continente.
É fora de dúvida que as nossas populações pré-históricas foram surpreendidas em plena atividade no
começo do século XVI, pelos representantes da civilização européia ou ocidental, para me servir da expressão de Augusto Comte. Convém notar,
todavia, que, aceitando o critério com o qual se separam, na Europa, os povos históricos dos pré-históricos, e dando para caracterizar os segundos a
ausência de tradições e de monumentos documentários, é fora de dúvida que, ao lado dos verdadeiros pré-históricos da parte oriental das duas
Américas, viviam na América Central e nos planaltos andinos da Sul América povos indiscutivelmente merecedores dum lugar entre a gente civilizada
daquele século.
Contudo, naquilo que nos diz respeito, não há razões para atribuir a outros homens, que não os
índios, as jazidas arqueológicas do território brasileiro. Nem é preciso aceitar a opinião de von Martius, segundo a qual os selvagens do Brasil
representam os restos duma raça outrora muito adiantada em cultura, a qual se foi degradando aos poucos.
Há jazidas arqueológicas, no Brasil, de alto valor. Nestas, os objetos cerâmicos são documentos de
apurado gosto artístico e, à primeira vista, parecem provar uma civilização muito mais adiantada que a vulgarmente observada entre os nossos índios.
Mas, tudo quanto sabemos dos fabricantes desta cerâmica não autoriza a opinião que os reputa gente diversa. Tanto mais que há no Brasil certos
grupos de índios muito mais apurados em cultura do que outros.
As principais jazidas paleontológicas do Brasil são encontradas em cemitérios, cavernas, sambaquis
e aterros sepulcrais. Os cemitérios de índios existem espalhados por todo o país.
Nem todas as tribos enterravam os seus mortos do mesmo modo. Umas usavam inumar o cadáver dentro
da própria cabana, envolto na sua rede de dormir. A cova era tapada com galhos e folhagens, para impedir o contato da terra, e o corpo ficava,
assim, folgadamente no seu túmulo.
Outras tribos enterravam os seus defuntos dentro de grandes potes de barro (camutins), onde
eles eram colocados em posição mui característica, com os membros inferiores flexionados sobre o abdômen e os superiores também em flexão sobre o
peito, assim como a cabeça.
Algumas tribos do grupo Aruak incineravam previamente o coro, e depois enterravam os ossos dentro
de vasos especiais que mais além mencionaremos. Entre os Tupis da costa era costume lavar previamente o cadáver e depois enfeitá-lo de fios de
algodão ou de penas. As armas e utensílios do extinto seguiam-no na tumba. No Museu Nacional do Rio de Janeiro existem crânios com sinais desses
enfeites de penas, encontrados em cemitérios índios.
Costume também muito usado era o de se entregar o corpo dos mortos à voracidade de certos peixes
que vivem em rios do Brasil. Ainda hoje algumas tribos empregam esse processo para a limpeza dos ossos dos seus mortos. Para tal fim, há uma cesta
especial, onde os animais podem entrar e sair livremente, ficando as peças do esqueleto retidas, apesar da correnteza.
Notável entre todos é o costume observado pelos Tupinambás, de enterrar o chefe da família dentro
da própria cabana, como acima ficou dito.
Muito mais importantes são para este resumo os dados relativos às cavernas, algumas das quais têm
fornecido interessante material arqueológico. As mais notáveis, sob este ponto de vista, são as do vale do Rio das Velhas, no estado de Minas
Gerais, e as grutas de Maracá, no estado do Pará.
As cavernas de Minas Gerais tornaram-se notáveis depois das explorações do dr. Peter Lund, sábio
dinamarquês que, desde 1833, começou a dedicar-se a pesquisas paleontológicas nessa parte do Brasil. São chamadas "Cavernas de Lagoa Santa",
denominação tirada do lugar em que se acham as principais. Forneceram essas cavernas material bastante para que, verdadeiramente, sobre ele,
fundasse Lund a paleontologia brasileira.
Entre as espécies mais notáveis encontradas por esse investigador, notam-se alguns eqüídeos,
diferentes das espécies euro-asiáticas; um grande tatu (Glyptodon); uma grande preguiça (Megatherium); um símio (Propithecus);
uma capivara (Hydrocoerus), todos animais extintos.
A descoberta de ossos humanos nas referidas cavernas deu relevo especial aos achados de Lund.
Acreditava este poder afirmar a coexistência do homem com esses animais extintos; e julgava, assim, provar a alta antiguidade da espécie humana na
América. Pensava que, na mesma ocasião em que a Europa era habitada pelas populações pré-históricas, o Brasil, por sua vez, era já povoado pelo
homem das cavernas de Lagoa Santa.
É, porém, muito provável que o enchimento dessas cavernas se houvesse feito em sucessivos
períodos; e, sem negar a grande antiguidade dos restos humanos ali achados, devemos dizer que, fazer dos homens da Lagoa Santa uma raça à parte, a
Raça de Lagoa Santa, como lhe chamou de Quatrefages, é ir mais longe do que podem autorizar os fatos até agora recolhidos.
Quando muito, se pode admitir que foram os índios do grupo Gê-Botocudo os povoadores dessas
grutas, pois que, isso é real, eles parecem os mais atrasados habitantes do país. Entretanto, essa raça foi determinada, é preciso não o esquecer,
exclusivamente por dados craniométricos, e estes mesmos foram obtidos sobre reduzido material. Hoje, em Antropologia, é mister proceder com mais
prudência; a craniometria, por si só, não vale já aquilo que se acreditava.
Nas cavernas de Lagoa Santa, além de ossos, encontraram-se pinturas, machados de pedra etc. Em
outra, da mesma região, visitada ultimamente pelo sr. U. Lanari, acham-se também fragmentos de madeira, bastões toscamente trabalhados e colocados a
grande altura. D'outras grutas do Brasil se têm retirado restos humanos, principalmente ossos. Citam-se, por exemplo, a Gruta das Múmias, no Sul de
Minas Gerais, explorada pelo prof. Hartt; uma caverna na Serra de Baturité, estado do Ceará, a qual forneceu ao barão de Capanema uma notável calota
craniana, hoje guardada no Museu Nacional, a qual apresenta grande semelhança com a celebrada calota do Neanderthal.
Algumas cavernas do Alto Rio Uruguai também forneceram crânios humanos. Ao lado destas, podemos
mencionar as grutas do Iporanga, perto de Iguape, estado de São Paulo, exploradas há pouco pelo sr. R. Krone, e algumas cavernas de Santa Catarina,
visitadas pelo dr. Bleyer, acerca das quais faltam ainda informações detalhadas.
Infelizmente, a idade geológica de algumas destas jazidas não tem ficado bem comprovada; aliás,
todas elas se devem filiar ao Quaternário; talvez algumas, como as de Lagoa Santa, possam ser incluídas entre as jazidas pleistocênicas. As cavernas
de Maracá exploradas por Ferreira Penna, a quem o Museu Nacional do Rio de Janeiro deve muitas de suas mais preciosas peças, são deveras notáveis
pelo material cerâmico nelas recolhido.
Cerâmica de Marajó (Museu Nacional):
1) Urna funerária, numa caverna de
Maracá (Nº. 5.445); 2) Tangas de barro (Nº. 5.442 e 5.443); 3) Vaso ornamental (Nº 5.446); 4) Amostra de cerâmica - uma urna funerária (Nº 5.444);
5) Um fetiche de barro (Nº. 5.438); 6) Prato ornamental (Nº 5.447)
Foto-montagem publicada com o texto, página 54
Depois das jazidas espeleológicas, os sambaquis devem merecer algumas referências, visto como
muitos deles têm o valor de verdadeiros Kjoekkenmoddings. A mais interessante verificação que a arqueologia tem feito foi demonstrar a lei
geral, segundo a qual os homens atravessam estadios fatais durante o seu processo de civilização.
Sujeito às mesmas solicitações do meio, sempre o homem, em qualquer ponto do nosso planeta, agiu
de maneira idêntica. Pois não é curioso que em toda a Terra, as mais distantes populações houvessem feito uso de machados de pedra, perfeitamente
semelhantes: Não foram o arco e a flecha armas generalizadas: É esse um incontestável argumento psico-fisiológico a favor da unidade específica das
populações da Terra, apesar das diferenças anatômicas.
Os cérebros de todos os homens normais têm funções básicas idênticas, embora cada um possua
feições próprias, que são as verdadeiras características individuais ou étnicas.
Muitos sambaquis são Kjoekkenmoddings ou Kitehenmiddens do Brasil. Verdadeiros
montes de conchas (shell-mounds), eles se espalham pela porção meridional da costa do país e alguns se acham em margens de certos rios. O
material conquiliológico neles amontoado é tão abundante que, em diferentes lugares, e desde os primeiros tempos da conquista portuguesa, foram os
sambaquis aproveitados como fornecedores de cal, retirada dessas conchas.
Como jazidas de restos humanos, passaram eles quase despercebidos dos meticulosos cronistas
portugueses dos primeiros tempos. Se Fernão Cardim atribui a autoria dos sambaquis aos índios, Gabriel Soares, cuja certeza de informações encanta
quem o lê, conhecendo as coisas a que ele se refere, apenas os menciona, se é que a eles se refere, segundo penso, quando diz, no seu
Tratado Descriptivo do Brazil em 1587: "E há tantas ostras na Bahia e em outras partes,
que se carregam barcos delas muito grandes, para fazerem cal das cascas, de que se faz muita e muito boa para as obras, a qual é muito alva...".
Devemos a Carlos Rath e ao professor Hartt os primeiros estudos sobre essas jazidas pré-históricas
do território brasileiro. Ferreira Penna, Wiener, Capanema, Derby, Ladislau Netto, Loefgren, von Ihering, von Koseritz, von den Steinen, Ehrenreich,
Koenigswald, Schupp, Krone e outros continuaram a sua exploração.
A palavra sambaqui parece derivar de dois vocábulos tupis: Tambá e qui;
significa literalmente "monte de conchas". Corresponde bem ao shell-mound dos americanos. Há sambaquis nos quais se não acha outra coisa
senão conchas.
É impossível admitir que a atividade do homem aí se tenha exercido, de tal modo eles se apresentam
despidos de restos humanos. Tive eu mesmo ocasião de verificar muito bem esse fato, explorando os da costa do Rio Grande do Sul, em 1906. Isso
complica as conclusões a tirar-se do exame global dessas jazidas.
Carlos Wiener, nos Archivos do Museu Nacional, já fizera notar que nem todos os sambaquis
devem ser considerados verdadeiros Kjoekkenmoddings. Penso também desse modo. E julgo mesmo que muitos desses montes são verdadeiras dunas de
conchas, se me é permitido assim dizer, promovidas pelo vento. Acredito que sejam sambaquis eólicos, formados sobre bancos crustáceos. Só assim
posso explicar a coexistência, num mesmo monte, de conchas fósseis e recentes, e o ajuntamento de espécies marinhas com outras terrestres,
perfeitamente modernas.
Ao lado de Venus e Voluta fossilizadas pude encontrar Bulimus e
Ampullarias, umas muito recentes, outras também fossilizadas e em quantidade apreciável. Se as conchas marinhas, aliás sempre muito mais
numerosas, as fluviais e as terrestres, aqui mencionadas, tivessem todas os mesmos caracteres físicos denunciadores da mesma antiguidade; se com
elas fossem achados quaisquer restos humanos, detritos alimentares, ossos, cerâmica, pedras trabalhadas etc., então seria justo atribuir a tais
sambaquis uma origem artificial. Mas são esses, justamente, os que nenhuma prova fornecem de influência humana sobre eles exercida.
Os sambaquis artificiais têm fornecido ossos humanos, quase todos partidos, friáveis, e às vezes
esqueletos inteiros, que, parece, aí foram propositalmente enterrados; muitos artefatos líticos: pilões, machados, pedras de amolar, pontos de
flechas, perfuradores. Como restos alimentares, eu mesmo achei ossos de peixes, de baleia, de mamíferos: onças, veados, roedores etc. Se, em grande
parte destes sambaquis, não se tem encontrado cerâmica, ou só se tem obtido cerâmica mal feita e mal cozida, em outros, tais como os do estado do
Rio Grande do Sul, foram achados vasos de barro muito bem feitos e fragmentos de cerâmica muito originalmente ornamentada.
O Museu Nacional possui fragmentos destes, que retirei em escavações praticadas nos sambaquis das
Cabras e do Arroio do Sal, os primeiros próximos a Tramandaí e os últimos situados na vizinhança da grande lagoa da Itapeva, no Rio Grande do Sul. A
ornamentação d'alguns desses fragmentos é superior à que se encontra, como restos dos povos do grupo Tupi, na costa do Brasil; é sabido que estes
índios, embora dos mais adiantados, eram, todavia, ceramistas medíocres.
De todas as jazidas arqueológicas apontadas acima, incontestavelmente as mais importantes são as
da Amazônia, que possuem restos artísticos de alto valor e merecem, por isso, uma referência especial. Entre essas jazidas, encontram-se mounds
que, na porção oriental da América do Sul, são os únicos conhecidos; e a forma d'alguns, a sua situação, o material que forneceram, lhes deram
acentuado destaque.
Para que se ajuíze do seu valor, basta resumir aqui os achados de Ferreira Pena, o grande exumador
de tantas preciosidades. A Ilha de Marajó, onde se acha o principal deles, é formada por uma dilatada planície; não tem colinas; os seus rios são
alimentados pela chuva. Mesmo assim, em duas regiões de aspectos diversos se divide a ilha. A sua porção que se estende para o Oriente e para o
Norte é quase toda livre de vegetação alta, e forma grandes pastagens; a parte restante, que procura o Sul e o Ocidente, é coberta de matas.
No meio da região dos campos, encontra-se o lago Arari, com 12 milhas de comprimento N/S e 2 a 3
de largura E/O. Conforme a estação, a sua profundidade varia de 1 a 6 metros. Tem esse lago, verdadeiramente, uma ilha só, a Ilha da Mãe Joaquina,
situada ao Norte. Mas o mound de que se trata é chamado Ilha do Pacoval. Acha-se próximo à margem oriental do lago. O seu aspecto moderno é o
duma colina baixa; nada mais é que um pequeno monte feito de vasos de barro e outros objetos dessa natureza, separados por diferentes camadas de
terra. Como se vê, é uma verdadeira ilha artificial, um verdadeiro aterro.
Ferreira Penna forneceu as seguintes indicações sobre as suas dimensões: altura sobre o nível do
lago (nas águas baixas), 3,50 m; largura máxima, 35 metros; comprimento, 100 metros. Ao nível da sua parte média, interrompe-se a colina. Parece ela
ter sido construída assim mesmo, em duas porções de diferentes tamanhos, quase separadas. A porção situada do lado do Sul já estava muito destruída,
quando Ferreira Penna lá esteve.
Muito antes, porém, das frutuosas escavações desse naturalista, havia a jazida do Pacoval recebido
a visita de Steere. Foi precisamente este naturalista norte-americano quem descobriu o fato mais interessante que ela apresenta, que é a seriação
das suas camadas. Verificou Steere que, no Pacoval, havia três depósitos superpostos distintamente, cada qual formado por material diferente e,
ainda mais, notou que os artefatos mais apreciáveis, pelo seu valor artístico, eram os da camada inferior.
Ferreira Penna confirmou essas descobertas, e retirou da camada superior urnas grandes, de barro
tosco, contendo vasos menores, terra e cacos; eram ornamentadas por alguns traços brancos angulares. Em uma delas, foi encontrado o primeiro
cachimbo de barro fornecido pela Ilha do Pacoval. As camadas inferiores eram formadas por pequenos fragmentos de louça compactamente reunidos; daí
foram retirados fragmentos de belíssima ornamentação e um objeto que, por si só, foi bastante para tornar célebre a jazida do lago Arari: a "tanga
de barro". Verdadeiros aventais de pudicícia, de que o Museu Nacional possui muitos exemplares, são obras de arte sempre bem modeladas, quando não
também decoradas com lindos desenhos.
Ossos humanos foram achados em algumas urnas desse aterro sepulcral. Alguns tinham ainda
articulações recíprocas conservadas, como por exemplo o esqueleto que O. Derby encontrou em 1871. Da presença de esqueletos em urnas relativamente
pequenas, incapazes de conter o cadáver dum homem, concluiu Derby que esses ossos haviam sido previamente inumados; só depois de perder os tecidos
moles, teriam sido eles colocados nos vasos e, então, novamente enterrados, desta vez, na ilha artificial. Aliás, a posição recíproca das partes do
esqueleto não permitia acreditar na introdução dum corpo inteiro dentro de tais sarcófagos.
Quem melhor estudou a curiosa ornamentação da cerâmica de Marajó foi o prof. Hartt, um dos mais
notáveis investigadores que tem tido o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Notou, desde 1870, nos primeiros fragmentos recebidos de Marajó, a
existência de desenhos clássicos tais como gregas e espirais. Verificou depois que a figura do homem e dos animais é mais vezes representada em
relevo que pintada sobre a superfície da cerâmica do Pacoval. É, aliás, natural que a escultura houvesse nascido primeiro que a pintura, também
entre os nossos índios. o reino vegetal não inspirou tais ceramistas, que nem modelaram, nem desenharam folhas, flores ou frutos.
São objetos também mui curiosos as urnas antropomorfas (face-urns, de Harttt;
Gesichtsurnen, dos alemães), retiradas tanto de Marajó como das cavernas de Maracá, já citadas acima. Diferem, porém, muito umas das outras.
Enquanto que as de Marajó são feitas de material muito bem manuseado e ricamente decoradas, com verdadeiro luxo de linhas e desenhos, as de Maracá
se caracterizam pela forma esquisita e híbrida de homem e animal, pelo material grosseiro e pela ausência de qualquer figura em sua superfície.
É sabido que também estas urnas serviam para aguardar ossos. No fundo, era colocado o pélvis; os
ossos longos, longitudinalmente, aos lados; o crânio, em cima. As urnas tubulares de Maracá têm os sinais dos sexos bem marcados, para significar a
qual deles pertencia o indivíduo, cujos despojos recolhiam.
Na cerâmica de Marajó, há a notar, ainda, as figurinhas de barro, verdadeiros ídolos, segundo se
acredita. Quase todas são ocas e foram fabricadas pelo processo, já descrito, do cilindro de barro. Apesar de mui diferentes, quanto aos detalhes de
sua forma, esses ídolos têm um aspecto geral característico. Em sua maioria, representam figuras humanas assentadas, com os membros inferiores em
forte abdução, os superiores arqueados, e as mãos pousadas nas ilhargas. Alguns são distintamente femininos e portadores das citadas tangas de barro
ou triângulos protetores (Weiherdreieke dos autores alemães).
Em geral, o nariz dessas estatuetas é bem saliente; e, sobre a cabeça, quase todas possuem uma
saliência que tem, às vezes, a forma de uma mitra ou tiara. Mesmo as cabeças em que se pôde reconhecer uma representação de animal, são portadoras
dessas "mitra", conforme a denominou Ladislau Netto, no valioso estudo que publicou sobre a jazida de Marajó, nos Archivos do Museu Nacional do
Rio de Janeiro, em 1885.
Na mesma ocasião, mostrou o prof. Hartt a existência de pequenas esferas de barro, dentro d'alguns
desses ídolos. Esse fato, a meu ver, ainda acentua mais o caráter religioso de tais estatuetas, porquanto o chocalho (maracá) nunca deixou de ser um
auxiliar dos ritos dos fetichistas do Brasil.
Por via de regra, os ídolos de Marajó são revestidos duma camada de barro fino e esbranquiçado.
Muitos são pintados, portadores, principalmente, de linhas vermelhas diversamente combinadas. O seu tamanho, em geral, é medíocre. Ao lado das
tangas e das urnas, os objetos mais notáveis, pela riqueza ornamental que ostentam, são pratos de barro, fartamente encontrados no Pacoval. Dignos
de menção ainda me parecem os discos de barro, ornamentados, aos quais se atribui a função de volantes de fusos.
Qual a significação do mound do Pacoval? Primitivamente, tinha ele a forma dum quelônio
enorme (tartaruga?) e, segundo Ladislau Netto, fora sempre uma necrópole sagrada. Liga-se perfeitamente à série dos mounds zoomorfos da
América do Norte. Mas, além disso, pensava Netto, essa colina artificial ainda servira de atalaia, onde o povo que o construiu, rodeado de tribos
inimigas, postava guardas capazes de vigiar a planície em derredor, dominada por ela.
Já o dissemos aqui: a construção desse monumento notável, e a autoria de tão notável cerâmica, não
devem ser atribuídos a gente diversa dos índios. Mas, inegavelmente, merece um lugar à parte a tribo que se elevou tão alto em trabalhos artísticos
de tal natureza.
A Ilha de Marajó era habitada quando aí chegaram os portugueses, pelos Aruans, na sua porção
Nordeste; e por tribos diversas, que Ferreira Penna pensava deviam ser incluídos na denominação Nheengahibas, na porção Sudeste. Diversos povos
tupis (Jurunas, Mamamianás) se espalhavam pelo centro da ilha. Os portugueses, porém, convém acrescentar, chamavam Nhenengahibas a todos os povos
dessa ilha.
Aos Aruans (Aruá-an), povo de origem Caraíba-Aruak, devemos, segundo Ferreira Penna, atribuir as
jazidas de Marajó. Afastados de sua pátria originária, depois de passar pela Florida e pelas Antilhas, fixados na foz do Amazonas, foram eles
consentindo que a sua arte se degradasse, talvez porque a luta com os outros povos não permitisse que a sua tão alta cultura continuasse a
desenvolver-se.
Transportados para outro meio, obrigados a guerras contínuas, foram os hábeis ceramistas, aos
poucos, desleixando-se dos trabalhos que só a paz consente, perdendo, assim, o alto posto que haviam alcançado. Destarte, a jazida de Marajó é
soberbo túmulo dum grande povo que se veio extinguir no Brasil, trazendo, das regiões setentrionais do continente americano, uma cultura bem
superior à então existente entre os índios da Amazônia.
Postas de lado outras hipóteses, menos aceitáveis, é isso o que parece significar o mound
do lago Arari. Devemos notar, ainda, que a civilização centro-americana parece ter influído acentuadamente sobre esse povo; se parte dele chegou à
ilha, trazida pelo Atlântico, é mui provável que outra parte dessa nação de delicados artistas tenha atingido Marajó, descendo o amazonas.
Scelydotherio desdentado, fóssil brasileiro da Coleção Lund (Museu Nacional)
Foto publicada com o texto, página 55
Etnografia
Em um livro da feição deste, não há lugar mui amplo para o desenvolvimento de notícias puramente
científicas. Faremos por isso, aqui, apenas um resumo de todas as grandes questões relativas à Antropologia e à Etnografia do Brasil. Hoje, todos
reconhecem o interesse que apresenta o estudo antropológico da população brasileira.
Há mais de quatro séculos que este território começou a ser habitado pelos brancos vindos da
Península Ibérica; há perto de quatro séculos que o Brasil principiou a receber negros da África. Durante esse largo tempo, as influências
mesológicas e o cruzamento puderam fartamente concorrer para modificar ambas as raças primitivamente importadas.
Mas, além disso, vieram essas raças encontrar aqui, ao chegar, no começo do século XVI, uma
população diferente de ambas, na qual os traços anatômicos dos Mongóis predominam. Os índios que constituíam esta população, unidos aos portugueses
e aos negros, formaram o nosso povo. Talvez não exista na Terra outra região em que a mistura das três raças tão largamente fosse efetuada. Daí
surgiram tipos intermediários mui característicos: o caboclo (branco/índio), o mulato (branco/negro), o cafuzo (negro/índio).
Até hoje, ainda não possuímos um estudo detalhado desses elementos da nossa população. Tenho
encetado verificações e pesquisas a respeito, mas não me julgo ainda bastante informado para as publicar. Sem esses dados, nós nos achamos na
contingência de distinguir todos eles por apreciações baseadas, puramente, em caracteres descritivos.
A população global do Brasil cresce mui rapidamente, já pela fecundidade natural das raças, já
pela grande importação verificada nos últimos tempos. Em 1808, segundo afirma Varnhagen, o mais seguro dos nossos historiadores, contava o Brasil
cerca de 3 milhões de habitantes, fora os índios. Em 1872, já o recenseamento acusava 10.112.061; 18 anos mais tarde, em 1890, deu 17.318.556.
E pelos dados publicados em 1908 pela Diretoria Geral de Estatística, do Rio, verificamos que a
raça branca predomina de modo absoluto em todo o Sul do país, a partir do Rio de Janeiro. Em S. Paulo, no Distrito Federal, no Paraná, em 1890, já
os brancos formavam mais de 60% da população; em S. Catarina, chegavam a fornecer um contingente de 84%. O estado menos provido de gente branca era
o Piauí, onde ela formava 28%; aí mesmo, porém, de 1872 a 1890, os brancos aumentaram sempre porque de 21% passaram à taxa citada (28%). Em Minas
Gerais, Mato Grosso, Sergipe, Rio Grande do Norte, o aumento de brancos, nesses 18 anos, foi pequeno. Mas eles cresceram muito na Bahia, reputada o
reduto negro do Brasil. Portanto, a raça branca vai, cada vez mais, predominando.
Aos portugueses vieram se juntar, desde 1818, outros elementos representando, igualmente, a raça
caucásica. Nesse ano, seguindo conselhos do seu antigo ministro, então já falecido, o conde da Barca, mandou d. João VI contratar na Suíça 2.000
colonos, os quais se alistaram em Berna, por intermédio de Luiz Nicolas Gachet. Esse pôde ser considerado o primeiro contingente branco, estranho a
Portugal, recebido pelo Brasil; porque as tentativas francesas da França Equinocial e da França Antártica abortaram completamente, esta em 1560, no
RIo de Janeiro, e aquela no Maranhão em 1615, bem como a dos holandeses em Pernambuco em 1654; e nenhuma logrou concorrer para o aumento da massa
branca.
Antes de 1818, já o Brasil recebia alguns ilhéus da Madeira e dos Açores, os quais, de
preferência, se dirigiam para Minas e Rio Grande do Sul, onde, pouco depois, Saint-Hilaire dizia ter encontrado gente mui parecida. As lutas da
Independência vieram sustar o movimento imigratório que d. João havia provocado; mas, no segundo Império, o Governo achou que devia continuar a
fomentar a imigração de europeus.
De 1818 a 1907,as entradas totais de estrangeiros mostram que, depois da Independência, o
português começou a perder gradualmente a sua influência numérica na constituição do povo brasileiro. Até 1850, a massa branca que chegava ao Brasil
era praticamente anulada pela onda negra que os portugueses vinham movendo d'África havia mais de 300 anos. Naquele ano, o ministro Euzebio de
Queiroz tornou efetiva a lei que proibiu a importação de africanos, já condenada pelo Congresso de Viena (1815) e planejada, no Brasil, por José
Bonifácio em 1822.
É curioso observar como, em nossa terra, mormente nas suas regiões meridionais, o elemento
aborígine cedeu o passo completamente ao branco e ao negro. Isto é tanto mais notável quanto, em certas porções da Sul América, o fato oposto se
verifica. No Paraguai, por exemplo, a conquista não conseguiu aniquilar a preponderância numérica do povo guarani. No litoral do Brasil, o negro
ganhou ascendência sobre o índio, graças ao prestígio do europeu, que o fez seu sócio na luta contra o selvagem, dono da terra. Ficaram certas
regiões interiores, Amazônia, Goiás, Mato Grosso, livres e capazes de permitir o completo desenvolvimento do verdadeiro caboclo, que deveria ser a
expressão mais pura da raça brasileira, pois que o cafuzo sempre foi um tipo esporádico, numericamente sem valor.
Foi Duarte Coelho o promotor da importação de negros para o Brasil, pedindo ao rei d. João III, em
1542, que lhe "fizesse mercê de lhe dar licença e maneira de haver alguns escravos de Guiné" para trabalhar na cultura da cana-de-açúcar, a grande
riqueza do seu domínio. Não é possível calcular o número de escravos assim importados; faltam completamente elementos para isso. Toda a estimativa
seria arbitrária e fantasista. Seja como for, a influência deles na constituição do povo brasileiro foi muito apreciável.
Agora que o negro vai desaparecendo do Brasil, como provam irrecusavelmente os dados da
estatística, muito acordes com a observação vulgar, justiça é declarara o bem que dele nos veio. Para o desenvolvimento do país, foi o elemento
decisivo e inexcedível. Sem ele, Portugal não nos teria legado um território tão unido e capaz de permitir o progresso que a nossa nacionalidade,
nos seus 90 anos de vida autônoma, tem podido revelar.
Devemos esse progresso, é certo, diretamente à influência dos contingentes caucásicos, nestes
últimos tempos importados; mas ao negro cabe a glória de haver concorrido para a estabilidade da nossa ordem social, base de todo o adiantamento.
O índio anulou-se por si mesmo, quando não foi anulado propositalmente; o português não seria
bastante, e o confessou, para arcar com as lutas e os trabalhos da sua colônia no Brasil; ao negro, devemos esse papel, que ele soube desempenhar,
sem ódios e com a maior das resignações contadas na história da escravidão da raça infeliz.
Por outro lado, a sua influência moral não foi deletéria, como se comprazem alguns em afirmar. Ele
contribuiu para amainar, com a sua bondade e a sua dedicação, os ímpetos do português aventureiro, que durante séculos procurava o Brasil para
ganhar fortuna, ou expiar crimes e faltas, compelido a esse degredo pelos tribunais da pátria. Foi talvez um mal, contingência inevitável, o incutir
na alma do povo um fetichismo agudo que eles traziam da África e no qual ainda hoje, em certos lugares, se diluem as próprias crenças católicas
inconscientemente transformadas.
Em abono de seus bons sentimentos, falam as estatísticas criminais da capital da República: em
1908, para 1.743 criminosos brancos, registraram-se 503 mulatos e 292 negros. Guardadas as devidas proporções, a raça negra não fornece maior
contingente de criminosos que a branca.
Na língua mesma que hoje falamos, há um sem-número de termos oriundos da África, embora de idiomas
diversos, porque os escravos pertenciam a nações diferentes e procediam de regiões afastadas. Dentre estas, foram Guiné, Congo, Angola e Moçambique
as que primeiro nos enviaram negros de tipos antropológicos diversos.
O negro de Guiné, que é talvez o mais característico elemento africano, foi representado no Brasil
pelos Mandingas, Iorubás, que foram aqui chamados "negros Minas"; Felupos, Balantes, Fulahs. Do Congo, tivemos Ambuelas, Kissamas, Mbundas, Cabindas.
De Moçambique, vieram principalmente negros Amacuas. Juntando ainda outros elementos Hotentotes e Bushmen, teremos um apanhado da população africana
que concorreu para o povoamento do Brasil.
O negro, já muito reduzido em 1890, formava cerca de 20% da população da Bahia e 25% da do estado
do Rio de Janeiro. Em S. Catarina, descia a formar 4% do povo; e na capital da República, cerca de 12%. Em 1872, ainda ele constituía 26% da
população da Bahia; 34% da do estado do Rio de Janeiro; 24% da massa do Distrito Federal. Nesses 18 anos (de 1872 a 1890), cresceu ele de 1% no
Piauí e 2% no Ceará, únicos aumentos verificados ao lado do verdadeiro desaparecimento em massa que se deixou demonstrado.
O índio, brasileiro por excelência, daria com o português o mestiço original que, teoricamente,
formaria a nova raça; o caboclo ou mameluco, como lhe chamaram antigamente, seria essa raça. Mas a sua formação foi cedo perturbada, em grande parte
do país, pela influência africana. Hoje, ainda, ele predomina nas regiões não atingidas pela colonização, e onde mesmo os escravos mal chegaram.
No Amazonas, por exemplo, o índio formava, em 1872, 64% da população para 3% de negros; em 1890,
eram estes ainda 3% e os índios 48%. Na Bahia, ao contrário, em 100 habitantes, em 1872, havia 3 índios para 26 negros; em Mato Grosso, em 1890, 14
índios para 13 negros; no Pará, 6 negros para 20 índios; no estado do Rio de Janeiro, para 20 negros, 2 índios.
A porcentagem de índios, nos 18 anos (1872 a 1890) aumentou sensivelmente. Mas é preciso notar que
esse crescimento da população índia sofre contingências formidáveis que ninguém pode avaliar. É verdade que o cômputo aí expresso não abrange a
totalidade, porquanto o censo não atingiu, nem o poderia ter feito, as numerosas tribos que se espalham pelos grandes rios do interior. Mas, por
outro lado, basta um simples contato com os maus civilizados, para que os vícios e as moléstias dizimem muitas tribos já aldeadas.
A Antropologia não consegue definir com precisão mais de uma raça de índios no Brasil. Há
variantes, é certo: mas não chegam a diferençar-se bastante. Todos são francamente filiados ao ramo mongólico ou amarelo pelo cabelo duro, reto,
negro, de seção circular. A cor da pele vai do amarelo escuro ao trigueiro claro. É neles mui comum o levantamento do ângulo externo das pálpebras,
tal qual sucede nos monges da Ásia. São mesórrinos, porque o esqueleto do nariz nem é tão deprimido como na raça negra, nem tão alçado como na
branca; são mesognatas, porque o seu prognatismo é intermediário ao dessas duas raças. A barba e os pelos do corpo são pouco numerosos; e eles os
arrancam, quando vêm aparecendo.
A estatura dos nossos índios é baixa; entretanto, há tribos de verdadeiros atletas. O tronco é
grosso e largo, os membros relativamente curtos; as mãos e os pés pequenos; o abdômen, saliente. No pé esquerdo de muitos, é notável o afastamento
entre o grande artelho e o segundo. Esse desvio é conseqüência do uso de fixar a ponta do arco, na ocasião de desferir a flechada. As mulheres têm o
peito largo e os membros finos.
Em 1500, segundo afirma Varnhagen, toda a população brasileira podia ser calculada em menos de 1
milhão de índios. Incontestavelmente, este cálculo não tem o menor valor; é puramente arbitrário. Ainda hoje, não podemos, com exatidão, avaliar o
número dos que vivem no coração do Brasil. Os dados censitários a que nos temos referido só atingem os selvagens já meio civilizados e, agora mesmo,
o coronel Rondon acaba de encontrar, em Mato Grosso, uma tribo numerosíssima, da qual só se conhecia, vagamente, a denominação.
Couto de Magalhães, que foi, sem dúvida, na sua época, o melhor conhecedor do interior do Brasil,
calculou, em 1876, toda a população selvagem em cerca de 1 milhão. As perseguições, os vícios oriundos dos civilizados, as moléstias da mesma
origem, dizimaram, desse tempo para cá, grande parte desse milhão, mormente depois que o desenvolvimento da indústria da borracha impeliu uma grande
massa atacante para as regiões onde o grosso dos índios se espalhara.
Os tipos antropológicos a que o cruzamento das três raças deu origem entram hoje com respeitável
coeficiente na população d'alguns estados. O caboclo, curiboca, cariboca ou mameluco, teve na história do Brasil um lugar marcado. Os célebres
paulistas, "bandeirantes", os descobridores de grande parte do hinterland do país, eram quase todos mamelucos, e, a despeito disso, foram os
mais encarniçados caçadores de índios. Formaram os mestiços dos brancos e índios a maior parte da população dos estados de Amazonas, Pará, Maranhão,
Ceará, Piauí e Goiás.
O caboclo é magro, seco, de estatura mediana, de cabelos corredios. A pele é em geral
pardo-trigueira e muitas vezes avermelhada. Tem as maçãs do rosto salientes e os olhos um tanto oblíquos. Os dentes, como os cabelos, são
característicos: pequeninos e certos. Gastam-se por igual os incisivos, cujo fio se embota e se transforma em verdadeira faceta triturante.
A estatística do recenseamento de 1890, que está servindo para este estudo da feição antropológica
do Brasil, reúne todos os mestiços na mesma coluna, de sorte que não se pode apreciar devidamente o contingente de cada um deles em separado. Os
caboclos, em todo o caso, não vão desaparecendo como o negro. Habitantes de zonas em que a custo o elemento branco pôde permanecer (portanto
refratárias, até certo ponto, à colonização branca), não se diluem, como o negro, nas novas massas.
A diminuição dos mulatos nos 18 anos a que nos referimos foi sensível. São fatores disso, por um
lado, o desaparecimento do negro; e por outro a volta ao tipo branco, geralmente observada nos cruzamentos. Rara é a volta ao tipo negro. E a
reversão ao branco é tão perfeita que, ao cabo de duas gerações, ninguém pode, em certos casos, por melhor que o examine, deixar de incluir tal
indivíduo entre os do tipo moreno europeu. Há até traços mais afinados que em puríssimos caucásicos.
Seja como for, o contingente de mestiços, de 1872 a 18790, diminuiu sensivelmente. Em 1872, o
estado de Alagoas tinha 60% deles; o Ceará, 49%, a Paraíba, 50%; o Paraná, 27%; S. Paulo, 23%. Em 1890, desceram em Alagoas a 40%; no Ceará, a 29%;
na Paraíba, a 35%; no Paraná, a 18%; em S. Paulo, a 15%. Na Bahia, de 45% passaram a 46%; no Amazonas, de 13% a 20%. Este é o estado em que o
aumento foi maior; coincide com o desenvolvimento da extração da borracha, indústria explorada, principalmente, por gente que vai de Ceará. Nos
outros estados, o número dos mestiços, nesses 18 anos, ficou estacionário.
O mestiço do preto com o índio não é comum. Caracteriza-se pelo cabelo negróide, concorrendo com
traços físicos francamente mongólicos. A sua influência foi nula.
Enfeites dos índios (Museu Nacional): 1) "Acantagar" dos Apiacás (Nº 4.363); 2) Pente ornamental,
usado pelos Uaupés (Nº 538); 3) Escudo ornamental, usado pelos Cararai-Uaupés (Nº 507); 4) Colar de dentes, dos índios Apiacás (Nº 4.367)
Foto-montagem publicada com o texto, página 57
Concluindo, podemos afirmar que o Brasil vai, aos poucos e com a maior felicidade, resolvendo as
graves questões de raça que, em outras partes, têm suscitado atritos sérios. Não existe hoje, aqui, o preconceito da cor; de modo que o negro, em
vez de se fortalecer pela seleção e pelo segregamento, se dissolve na massa branca, cuja onda cresce de ano para ano. Dentro de pouco tempo, será
absorvido, tanto mais quanto, hoje, certas regiões onde o branco não conseguia manter-se, se vão tornando cada vez mais capazes, pelo esforço
científico, de permitir o seu estabelecimento.
Por outro lado, os europeus que nos chegam, cada vez mais, sofrem insensivelmente um trabalho de
naturalização acentuada, de que podem ser exemplo os teuto-brasileiros do Sul, raça forte e bonita, destinada a ser um dos bons elementos étnicos do
Brasil.
Nos primeiros séculos da sua história, o Brasil parece ter sido destinado para ensaiar o
congraçamento das três grandes raças em que a espécie humana é dividida; nos séculos futuros, a sua situação, nesse particular, não será talvez
menos simpática, promovendo o contato entre os diversos povos que o procuram e facilitando a suspirada fraternidade.
Dividiam os portugueses, outrora, as tribos selvagens do Brasil em dois grupos. As do primeiro
pertenciam à família Tupi-guarani, de cultura mais adiantada; viviam espalhados pela costa e até subiam o Amazonas. Eram chamados Tapuias os índios
do segundo grupo, os quais não falavam a língua dos Tupis. Estes eram ferozes inimigos dos primeiros. Os Tapuias viviam no interior do país, e eram
mais incultos que os Tupis. Convém dizer que o nome tapuia é hoje empregado, no Amazonas, para designar o índio civilizado ou o caboclo de
qualquer origem. A preponderância dos Tupis foi tão grande que, ainda hoje, o seu idioma, ligeiramente modificado, é a língua geral dos índios da
Amazônia.
Foi o naturalista bávaro C. F. Ph. von Martius quem, em 1821, classificou, segundo certo critério,
fornecido pelos idiomas, as tribos do Brasil. Assim, ele distinguiu os grupos Tupi, Gê, Kren, Guk, Aruak, Pareci, Goitacás, Guaicuru. Depois de
1884, as explorações de Karl von den Steinen, e os estudos de Paul Ehrenreich, Brinton, Lucien Adam e outros, deram elementos para que fosse
modificado aquele quadro de Martius.
Hoje, a classificação mais geralmente admitida divide os selvagens do Brasil em 7 grupos
lingüísticos: Tupi, Gê, Nu-Aruak, Caraíba, Miranha, Paná, Guaicuru. A esses, convém agregar o grupo Alófilo, em que, para melhor sistematizar o
estudo monográfico das tribos, se incluem as que não pertencem lingüisticamente a nenhum dos outros. Devo dizer, contudo, que acho prudente aceitar,
com muita reserva, a divisão dos nossos índios, feita deste modo, sobre bases lingüísticas. Os próprios lingüistas são os primeiros a mostrar como
podem falhar certas teorias. E não me parece impossível um futuro acordo entre eles, reduzindo o número desses grupos.
É preciso não esquecer que a Antropologia não conseguiu caracterizar mais de uma raça de índios; a
religião desses povos, o folclore, a tecnologia etnográfica, são assombrosamente semelhantes, como pode verificar quem se der ao trabalho de estudar
estas questões, sem preconceitos. Por isso, entendo dever basear todo o estudo sistemático dos nossos índios na sua distribuição geográfica, embora
não desprezando esses dados lingüísticos, os quais, mesmo falhos, já nos têm servido muito.
Não desejando alongar estas considerações, basta que informe a maneira como penso que podem ser
sistematizadas as tribos do Brasil, segundo este critério. O território brasileiro, quanto à sua etnografia indígena, fica dividido em três zonas
caracterizadas pelas três vertentes: setentrional, oriental e meridional; em cada zona se distinguem tantas regiões quantas as bacias fluviais nelas
existentes. Depois, notam-se os grupos lingüísticos dessas regiões; e finalmente, as tribos a eles filiadas.
Assim: na zona setentrional, entre outras regiões, temos a do Rio Xingu; aí, achamos os grupos
Tupi, Caraíba e Gê. No grupo Tupi achamos a tribo Juruna; no grupo Caraíba, a tribo Bacairi; e no grupo Gê, a tribo Suiá. Convém lembrar que as
tribos se movem hoje dentro da mesma zona e na mesma região.
Há 400 anos que são acompanhados e estudados os índios do Brasil. É óbvio que os povos indígenas
não surgiram do solo nos pontos que ocupam; mas é também verdade que, na época da descoberta, já eles haviam esgotado a sua atividade nômade; ao
menos, tanto quanto necessário para que o sistema de divisão proposto não seja invalidado por esse fator.
Para não citar outros, os Parecis ainda hoje habitam a mesma região que ocupavam quando foram
visitados por Antonio Pires de Campos. Quanto às origens dos povos indígenas do Brasil, devemos confessar que até hoje nada de certo e positivo foi
verificado. Seria perder tempo passar aqui revista às múltiplas opiniões, todas fantasistas, que se têm externado a esse propósito. Basta dizer que
parece incontestável o primitivo povoamento do Novo Continente por homens vindos da Ásia. Talvez mesmo a Europa e a África houvessem concorrido para
isso.
Quanto aos seus costumes, os índios do Brasil são mui parecidos. Em geral, moram em cabanas bem
feitas, de formas diversas, construídas perto de água. Na caça e na pesca, são habilíssimos; caçam com arco e flecha, e com a zarabatana, longo tubo
de madeira, com o qual certas tribos da Amazônia desferem um fino dardo envenenado, mediante o sopro. O principal emprego desta arma é contra as
aves, cujas penas os índios querem livrar das manchas de sangue. Também por isso, algumas tribos usam flechas de ponta romba, que matam por
contusão.
As armadilhas Mundéus figuram no arsenal dos caçadores índios. A pesca é exercida com as redes
Puçás, com os covos Jiquis e mesmo com flechas e arpões. É destes o mais notável a Sararáca, com a qual perseguem na Amazônia o Pirarucu (Arapaima
gigas) e o Peixe-boi (Manatus inunguis). Com o timbó (Paullinia pinnata), sarmento venenoso, costumam intoxicar as águas, para
matar o peixe, que vem à tona, em narcose.
Algumas tribos empregam um estratagema curioso na caçada de certos animais: os Parecis, para
abater a ema e o veado, vão escondidos atrás do Karéke, escudo de folhagem que se confunde com a vegetação do lugar, e donde, por um orifício, o
caçador visa com segurança quando o animal, confiante, se aproxima daquela moita artificial. Na guerra, hoje limitada a pequenos conflitos isolados,
usavam granes cacetes (Tacapes), lanças (Murucús), dardos envenenados (Curabis); e os Munducrucus, do Tapajós, faziam até há pouco tempo troféus
notáveis das cabeças dos inimigos conservadas por mumificação.
Além dos produtos da caça e da pesca, utilizam-se de frutos e raízes, assim como d'outras
substâncias vegetais. O mel com o palmito, porção tenra da estipe de certas palmeiras, sempre foi muito apreciado. A mandioca (Manihot
utillissima), que se tornou o pão dos brasileiros, o milho, a batata-doce (Convolvolus batata), o algodão, o urucum (Bixa orellana),
donde tiram a tinta com que se pintam, assim como o Carajuru (Bignonia chica) são encontradas ao redor das aldeias indígenas.
Há índios que revestem o corpo de barro branco (Tabatinga), uma espécie de caulim. Aqueles que
costumam perfurar o lábio inferior e os lóbulos das orelhas, passando por aí discos enormes de madeira leve ou rolos de folhas, foram chamados, por
isso, Botocudos.
A variedade de enfeites, usados pelos índios, é enorme. Dentes, contas de madrepérola, retiradas
de moluscos fluviais, frutos, ossos, penas e miçangas obtidas dos civilizados, são materiais de que eles fabricam o mais variado sortimento de
adornos, nos quais a segurança da manufatura nada fica a dever à beleza dos desenhos e encanto do colorido. Muitos deles poderiam, com vantagem,
figurar entre os que usa gente civilizada.
O tucum (Astrocarium tucum) é uma palmeira que fornece o fio indispensável à indústria dos
índios. A cerâmica, notabilíssima pelo material e pela ornamentação, é feita, ou antes, era feita pelas mulheres, por um processo original. O barro,
depois de amassado, é disposto em forma de longo cilindro que a oleira vai enrolando em espiral, para formar o fundo e as paredes do vaso. Com um
fragmento de madeira são alisadas as superfícies assim preparadas para receber o desenho.
Também às mulheres cabe o trabalho penoso da agricultura e outros serviços, entre os quais o
preparo de bebidas alcoólicas, cuja fermentação é provocada pela mastigação prévia da matéria-prima.
São em geral monógamos os nossos índios, embora em certas tribos os chefes costumem ter mais de
uma esposa. Em algumas, é ainda uso a couvade: quando nasce a criança, é o pai quem se resguarda, na rede, junto ao recém-nascido. O chefe
espiritual, médico e sacerdote (Pajé), tem funções bem distintas do comando, exercido pelo Tucháua, chefe temporal.
Acham-se os índios brasileiros em pleno estado fetichista, já tendendo para a astrolatria
(N.E.: adoração a corpos celestes, astros).
Entre os Tupis, três eram, antes que as relações estranhas modificassem as crenças, os seres supremos adorados: o Sol (Guaraci, Mãe dos animais); a
Lua (Jaci, Mãe dos vegetais); Rudá ou Perudá, o deus do amor, como lhe chama Couto de Magalhães. Rudá seria o encarregado de reproduzir os seres
criados pelos outros. Tupã chamavam os índios ao trovão que acreditavam manifestação divina.
Ao lado disso, havia, e mesmo hoje existem, deturpadas, criações esdrúxulas que ajudaram esse
fetichismo astrólatra e animista. Assim, Jurupari, o mau espírito, o Caapora, as Uiáras etc. Todos são encontrados nas lendas indígenas. Tudo isso
diz respeito aos Tupis, os quais, conforme já se disse, predominaram. Não há aqui lugar para essas lendas. Em geral, têm por tema a maneira segundo
a qual apareceu tudo quanto a Terra possui, ou as lutas astuciosas de animais uns com os outros, quando não contam histórias de bravuras e combates.
Em algumas há, ao que parece, franca preocupação astrolátrica. Gostando imensamente da música, os índios deixavam-se seduzir por ela, quando os
padres jesuítas vinham ao encontro deles, animados pelo ardente desejo de os converter à fé católica, Flautas de osso, grandes buzinas, chocalhos
(Maracá), são usuais entre eles.
As línguas faladas pelos índios do Brasil acham-se todas em plena aglutinação, algumas já
caminhando para a flexão. A mais importante, repetimos, é a língua Tupi. O Tupi setentrional, ou Nheen-catu (língua boa) e o Tupi
meridional, Guarani ou Abá-nheeng (língua de gente), diferem entre si como o espanhol e o português. A influência que exerceram ambos
sobre o português falado no Brasil foi muito grande. Basta citar as denominações geográficas do país, as quais, em sua maioria, são vocábulos tupis,
embora entre elas existam nomes derivados também d'outras línguas selvagens alheias a ele.
O Tupi é língua doce e rica, original e sóbria. Tem qualquer coisa de heráldico, uma nobreza que
se impõe. Para dar ao leitor uma idéia, transcrevo em seguida algumas linhas da tradução do Pater
(N.E. - Pater nostrum, pai nosso em latim, oração católica)
feita por Couto de Magalhães, para a língua tupi, ainda hoje falada. Convém notar que o "r" é sempre brando, o "h" levemente aspirado e o "u" tem o
som da mesma letra em alemão ou francês.
"Padre nosso que estás no céu - Nhanê rubá oíkô uahá üuáka opé. - Santificado seja o teu
nome. - Ne rêra oiumuité toikô. - Dá-nos o céu onde estás. - Rémehé ianê arãma üuãka, mamé rêikõ..."
A influência exercida pelos índios na atual população do Brasil não foi igual em toda a extensão
do país. Acentuou-se mais no extremo Norte e no interior. Além do que nos veio da língua, recebemos usos e costumes hoje integrados nos nossos
hábitos. A rede, por exemplo, é a cama do Norte e do interior do Brasil, onde se aprendeu, com os índios, o seu uso.
Algumas lendas do Norte, e mesmo do Sul do país, revelam ainda o traço indígena. Qual a criança
brasileira que não ouviu histórias de Saci-Pererê, duende curioso, espécie de Mefisto que vive pregando peças aos incautos? Quem, no Brasil, nunca
se achou caipora? O caipora era um gênio mau da floresta, que aparecia aos índios, montado num porco (Dicotyles), trazendo ao
selvagem que o via os dissabores de quem perde a felicidade.
Mas a influência dos aborígines não pôde ser maior porque cedo os portugueses começaram a
perseguir os índios, que não se sujeitavam ao cativeiro, rechaçando-os cada vez mais para longe do litoral, berço da nossa nacionalidade. A raça
vencida continua, porém, a viver em nossa literatura, idealizada, desde antes da Independência, na Moema de Santa Rita Durão, e derramando o perfume
das suas lendas nas páginas de Gonçalves Dias e Alencar, os dois maiores indianófilos das nossas letras.
Arco e flechas
Imagem publicada com o texto, página 58
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