"Pouso de tropeiros paulistas no caminho de São Paulo a Santos - 1826 (Hercules Florence)
Imagem publicada na página 65 do livro Segunda Viagem a São Paulo, edição do Senado Federal - Brasília - 2002
O navegador português Pedro Álvares Cabral embarcou em Lisboa no ano de 1500, com destino às Índias Orientais; ventos
contrários impeliram-no para oeste, e, assim, o Brasil foi descoberto.
Nessa ocasião, o rei de Portugal estava inteiramente absorvido com as conquistas que seus navegantes tinham efetuado nas Índias, conquistas que seus sucessores dentro em pouco tempo perderiam; por esse motivo descuidou-se do Brasil que, durante
dois séculos, canalizou para Portugal imensas riquezas.
A costa setentrional do Brasil foi, entretanto, explorada, nela se tendo estabelecido alguns particulares; a costa que se estende da baía de Todos os Santos ao rio da Prata mal era conhecida. O rei d. João III quis, finalmente, assegurar os
direitos que Portugal julgava ter sobre as terras descobertas, encarregando Martim Afonso de Sousa de tomar posse das mesmas. Não podia ter feito melhor escolha. Era Martim Afonso de Sousa, no dizer de um historiador,
o mais virtuoso dos cortesãos, o mais criterioso dos conselheiros, o mais hábil dos generais.
Partiu Martim Afonso de Lisboa pelos fins do ano de 1530 e, a 30 de abril de 1531, fundeou na baia do Rio de Janeiro, que os indígenas dominavam Ganobará ou Nithoy. Como os tamoios, selvagens desconfiados e belicosos não lhe
permitissem estabelecer-se ali, prosseguiu viagem até o rio da Prata; depois, voltando para o norte, entrou, no dia 20 de janeiro de 1532, numa baía que, protegida por duas ilhas mui próximas da terra firme, apresenta o mais seguro ancoradouro de
toda a costa. Recebera Martim Afonso de seu soberano ordem para estabelecer uma colônia ao sul do Brasil; foi esse o local que escolheu, lançando na ilha de São
Vicente os fundamentos da vila que recebeu esse nome.
Tal foi o início da capitania de São Vicente, cuja história está ligada à de quase todo o Brasil, e que mais tarde foi denominada capitania de São Paulo.
Sem nenhuma razão têm sido considerados como um vil ajuntamento de bandidos os primeiros habitantes da referida colônia, quando é certo que entre os companheiros de Martim Afonso contavam-se fidalgos de Portugal e da ilha da Madeira; todos,
entretanto, deveriam, naturalmente, participar assim de vícios como das brilhantes qualidades dos homens de sua época; eram o que foram pelos meados do século XVI os outros portugueses.
A uma fé ardente, mas pouco esclarecida, a uma generosidade levada à imprevidência, juntavam um espírito empreendedor e aventureiro, uma grande intrepidez, muito orgulho, o amor da glória, o desejo
de adquirir riquezas para dispensá-las e brilhar, e, sobretudo, uma rudeza de costumes contra a qual lutava, em vão, a inefável doçura do Cristianismo. Nenhum povo europeu era, na mesma época, isento dessa rudeza, e, se os paulistas a conservaram
por tempo mais dilatado, foi devido à circunstância de se entreterem, continuadamente, com gigantescas incursões pelos sertões e com as constantes caçadas que organizavam contra os selvagens durante muitíssimos anos.
Quando Martim Afonso aportou à ilha de São Vicente, essa parte do Brasil pertencia aos guaianases, indígenas pacíficos que povoaram o planalto situado ao norte da cadeia marítima, mas que, em certas épocas do ano, incursionaram o litoral, a fim de
colher ostras e outros moluscos.
No momento em que os portugueses entraram na baía, indígenas habitantes do planalto pescavam na costa. Diante do tamanho dos barcos dos europeus, fugiram, indo relatar em suas tabas (aldeias) que acabavam de ver pirogas que, comparadas com
as por eles usadas, eram como as árvores mais altas das florestas em relação às plantas rasteiras dos campos; e que, homens de pele branca, das mesmas haviam desembarcado, parecendo querer estabelecer-se no local, ali se fortificando.
O chefe dos indígenas tomou como um insulto a conduta dos homens brancos, razão pela qual se apressou em dar a notícia do que ocorria a todos os caciques da vizinhança. Apressou-se, sobretudo, em
avisar das ocorrências a Tibiriçá, chefe dos habitantes dos campos de Piratininga e a que toda a nação guaianás tributava grande respeito, porquanto nenhum chefe era mais poderoso, nem melhor guerreiro.
Martim Afonso não era o primeiro europeu que pisava naquela costa. Entre os guaianases vivia um português, salvo, provavelmente, de algum naufrágio e a quem Tibiriçá dera uma de suas filhas, de nome Bartira, por esposa. Esse homem, chamado João
Ramalho, não tendo jamais visto um navio de sua nacionalidade abordar àquelas paragens, acreditou que os homens aos quais os indígenas se referiam ali tivessem sido arrojados por uma tempestade, quando na rota das Índias Orientais. Compadecido da
triste sorte que supunha estar afligindo seus compatriotas, conseguiu que seu sogro partilhasse de sua compaixão, persuadindo-o de que, se tratasse os portugueses como amigos, lhe adviriam de tal atitude grandes proveitos.
Tibiriçá, em companhia do genro, pôs-se a caminho de São Vicente, seguido de trezentos indígenas armados de flechas. Quando João Ramalho avistou os portugueses, elevou a voz, e, falando aos
compatriotas, de longe, em sua língua materna, assegurou-lhes de que os guaianases não se apresentavam como inimigos. Aproximaram-se, então, indígenas e portugueses, fazendo aliança contra as tribos indígenas que tentassem perturbar-lhes o sossego;
e, como manifestação de regozijo, os portugueses casaram o ribombo de sua artilharia aos sons dos instrumentos com que os indígenas acompanhavam suas danças selvagens.
Nada mais tendo a temer dos indígenas, Martim Afonso ocupou-se em febril atividade na edificação da nascente povoação, permitindo que seus companheiros fizessem plantações na ilha de São Vicente; nomeou oficiais de justiça e assegurou, por meio de
sábios regulamentos, a tranquilidade dos colonos e a segurança das respectivas propriedades.
A Martim Afonso, em última palavra, deve-se o primeiro estabelecimento regular dos portugueses em o Novo Mundo. Esse ilustre homem não se contentou, porém, como tantos outros capitães portugueses, em explorar a costa; quis conhecer e desbravar o
interior das terras.
Através de mil perigos, escalou a cadeia marítima denominada pelos indígenas Paranapiacaba; do cume das altas montanhas que a constitui pôde fazer uma ideia exata da magnífica região cuja posse acabava Martim Afonso de assegurar para a monarquia
lusa; e assim penetrou até a planície de Piratininga (1532), domínio de seu fiel aliado – o cacique Tibiriçá.
O rei d. João III reconheceu, afinal, que o Brasil tinha algum valor; mas, para se livrar dos cuidados exigidos pela colonização de tão vasta região, dividiu-a em várias capitanias hereditárias, doando-as a nobres personalidades, que se ocupariam
de defendê-las, nas mesmas formando estabelecimentos.
Martim Afonso era um dos maiores merecedores de tal recompensa. D. João III doou-lhe 400 léguas da costa, desde a baía de Paranaguá; mas, nessa vasta extensão de terras, estava encravada uma nesga de 10 léguas de largura, desde o rio São Vicente
até o rio Juqueriquerê, em frente à ilha de São Sebastião, terras encravadas que faziam parte das 50 léguas doadas a Pero Lopes de Sousa, irmão de Martim Afonso.
A doação deste último recebeu o nome de capitania de São Vicente, e viu-se ele obrigado a partir para Portugal no ano de 1553. Chegando às margens do Tejo, muito afastado da América, não se esqueceu, entretanto, da capitania de que era donatário.
Por seus cuidados e esforços, as mulheres de seus companheiros deixados no Brasil aos mesmos se reuniram, e novos colonos aumentaram o número dos mais antigos. Introduziu, também, em sua capitania, as diversas espécies de animais domésticos
europeus; fez transportar da ilha da Madeira a cana-de-açúcar, que de São Vicente se espalhou pelas outras partes do Brasil; e ordenou a montagem do primeiro engenho de açúcar que existiu no Império.
Os inteligentes esforços de Martim Afonso fizeram florescer a nova colônia. A agricultura logo prosperou de modo notável e um intenso comércio estabeleceu-se em Portugal, favorecido pela criação de um outro núcleo de população – Santos –, cujo
porto tem capacidade para receber os maiores navios. O numerário, é certo, foi, a princípio, extremamente escasso. Eram pagas com açúcar as mercadorias recebidas da Europa, produto este que constituía a única moeda corrente na capitania.
Não obstante os progressos assaz sensíveis que acabamos de assinalar, a nova colônia não passou muito tempo, entretanto, sem se ressentir da ausência de seu ilustre proprietário. Este compreendera perfeitamente que se os portugueses, levados pelo
desejo de mudança de situação, deixassem o litoral e se dispersassem pelo interior das terras, não teriam mais a mesma força e não poderiam remeter suas produções para a Europa. Por essa razão, proibiu aos brancos a entrada na planície de
Piratininga, fazendo exceção, unicamente, em relação a João Ramalho.
Mas, desde que partiu para a Índia, cujo governo lhe foi confiado, sua mulher, D. Ana Pimentel, suspendeu essa proibição. Daí os portugueses se misturarem com os indígenas, e, aos vícios de uma civilização muito defeituosa, juntaram, dentro em
pouco, os da vida selvagem.
Os representantes da autoridade de Martim Afonso não eram nem bastante enérgicos nem bastante judiciosos, para manter a ordem na colônia e para desenvolver os bons costumes e as normas de uma
equilibrada equidade entre indivíduos de raças tão diversas – uns inteiramente selvagens, e os outros semicivilizados, audaciosos e cúpidos.
Embora dando aos indígenas o nome de compadres – nome respeitável na época –, os brancos exploravam-nos com revoltante impudor, e, para impedirem que os mesmos conhecessem a verdade, os próprios administradores, cúmplices da má-fé de seus
administrados, proibiam a todos os cristãos, sob a cominação de severos castigos, o desmoralizarem, diante de um indígena, a um outro cristão ou suas mercadorias.
Não era, porém, unicamente em relação aos indígenas que os portugueses violavam todas as leis mais comezinhas da probidade; eram, também, pouco escrupulosos quando tratavam uns com os outros, e a falta de confiança era tão intensa que, para ter
segurança da fidelidade dos homens livres empregados nos engenhos de açúcar, eram estes obrigados a jurar, perante a câmara municipal, que nada furtariam a seus patrões.
A ausência de um chefe leal e poderoso não constituía a causa única a atuar, prejudicialmente, sobre os colonos de São Vicente. Uma outra causa de corrupção entre eles se introduzira desde os primórdios de seu estabelecimento: – a escravização dos
indígenas. Protegendo a liberdade destes, as leis portuguesas permitiam, no entanto, que essa proteção fosse burlada em certas circunstâncias.
Os colonos invocaram sempre boas razões para terem escravos. Descurados, eles próprios, dos preceitos da religião cristã, deixavam seus escravos manter-se em grosseira ignorância; estes, perdendo
seus hábitos selvagens, nada conseguiam do que um fatal embrutecimento; os senhores também se embruteciam, tornando-se cada vez mais cruéis.
Vários vicentistas – denominação a princípio dada aos habitantes de São Paulo – casavam-se com as indígenas, outros com as mesmas se amasiavam, ou, sendo casados, mantinham concubinas nas aldeias, às quais os indígenas tratavam como
legítimas esposas. Dessas díspares uniões proveio um grande número de mestiços; e foi a esses homens, conhecidos pela brutalidade de costumes, que se deu o nome de mamalucos, nome emprestado à milícia muçulmana que dominava no Egito.
As províncias setentrionais do Brasil estavam, na mesma época, em situação muito mais precária do que a da capitania de São Vicente. Seus destinatários, fracos e isolados, tinham dificuldade em se defender dos incessantes ataques dos indígenas, ao
mesmo tempo que se aproveitavam da autoridade sem peias de que eram investidos, para a prática, em relação aos colonos, de atos do mais in tolerável despotismo.
D. João III, finalmente, atendendo às súplicas de seus súditos, enviou ao Brasil um governador-geral – Tomé de Sousa –, homem enérgico e prudente, que de via representá-lo em todas as coisas, e a
quem concedeu os mais amplos poderes. Com Tomé de Sousa chegaram à baía de Todos os Santos, no ano de 1549, cinco religiosos da Companhia de Jesus, tendo à frente Manuel da Nóbrega seu provincial, missionário, que, à nobreza do sangue, reunia as
mais altas virtudes, prodigiosa atividade e grande talento para conduzir-se em sua missão.
Esses homens corajosos preocuparam-se, sem reservas, com a felicidade dos indígenas; mas como eles sozinhos não podiam desempenhar a difícil tarefa que se impuseram, quatro anos mais tarde, vieram
coadjuvá-los mais sete confrades, entre os quais José de Anchieta, que mereceu ser cognominado o Apóstolo do Brasil.
Anchieta foi a seu tempo poeta, guerreiro, naturalista; para tornar-se útil, a tudo se adaptava – ensinava crianças, comandava tropas, compunha cânticos, cuidava de enfermos, não se recusando,
mesmo, a prestar os mais vulgares serviços. Anchieta pode ser colocado entre os homens mais extraordinários de seu tempo.
Apenas chegado ao Brasil, Nóbrega fundou um colégio em São Vicente; em pouco, como já assinalamos acima, foi ele seguido pelo padre Anchieta, começando, então, para a capitania de Martim Afonso uma
nova era. Os jesuítas envidavam to dos os esforços para integrar os colonos na dignidade de homens e nos deveres de cristãos, por muito tempo esquecidos; opunham-se às injustiças dos mesmos e pleiteavam, corajosamente, em prol da liberdade dos
indígenas, afastando da comunhão dos fiéis os opressores desses infelizes.
Foi sobretudo o desejo de atrair os indígenas ao conhecimento da verdade que os fez abandonar família e pátria; de nada descuraram para atingir tão nobre escopo. Iam procurar os selvagens no fundo
das florestas, afrontavam-lhes a crueldade, atraíam-nos com benefícios, consolavam-nos em suas aflições, tratavam-nos em suas enfermidades e os faziam cristãos. As crianças, fascinadas por seus cânticos, seguiam-nos e os rodeavam, sendo por eles
iniciadas no conhecimento da religião, e com eles aprendiam, também, a leitura, a escrita, as contas e a música.
Os jesuítas desde logo sentiram que, para se tornar verdadeiramente úteis aos indígenas, não deveriam confinar-se no litoral habitado unicamente pelos portugueses e seus escravos. Nóbrega resolveu estabelecer um novo colégio na planície de
Piratininga, encarregando de tal incumbência Anchieta, que contava, então, pouco mais de vinte anos. Em época menos remota, os mineradores, atraídos unicamente pela presença dos diamantes e do ouro, fixavam-se, de ordinário, nas regiões
montanhosas, no fundo de tristes e áridos vales; os jesuítas, ao contrário, estabeleciam-se em terras mais férteis, sobre eminências onde as maravilhas da natureza, desdobrando-se num vasto horizonte diante do espectador maravilhado, impeliam-no a
elevar os pensamentos até o Criador.
Foi um local nessas condições o escolhido pelos discípulos de Santo Inácio, na planície de Piratininga, para a fundação de seu novo colégio. A 24 de janeiro de 1554, dia da conversão de São Paulo,
foi celebrada a primeira missa no novo estabelecimento, que recebeu o nome de São Paulo. Ali, onde devia erguer-se a cidade encantadora, destinada a representar tão importante papel na História do Brasil, só se via, a princípio, uma cabana de 14
pés de comprimento por 10 de largura, construída de terra e coberta de sapé. "É aí" – escrevia Anchieta – "que temos nossa escola e que estão nossa enfermaria, nosso dormitório, nossa cozinha, nosso refeitório, nossa dispensa." Folhas de bananeiras
serviam de mesa, uma esteira servia de porta.
A nascente colônia não tardou a tomar incremento. Um grande número de indígenas, de mestiços e de portugueses veio agrupar-se em volta da mesma, e o grande chefe dos guaianases, Tibiriçá, que recebeu no batismo o nome de seu compadre Martim Afonso
de Sousa, transferiu toda sua aldeia para perto do colégio dos jesuítas. Contudo, de tal progresso logo se originou uma rivalidade perigosa.
Desde o tempo em que Martim Afonso de Sousa se encontrava ainda em São Vicente, João Ramalho havia formado, na entrada da planície, uma povoação que denominou Santo André, e que, mais tarde, foi
elevada a vila. A João Ramalho e a seus numerosos filhos, todos mestiços, juntou-se grande número de portugueses. Esses homens, que tinham toda a sorte de vícios e não cessavam de escravizar os indígenas, não podiam ouvir sem cólera as prédicas dos
jesuítas contra essa infame prática; por esse motivo, levantando absurdas calúnias, começam a incitar contra os padres diversas tribos indígenas. São Paulo foi atacada, mas os indígenas convertidos à fé cristã rechaçaram os inimigos e sua
vitória aumentou ainda mais a influência dos jesuítas.
Demonstraram estes, em pouco tempo, toda a grandeza dessa influência, numa ocasião importante. Na Europa começava-se a saber o que valia o Brasil. Os franceses quiseram ter sua parte nessa rica
colônia. Conduzidos pelo cavaleiro de Malta, Nicolau de Villegaignon, fundaram um estabelecimento na baía do Rio de Janeiro. Em vez de oprimir os indígenas, Villegaignon tratava-os com muita justiça e generosidade. Os belicosos tamoios que
ocupavam toda a região situada entre "Rio de Janeiro e São Vicente" tornaram-se seus poderosos e úteis aliados.
Os portugueses, a princípio, deram pouca atenção aos empreendimentos desses perigosos vizinhos; mas Nóbrega abriu-lhes, enfim, os olhos, e a corte de Lisboa ordenou ao governador Mem de Sá que
expulsasse os recém-vindos. Os colonos portugueses queriam contemporizar; Nóbrega repeliu com fervor seus tímidos conselhos: a guerra foi resolvida.
Os jesuítas convenceram os habitantes de São Vicente a tomar parte na mesma e levaram víveres a Mem de Sá, bem como canoas e um grande número de brancos, de mamelucos e de indígenas, todos
acostumados a guerrear contra os tupinambás e tamoios, amigos dos franceses. Estes foram derrotados, suas fortificações foram arrasadas, e a tropa portuguesa, levando os canhões do inimigo, retirou-se para Santos, onde o incansável Nóbrega havia
preparado socorros para os feridos e víveres para todos.
Mem de Sá acompanhou sua tropa até Santos. Os jesuítas aproveitaram-se de sua presença ali para se livrarem duma perigosa vizinhança. Expuseram ao governador que a vila de Santo André, construída no
limite das florestas, e das montanhas, achava-se constantemente exposta aos ataques dos selvagens, ao passo que São Paulo, situada em ponto alto, numa região descoberta, pouco tinha a temer de suas agressões.
Mem de Sá ordenou a destruição de Santo André. São Paulo foi elevada a vila no ano de 1560, sob o nome de São Pedro de Piratininga, e os padres da Companhia de Jesus para ali transferiram o colégio
que haviam fundado no litoral. Uma tempestade se formava, entretanto, sobre a capitania de São Vicente. Os tamoios tinham sido derrotados com os seus aliados, os franceses, mas não haviam sido exterminados. Exasperados com as injustiças dos
portugueses e com suas caçadas aos indígenas, para escravizá-los, resolveram vingar-se, atacando a colônia de Martim Afonso. Uns, depois de escalar as montanhas, espalharam-se pela planície de Piratininga; outros, com o auxílio de suas compridas
canoas, que podiam transportar até 150 guerreiros, fizeram irrupções no litoral, devastando as plantações dos colonos cujas casas destruíram e cujos escravos arrebataram.
Tais sucessos atraíram para seu lado tribos, que, a princípio, tinham permanecido neutras, e um considerável corpo de indígenas aliados atacou a vila de São Paulo. O terror apoderou-se logo de todos os habitantes; mas Anchieta retemperou-lhes a
coragem, com suas prédicas. Transformado por alguns instantes em homem de guerra, ele, que sempre fora homem de paz, adotou sábias medidas para a defesa da vila, pôs Tibiriçá à frente dos indígenas fiéis, e os atacantes foram vigorosamente
rechaçados.
A vila de São Paulo mal tinha escapado desse perigo quando perdeu seu mais generoso defensor, Martim Afonso Tibiriçá. Conquanto oriundo de uma raça justamente censurada pela extrema inconstância,
esse nobre chefe nunca cessara de ser o protetor e amigo dos portugueses, sobretudo dos padres jesuítas. Depois de recomendar à sua mulher e seus filhos que jamais se afastassem dos princípios da justiça a eles ensinados, morreu com sentimentos
cristãos, tendo sido chorado amargamente, por toda a colônia, que ainda aguardava novos reforços seus contra os tamoios.
Estes eram muito belicosos e alimentavam implacável ódio contra os portugueses, para que renunciassem a seus projetos de vingança pela derrota sofrida diante de São Paulo. Ligaram-se, assim, a um
grande número de outros indígenas, e a colônia de São Vicente ficaria arrasada, se não fosse a dedicação heroica de Nóbrega e de Anchieta. Esses homens generosos resolveram procurar os tamoios com o intuito de convertê-los a sentimentos pacíficos;
para isso, embarcaram numa canoa, aproximando-se da costa, ocupada pelos selvagens.
Estes mal avistaram a canoa dos jesuítas, contra a mesma avançaram em suas pirogas, para atacá-los; mas, reconhecendo os padres, que vinham como os amigos de Deus e protetores dos indígenas,
baixaram os arcos. Anchieta dirigiu-lhes a palavra na língua da terra, e, aos mesmos se entregando com seu nobre companheiro, conseguiu persuadi-los no sentido de enviarem doze jovens indígenas, como reféns, à Vila de São Vicente.
Inteiramente sós entre os tamoios, os dois religiosos se apressaram em construir uma capela. Os indígenas, vendo celebrar pela primeira vez os santos mistérios, sentiram uma espécie de terror jamais
experimentado em meio dos combates, e começaram a considerar seus hóspedes como seres sobrenaturais. A santidade dos dois padres excitava-lhes o respeito e a admiração, enquanto que as manifestações de dedicação e de benevolência, que dos mesmos
continuadamente recebiam, inspiravam-lhes um afeto quase filial.
Durante o tempo em que os dois jesuítas permaneceram entre os tamoios, submetidos aos caprichos muitas vezes cruéis desses homens-crianças, expostos a todos os perigos, suportando mil fadigas,
sofrendo fome e sede, o governo negociava para obter a paz. Antes de concluí-la, manifestou, porém, o desejo de se entender com Nóbrega e seu companheiro; mas os selvagens só deixaram partir o primeiro, retendo Anchieta. Foi então que este, muito
jovem ainda, prometeu à Virgem compor um poema em sua honra, se conservasse sua virtude, exposta a contínuos ataques. Não tendo tinta, nem papel, traçava sobre a areia os versos que compunha, decorava-os escrevendo-os mais tarde, quando, depois de
cinco meses de negociações, a paz o restituiu, enfim, à sua querida Piratininga.
Enquanto esses acontecimentos se desenrolavam na capitania de São Vicente, os franceses continuavam a visitar as costas do Brasil, onde traficavam com os tamoios, cuja estima souberam conquistar; e,
reavivando o ódio desses selvagens contra os portugueses, fortificaram-se pela segunda vez na baía do Rio de Janeiro. A corte de Portugal querendo, enfim, desembaraçar-se desses perigosos intrusos, fez seguir para o Brasil uma frota comandada por
Estácio de Sá, sobrinho do governador-geral. Estácio chegou à Bahia em 1564 e, depois de ter explorado a costa, receou não dispor de forças suficientes para atacar o inimigo. Esperando obter alguns reforços em São Vicente, para ali seguiu, mas
encontrou os habitantes da região pouco dispostos a secundá-lo em sua empresa.
Sabedor da influência que os jesuítas sobre eles exerciam, Estácio recorreu a Nóbrega, o qual, com suas prédicas eloquentes, reanimou o ardor dos paulistas. Anchieta, por sua vez, convenceu 800
homens a segui-lo, e com os mesmos embarcou em auxílio do sobrinho do governador-geral. Estácio de Sá, com esse reforço e com o auxílio valoroso de Anchieta, venceu os franceses e os tamoios, em combates, expulsando-os para sempre da baía do Rio de
Janeiro, em cujas margens, no ano de 1567, foi fundada, com o nome de São Sebastião, a atual capital do império do Brasil.
Os paulistas aproveitaram-se da paz para desenvolver seu comércio, passando a traficar com os ingleses; e trataram da agricultura com mais cuidado, favorecidos pelo clima temperado de suas terras, clima que lhes permitia obter os produtos coloniais
e os frutos europeus. Essa prosperidade não devia ser, infelizmente, de mui longa duração. Em 1581 o reino de Portugal foi reunido à monarquia espanhola, e o Brasil seguiu logo o destino da metrópole, motivo pelo qual tornaram-se seus inimigos os
inimigos da Espanha. O rei deste país – Filipe II – estava, então, em guerra com a Inglaterra, cujos corsários passaram a atacar e de vastar as costas brasileiras.
O famoso marinheiro Thomas Cavendish, ou Cadenish, que, numa primeira expedição, espalhara o terror pela costa da América Ocidental, apresentou-se, em 25 de agosto de 1591, à altura de São Vicente, destacando dois dos navios de sua frota para se
apoderarem de Santos. Quando Coke, o vice-almirante inglês, desembarcou na cidade, todos os seus habitantes assistiam ao ofício divino; foram, então, sitiados, feitos prisioneiros e condenados a um elevadíssimo resgate.
A prudência mais rudimentar aconselhava aos corsários que recebessem o resgate sem perda de tempo; eles, entretanto, nem pensaram nisso; entregaram-se, descuidados, à libertinagem. Os colonos,
aproveitando-se de tal situação, fugiram para as terras do interior, carregando o que de mais precioso possuíam. Oito dias depois, o próprio Cavendish entrou em Santos, não encontrando nessa vila nem habitantes, nem provisões. Forçado a bater em
retirada, incendiou, por vingança, a vila de São Vicente.
Depois dessa desastrosa aventura, rumou para o estreito de Magalhães, mas uma terrível borrasca desviou seu navio do rastro da frota, levando-o às proximidades de Santos. Sem víveres, fez
desembarcar, sob seu co mando pessoal, vinte homens, para abastecer-se, de armas em punho. Os colonos, juntamente com os indígenas, percebendo-os, sobre eles investiram, matando dezoito, e entraram triunfantes na vila, empunhando, como troféus, as
cabeças dos vencidos. Cavendish, furioso com essa derrota, pôs-se a devastar as costas do Brasil, mas, corajosamente rechaçado pelos habitantes da capitania do Espírito Santo, morreu de pesar, antes de chegar, de regresso, à sua pátria.
Nessa época, os limites da capitania de São Vicente, que muito variaram desde sua origem até nossos dias, não eram já os mesmos do tempo de Martim Afonso; apenas quarenta anos tinham decorrido, e já
se destacara uma vasta porção do território dessa capitania, a qual foi anexada à capitania do Rio de Janeiro, recentemente criada.
Quando em 1573 ou 1574 o governo geral do Brasil foi dividido em dois – o da Bahia e o do Rio de Janeiro –, a capitania de São Vicente passou a ser um anexo deste último. Os descendentes de Martim
Afonso conservaram a propriedade da terra, mas eram obrigados a prestar fé e menagem aos governadores do Rio de Janeiro; continuaram, entretanto, com a faculdade de nomear os chefes militares e magistrados (capitães-mores e ouvidores), e as vilas
continuaram a ser administradas por uma câmara municipal e por juízes ordinários, eleitos pelo povo, segundo os usos e costumes de Portugal.
Os vicentistas exprobavam continuadamente os governadores do Rio de Janeiro e, posteriormente, os superintendentes das minas de ouro, por entravarem a autoridade de seus magistrados, mas é lícito
crer que suas queixas não eram sempre isentas de exageros e de injustiças. Orgulhosos por força da nobreza de seus ascendentes, animados pelo espírito de liberdade selvagem que caracteriza a raça americana, espírito herdado do sangue materno,
acostumados a ser obedecidos por numerosos escravos, passando grande parte da vida nos desertos de toda a vigilância, os paulistas nunca foram um povo submisso. Sob a dominação espanhola, tornaram-se quase independentes.
A colônia não estava ainda completamente fundada, quando iniciaram a redução dos selvagens à escravidão, e prosseguiram sempre nessa prática, pouco se preocupando com os éditos enviados de Lisboa a
favor desses infortunados nem com as exortações dos padres jesuítas. Mas os indígenas não são como os negros: tão imprevidentes como estes últimos, só se preocupam com o presente e sentem mais profundamente a miséria; resignam-se menos facilmente,
são mais apegados à liberdade e não têm o mesmo vigor para suportar os rudes trabalhos da escravidão.
Os paulistas dizimaram em pouco tempo as tribos mais vizinhas, motivo pelo qual levaram para mais longe as caçadas que faziam aos selvagens, como se os mesmos fossem feras bravias, e, assim,
tornaram-se os fornecedores de escravos aos habitantes do Rio de Janeiro na época em que estes últimos se viram forçados, pela tomada de Angola aos portugueses, a renunciar, momentaneamente, ao tráfico dos negros.
O interior do Brasil não foi sempre cortado por estradas e semeado de habitações hospitaleiras. Tempo houve em que não havia nenhuma cabana no mesmo, nenhum vestígio de cultura, só havendo as feras
que lhe disputavam o domínio. Os paulistas palmilharam-no em todos os sentidos. Esses audaciosos aventureiros, como se verá mais para diante, pormenorizadamente, penetraram por diversas vezes até o Paraguai; descobriram a província do Piauí, as
minas de Sabará e de Paracatu; entraram nas vastas solidões de Cuiabá e Goiás, percorreram a província do Rio Grande do Sul; chegaram, no norte do Brasil, até o Maranhão e o rio Amazonas; e, tendo transposto a cordilheira do Peru, atacaram os
espanhóis no centro de suas possessões.
Quando se sabem por experiência própria, quantas fadigas, privações, perigos ainda hoje aguardam o viajante que se aventura nessas longínquas regiões e se toma conhecimento do itinerário das
intermináveis incursões dos antigos paulistas, sente-se uma espécie de assombro, tem-se a impressão de que esses homens pertenciam a uma raça de gigantes. São Paulo não era uma vasta cidade que, como as antigas cidades da Grécia, espalhasse o
excesso de população por demais considerável para as regiões desertas. É de se presumir que habitações rurais muito numerosas tinham-se erguido na planície de Piratininga; mas, em fins do século XVII, a própria capital da capitania de São Vicente
contava unicamente 700 habitantes.
Em uma de suas expedições contra o Paraguai, os paulistas não eram menos de 800 a 900; mas, ao que parece, seus bandos errantes não se compunham, geralmente, de grande número de homens. Qualquer
personagem notável da terra, conhecido pela coragem e pela perseverança, anunciava o desejo de fazer uma expedição longínqua, imediatamente alguns parentes se lhe reuniam, bem como mamalucos, vagabundos audaciosos e até estrangeiros vinham
engrossar as fileiras do bando assim constituído. Punham-se, então, em marcha, munidos de chumbo e de pólvora, uns levando um fuzil e outros um arco e flechas, todos armados de comprida faca, de que se serviam tanto para a defesa pessoal como para
cortar os galhos das árvores e esfolar os animais selvagens.
Iam descalços, com um cinturão e couro cru à volta dos rins e, na cabeça, um chapéu de palha de abas largas, sem outra vestimenta além de uma braga de tela grosseira de algodão e uma camisa curta,
com as fraldas por fora das bragas; algumas vezes traziam uma couraça e coxotes de pele de veado (gibão e perneiras). Cada um levava um saco de couro a tiracolo, com suas provisões. Um chifre de boi servia de caneca e uma cuia ou cabaça
partida ao meio servia de prato.
A caça e a pesca forneciam alimentação abundante à tropa, e, ao sul da província, eram encontrados, como delicada iguaria, os frutos dos pinheiros-do-brasil (araucaria brasiliensis); ao norte
eram encontrados outros frutos e os brotos saborosos de algumas palmeiras, bem como raízes comestíveis e mel selvagem. Quando os corredores de desertos (sertanistas) calculavam só regressar depois de decorridos alguns anos, levavam grãos de
cereais, de milho, principalmente, que semeavam, prosseguindo sua marcha, mas, voltando, passados alguns meses, para fazerem a colheita.
Nada conseguia deter esses homens intrépidos - nem a imensidade dos campos ou terras desertas, nem as sombrias florestas labirintadas de cipós e de espinhos, nem as penedias escarpadas; nada os
assustava - nem as flechas dos selvagens, nem a ferocidade dos jaguares, nem o veneno mortal dos répteis. Pela força ou pela astúcia, aprisionavam os indígenas, algemavam-nos e os conduziam, por centenas, ao mercado de São Paulo. Desgraçados os
infelizes que resistissem! Eram barbaramente exterminados. E, assim, tribos inteiras desapareciam, como a erva dos campos desaparece, à medida que o fogo caminha, consumindo-a.
Nessas expedições, os mamalucos se distinguiam, sobretudo, por sua crueldade; procuravam, sem dúvida, assim agindo, fazer esquecer que, pelo lado materno, provinham da raça proscrita.
Enquanto os paulistas, percorrendo o interior do Brasil, só visavam a caça aos indígenas, não se estabeleceram fora de sua terra; mas, em fins do século XVI, importante notícia espalhou-se, de
repente, entre eles: o ouro dos sertões. A partir desse momento, mudança notável se operou.
Preciosas minas existiam, realmente, bem longe do litoral. A ambição e o amor do maravilhoso fizeram exagerar a importância dessas minas. Desde então só se sonhou com riquezas. Eram rios
transportando palhetas de ouro, montanhas guardando em seu seio tesouros inesgotáveis; era preciso descobrir a cidade de Manoa, onde, por toda a parte, resplandecia o metal objeto de tantos desejos; era necessário descobrir a Lagoa do Pão
Dourado, que prometia, a quem a encontrasse, uma fortuna capaz de despertar a inveja dos mais poderosos potentados. Homens de todas as condições, pobres e ricos, velhos e jovens, brancos e mestiços, abandonaram em massa seus lares, suas
mulheres e seus filhos, internando-se pelas vastas solidões do Brasil.
Conformavam-se, tanto quanto possível, com os misteriosos e lacônicos roteiros dos mais antigos sertanistas; em toda a parte eram pesquisadas a areia dos ribeirões e a terra das montanhas, e, quando
encontravam algum terreno aurífero, construíam barracas em sua vizinhança, a fim de explorá-lo. Essas espécies de acampamento (arraiais) tornavam-se pequenas povoações, depois vilas; e foi assim que os paulistas começaram a povoar o interior
das terras, incorporando à monarquia regiões mais vastas do que muitos impérios.
Mas, enquanto esses homens corajosos lançavam, longe do seu torrão natal, os primeiros fundamentos de grande número de aldeias, e que, para recompensá-los, os soberanos de Portugal lhes conferiam honrosos privilégios, seus campos deixavam de ser
cultivados, seu gado se dispersava, suas habitações não eram mais reparadas, a discórdia explodia entre as famílias, sua cidade natal caía em decadência; e foi mister considerável espaço de tempo para que a mesma retomasse algum esplendor.
Forneceremos um pouco mais para adiante vários pormenores sobre as principais expedições dos paulistas.
Esses homens eram os únicos que se espalhavam pelos desertos; os jesuítas percorriam-nos também, mas com um fim bem diverso: procuravam livrar alguns indígenas da barbaria cúpida dos mamalucos. Sem
armas, mas empunhando a cruz do Salvador é que se apresentavam diante deles; não os algemavam – sujeitavam-nos com palavras de consolação, de paz e de amor. Furiosos por ver que lhes eram arrebatadas algumas de suas vítimas, os paulistas resolveram
vingar-se, indo levar a guerra ao Paraguai, centro do poder dos jesuítas.
Animava-os, também, um outro fim: movido pelo ódio contra os espanhóis, ódio posteriormente herdado pelos habitantes do Rio Grande do Sul, pretendiam expulsá-los das terras que os mesmos ocupavam,
impedindo-os de se radicar em regiões que consideravam pertencentes ao Brasil.
As possessões espanholas da América e as colônias portuguesas dependiam, é verdade, do mesmo rei, mas nenhuma fusão se operara, e, como já vimos, os paulistas, tornados súditos dos soberanos da
Espanha, pouco se importavam em desagradar seus novos senhores.
Foi no ano de 1638 que os paulistas começaram a atacar os estabelecimentos dos jesuítas espanhóis, penetrando em Guaíra, região limítrofe de seu país pelo lado do nordeste; mas, não sendo,
provavelmente, muito numerosos, foram obrigados a bater em retirada.
Entretanto, muito perseverantes e intrépidos para desanimarem com uma primeira derrota, prepararam, secretamente, nova expedição. Novecentos homens brancos e mamalucos reúnem-se, acompanhados de
2.000 indígenas. Essa tropa avançou por desertos quase desconhecidos, atravessou vários grandes rios, transpôs mil obstáculos e, pela segunda vez, alcançou Guaíra.
O reduto de Santo Antônio foi imediatamente atacado e saqueado, e seus habitantes aprisionados e acorrentados. O jesuíta Mola arrojou-se aos pés de Antônio Raposo – comandante dos mamalucos –
conjurando-o, por tudo o que lhe fosse mais sagrado, poupasse seus caros neófitos. "Muitas vezes", diz um historiador, "esse padre desarmara antropófagos com súplicas e lágrimas; mas percebeu nessa ocasião que cristãos, calcando aos pés as leis
divinas e humanas, tinham o coração mais duro do que os infiéis e os bárbaros." Só obteve respostas tão cruéis quanto ímpias.
Depois de devastarem o reduto de Santo Antônio, os paulistas destruíram, ainda, três outros redutos e retiraram-se, conduzindo, como escravos, avultado número de indígenas. Vendo seus discípulos
acorrentados como se fossem vis criminosos, o padre Maceta correu a abraçá-los, tendo sido recebido com pancadas e ameaçado de morte. Não recuou, porém. Juntamente com o padre Mansilla, tomou a resolução de acompanhar os prisioneiros até o Brasil,
a fim de ali advogar a causa de seus infelizes discípulos.
Caminhavam os dois padres a alguma distância do bando dos paulistas, alimentando-se com raízes e frutas silvestres; e todas as vezes que algum dos cativos, prostrado pela fadiga e pelos sofrimentos,
era abandonado pelos seus aprisionadores, os dois heroicos missionários prodigalizavam-lhes seus cuidados, consolavam-no ternamente e mostravam-lhe o céu, auxiliando-o a morrer.
Chegam, finalmente, a São Paulo. Os indígenas são repartidos entre seus perseguidores, pelos quais são vendidos e, logo, dispersados, não só pela capitania de São Paulo, como pela do Rio de Janeiro. É em vão que os padres Mansilla e Maceta fazem
ouvir a favor desses infelizes a voz da humanidade, da justiça e da religião; não são ouvidos. Seguem, então, para o Rio de Janeiro, onde também não são atendidos.
Não desanimam: embarcam para a Bahia, onde imploram a compaixão do governador-geral. Este os recebe com benevolência, mas, todo ocupado com a guerra que estalara entre os holandeses e os habitantes
do Brasil, pouco interesse tomou pela sorte dos indígenas, nada podendo fazer em prol de seus defensores. De regresso a São Paulo, os dois missionários foram atirados numa prisão. Postos mais tarde em liberdade, voltaram para Guaíra, prostrados de
dor, após terem mostrado, inutilmente, quanto a caridade cristã pode inspirar de devotamento e de coragem.
Quando faziam caça aos selvagens disseminados no seio das florestas, os paulistas só podiam agarrar um pequeno número de cada vez; nos redutos dos jesuítas, ao contrário, encontravam reunida uma
população considerável; e, como o governo espanhol não permitia o uso de armas de fogo aos indígenas, estes, por assim dizer, nenhuma resistência ofereciam. Os paulistas só tinham o trabalho de acorrentá-los.
Apenas esses incansáveis aventureiros chegavam das regiões que tantos escravos lhes forneciam, já se impacientavam para às mesmas voltar. É assim que preparavam uma nova expedição, e, penetrando
mais uma vez pelos desertos, chegaram, inopinadamente, ao reduto de São Paulo, saquearam-no, destruíram-no, acorrentaram seus habitantes e exterminaram, sucessivamente, vários outros redutos. Além das aldeias fundadas pelos jesuítas, existiam
ainda, em Guaíra, duas vilas – Ciudad Real e Vila Rica –, fundadas pelos espanhóis e habitadas por seus descendentes.
Os indígenas que conseguiram escapar aos paulistas refugiaram-se em Vila Rica; mas os habitantes dessa localidade reduziram-nos a escravos, como o faziam os mamalucos. Os jesuítas apresentaram em
vão queixa aos magistrados locais, não obtendo justiça, pelo que delegaram a um de seus companheiros o encargo de implorar socorro ao governador de Assunção. Deste receberam, apenas, uma resposta insultante.
Dois dos redutos de Guaíra estavam ainda intactos – o de Santo Inácio e o de Loreto. Eram os mais antigos e em nada eram inferiores às melhores vilas do Paraguai. Possuíam belas igrejas e seus
habitantes, desde muito tempo civilizados, tinham-se tornado excelentes agricultores. Os jesuítas, ao se verem abandonados pelos espanhóis, seus compatriotas, e não duvidando de que os moradores de Loreto e de Santo Inácio caíssem, dentro em pouco,
como os dos outros redutos, nas mãos do inimigo, induziram-nos a fugir.
Essas pobres criaturas, guiadas por seus pastores, cheias de confiança na proteção dos santos, cujas imagens veneradas transportavam, abandonaram, sem queixas, suas moradas, os templos em que
elevavam diariamente suas orações a Deus, os campos que lhes forneciam abundantes colheitas. Perseguidos pelos mamalucos, atravessaram o Paraná; e, depois de terem sido dizimados pela fome e por terríveis epidemias, foram formar, muito mais longe,
dois novos redutos, aos quais deram os mesmos nomes tão caros de Santo Inácio e de Loreto.
Os paulistas, entretanto, desesperados por verem arrebatada uma presa que devia contribuir para enriquecê-los, e não encontrando mais redutos para devastar, nem indígenas para escravizar,
investiram, raivosamente, contra as duas já referidas povoações espanholas de Vila Rica e Ciudad Real, saqueando-as e destruindo-as completamente; e, como não pudessem reduzir seus habitantes a escravos, pois pertenciam à mesma raça deles,
dispersaram-nos. Foram, dessa forma, punidos esses últimos pelo seu covarde egoísmo. Se eles, em vez de se aproveitar, como acima já referimos, da desgraça dos indígenas, aos mesmos se reunindo para repelirem os bárbaros estrangeiros invasores de
suas terras, não morreriam no exílio, e Ciudad Real e Vila Rica estariam, ainda hoje, florescentes. Desde essa ocasião Guaíra ficou deserta.
Se bem que a fuga dos habitantes de Santo Inácio e Loreto frustrasse as esperanças dos paulistas, conseguiram eles grande número de escravos aprisionados nos redutos que haviam destruído no começo de sua expedição. Mas os indígenas não resistiam
por muito tempo em estado de cativeiro, principal mente pelos rudes trabalhos a que eram obrigados, sendo necessário renová-los continuamente.
Os paulistas, tendo despovoado Guaíra, foram à cata de escravos em terras mais longínquas e se apresentaram sucessivamente, nos pagos dos indígenas itatines, nas missões do Uruguai. Davam, em toda
parte, provas da maior intrepidez; por toda a parte cometiam, também, as mais atrozes ações – devastavam as aldeias habitadas pelos indígenas, e, para se apoderarem desses infelizes, era-lhes indiferente em pregar a força ou recorrer à perfídia.
Em 1632, numerosos paulistas, seguidos por um grande número de tupis, seus aliados, apresentaram-se, inopinadamente, diante de São José, reduto dos itatines. Como estivesse ausente o jesuíta que o dirigia, falaram ao corregedor indígena, e,
persuadindo-o de que tinham vindo para vingar os habitantes da localidade dos ataques dos selvagens, convidaram-no a ir até seus acampamentos com seus guerreiros; ali foram todos aprisionados e algemados. Não se contentaram os paulistas com
destruir a aldeia de São José; devastaram e depredaram ainda outras três, apesar da corajosa resistência de alguns neófitos.
No mesmo ano, os paulistas tiveram a ousadia de chegar até as missões do Paraná; mas, logo que houve notícia de sua aproximação, os dois redutos mais próximos da fronteira foram evacuados; temendo
avançar por terreno que lhes era inteiramente desconhecido, bateram em retirada. Aconteceu-lhes sofrer algumas derrotas; entretanto, não desanimavam; tinham desistido de cultivar suas terras, de cuidar de seu gado, renunciando às doçuras do lar – a
caça aos indígenas constituía sua única ocupação; era isso, para eles, uma verdadeira paixão, sendo-lhes também copiosa fonte de riquezas. Não somente vendiam seus prisioneiros aos habitantes do Rio de Janeiro e circunvizinhanças, como
estabeleceram, para tal fim, um mercado de escravos no sul do Brasil, de sorte que era mister abastecer esse mercado.
Se os espanhóis, como já tivemos oportunidade de relatar, se tivessem aliado aos indígenas de seus redutos, teriam conseguido, sem dúvida, expulsar os paulistas para sempre; mas, faltava-lhes a
coragem de seus antepassados, e não eram mais favoráveis à liberdade dos indígenas do que os próprios mamalucos.
Sob a denominação de comandos, tinha sido dado um certo número de indígenas aos primeiros espanhóis estabelecidos na região, e, não obstante as sábias e prudentes ordenações dos reis da
Espanha, esses infelizes foram logo tratados como escravos. Os habitantes do Paraguai quiseram reduzir a comandos os indígenas que se achavam debaixo da direção dos padres da Companhia de Jesus, mas estes defenderam corajosamente os seus
neófitos; daí o ódio que os espanhóis lhes manifestaram, ódio que não era menos intenso que os dos paulistas, se bem que o externassem com menos franqueza.
Em muitíssimas ocasiões os jesuítas solicitaram o socorro dos governadores do Paraguai; quase nunca foram ou idos. Recusava-se, também, o fornecimento de armas aos indígenas, o que os incapacitava
de se defender dos mamalucos, sempre bem armados. Na maioria das vezes bastava a estes últimos apresentar-se diante dos redutos, para aprisionarem milhares de indígenas, que tocavam em seguida à frente de seu bando, como se fossem uma ponta de
gado.
O marquês de Grimaldi assevera que, de 1620 a 1640, os habitantes de São Paulo se apoderaram de oitenta mil cabeças de gado pertencentes aos indígenas guaranis e destruíram vinte e dois redutos,
número elevado a trinta e um por Gaspar da Madre de Deus e a trinta e dois por Manuel Aires do Casal, não se podendo acoimar nem um nem outro de exagero ou parcialidade.
Os padres da Companhia de Jesus, vendo que na região onde estavam estabelecidos os seus neófitos não podiam os mesmos escapar a seus bárbaros inimigos, reuniam os homens, as mulheres e as crianças que restavam de seus primeiros redutos,
decidindo-os, embora a muito custo, a se expatriarem, sempre conduzindo-os para a região entre o Paraná e o Uruguai, no ponto em que esses dois grandes rios se aproximam um do outro.
Ali, sem dúvida, os neófitos estariam poderosamente protegidos pela natureza, contra as investidas dos paulistas. Os jesuítas, porém, que conheciam a intrepidez destes e a sua paixão pela caça aos
indígenas, quiseram se prevenir ainda com outros meios de proteção. Seu provincial enviou Díaz Tano a Roma e Ruiz de Montoya a Madri. Cada um desses religiosos, uma vez na Europa, pintou com as cores mais sombrias a dolorosa situação dos indígenas
convertidos, conseguindo, sem grandes esforços, inspirar compaixão aos que os escutavam.
O rei da Espanha declarou os indígenas dos redutos vassalos imediatos da coroa; proibiu que fossem submetidos a certos trabalhos, autorizou os jesuítas a lhes fornecer armas de fogo e renovou os
decretos já expedidos a favor dos mesmos, dando liberdade aos que tinham sido reduzidos à escravidão.
Díaz Tano foi tão bem acolhido em Roma, como Montoya o foi em Madri. O papa Urbano VIII cumulou-o de favores, bem como a seus caros protegidos e aos seus companheiros de catequese; e, cheio de
indignação, expediu um breve pelo qual ameaçava de castigos e cóleras divinas os ímpios que atentassem contra a liberdade dos indígenas, quer dos convertidos, quer dos infiéis.
O padre Tano, portador desse breve papal, embarcou em Lisboa com destino a Buenos Aires; mas ventos contrários obrigaram-no a fazer escala pelo Rio de Janeiro. Apenas chegado ao Rio, o breve do sumo pontífice foi lido, ali, na igreja dos jesuítas.
Não se cogitara que vários habitantes do Rio de Janeiro mantinham íntimas relações com a capitania de São Vicente, os quais amotinaram a população, que invadiu o colégio dos padres da Companhia de Jesus, arrombando as portas desse estabelecimento.
Tano e seus companheiros trazidos da Espanha seriam massacrados, se não fosse a oportuna e prudente intervenção do governador Salvador Correia de Sá e Benevides, que convocou uma reunião para o dia
seguinte, a fim de ser discutido o assunto com mais calma. A reunião realizou-se, de acordo com os conselhos de Salvador Correia, recorreu-se do breve do papa ao próprio papa.
O padre Díaz Tano e seus companheiros abandonaram, imediatamente, o Rio de Janeiro, mas uma borrasca mais terrível os aguardava em Santos. Apenas o vigário-geral publicou, ali, o breve papal,
sediciosos contra ele avançaram, arrojaram-no por terra e puseram-lhe a ponta de uma espada à garganta, ameaçando-o de morte, se não revogasse a excomunhão lançada contra um deles. O vigário manteve-se inflexível e sua coragem desarmou os
turbulentos.
O superior dos jesuítas, ouvindo o barulho feito pelos amotinados, diante deles se apresentou, revestido com os ornamentos sacerdotais, e, empunhando o cibório, fez-lhes um patético sermão.
Alguns se prosternaram; outros se conservaram de pé, declarando que adoravam sinceramente o corpo de Jesus Cristo, mas que não poderiam sofrer a perda de seus escravos que constituíam a sua única riqueza. Um deles gritou no meio da multidão que se
matasse o superior dos jesuítas, e não se pode avaliar a que excessos poderiam chegar esses furiosos, se alguns religiosos de uma outra ordem não os persuadissem, com sutilezas, que o breve papal não tinha para eles nenhum valor, uma vez que
recusassem cumpri-lo.
Os habitantes de São Paulo sabiam que o breve do papa fora expedido contra eles especialmente; sua vingança não se fez esperar. Todo o povo paulista sublevou-se: todas as vilas da província foram concitadas a enviar delegados a uma assembleia
geral, e, em virtude de deliberação por essa assembleia tomada, por unanimidade, a 13 de julho de 1640, os jesuítas foram expulsos de todos os seus colégios. Sessenta anos antes, os paulistas não queriam outros pastores que não fossem esses
religiosos.
Enquanto esses fatos ocorriam na América, uma revolução explodira em Lisboa. O duque de Bragança foi proclamado rei, sob o nome de d. João IV, readquirindo o povo português sua nacionalidade. A
notícia desse acontecimento suscitou no Brasil o mais vivo entusiasmo, menos, entretanto, na capitania de São Vicente. Sob o domínio dos reis da Espanha, os paulistas tinham se tornado, como já me referi, quase independentes.
Já concebiam, então, a ideia de se aproveitar do primeiro movimento de agitação e de indecisão para romperem os frágeis laços que os prendiam à dominação europeia. Entre eles se estabelecera um
regular número de espanhóis, os quais vendo, sem dúvida, que iam ser obrigados a prestar obediência ao soberano de Portugal, estimularam os projetos dos paulistas no sentido de conquistarem a independência. Entre os filhos desses espanhóis havia
um, de origem nobre, homem poderoso e respeitado – Amador Bueno da Ribeira – que já havia ocupado cargos de muita importância e cuja família era tão rica quanto numerosa.
Os paulistas quiseram pô-lo à sua frente. Reuniram-se diante de sua casa e proclamaram-no seu rei. Bueno, entretanto, fiel a seus deveres, recusou com perseverança a coroa que lhe ofereciam e
conjurou o povo a reconhecer como seu soberano aquele cujos direitos pareciam incontestáveis a todos os outros brasileiros. Mas o povo instou, insistiu, chegando até a ameaçá-lo de morte, no caso de não querer aceitar o trono.
Bueno, então, empunhando uma espada, escapou pela porta do jardim de sua residência, fugindo precipitadamente para o convento dos beneditinos. A turba o perseguia, gritando – Viva Amador Bueno,
nosso rei! Mas ele, sempre inflexível, persistia em responder – Viva d. João IV, por quem estou pronto a derramar meu sangue! E, chegando ao convento, entrou e fechou as portas. O abade apresentou-se ao povo, com seus frades, juntando-se-lhes
algumas pessoas gradas. Falou-se ao povo e, no mesmo dia, d. João IV foi proclamado rei, sendo seu nome aclamado em todas as ruas de São Paulo.
A volubilidade que os habitantes da vila então patentearam, demonstra o quanto Amador Bueno obrou com prudência recusando a coroa. São Paulo, entretanto, era de tão fácil defesa e seus habitantes
eram tão intrépidos, que, se o chefe que escolheram tivesse ambição, os paulistas, como disse um historiador, se tornariam, em pouco tempo, um povo independente, quiçá o mais poderoso e formidável da América do Sul.
Apenas a ordem começou a reinar na vila de São Paulo, seus habitantes escreveram a seu novo soberano, a fim de se justificarem da expulsão dos jesuítas; mas a estranha representação que endereçaram à metrópole não fez mais do que produzir no
espírito do governo português efeito contrário ao que seus autores aguardavam. Jorge de Mascarenhas, marquês de Montalvão, então vice-rei do Brasil, refutou, com moderação, a representação dos paulistas; e, por um decreto do mês de julho de 1643, o
rei de Portugal ordenou que todos os bens dos jesuítas de São Paulo lhes fossem restituídos.
Os paulistas ganharam tempo: o decreto não foi executado e, apesar de novas ordens, datadas de 1647, foi unicamente em 1653 que, depois de obrigados a se sujeitarem a condições tão duras quanto
humilhantes, os padres da Companhia de Jesus readquiriram seus mosteiros e suas propriedades.
Depois da expulsão desses religiosos, os paulistas não tiveram mais receio de serem censurados continuamente pela sua conduta para com os indígenas, e a guerra sobrevinda entre Espanha e Portugal, por ocasião da ascensão de d. João IV ao trono
português, deu-lhes o ensejo de novos ataques contra os redutos do Paraguai. Não podiam mais ser considerados bandidos – eram guerreiros que pegavam em armas para a defesa do soberano e dos interesses de seu país.
Um grupo considerável de paulistas, com os tupis, seus aliados, investiu contra os redutos do Paraná. Ali chegando, perceberam, ao longe, uma tropa de neófitos e, pensando que, como outrora, iam dos
mesmos facilmente apoderar-se, para dentro em pouco vendê-los no merca do de escravos de São Paulo, tiveram desagradável surpresa, pois, valendo-se da permissão outorgada pelo rei da Espanha, os recém-convertidos estavam armados.
O canhão ribombou e um grande número de paulistas caiu; os demais, surpreendidos com uma defesa tão inesperada, fugiram, e os indígenas aliados desertaram. Desde essa época os paulistas devastaram
ainda os itatines e penetraram, mesmo, até o Chaco: mas não ousaram mais atacar os redutos do Paraná, os quais, durante muitos anos, gozaram de profunda paz.
Como os paulistas, apesar de algumas raras derrotas, continuavam com ardor a caçar os indígenas, era fácil indispô-los contra qualquer de seus magistrados que se pretendesse fazer perder o conceito geral: bastava assoalhar ser o mesmo favorável à
liberdade dos indígenas. Foi esse o meio empregado pelos habitantes do Rio de Janeiro para impelirem seus vizinhos a uma revolta projetada contra o prudente governador Salvador Correia de Sá e Benevides. Este partiu, no mês de novembro, para a vila
de Santos, de onde devia ir inspecionar as minas de Paranaguá.
Do Rio de Janeiro escreveram aos paulistas que o governador era, certamente, inimigo dos mesmos, por ser amigo declarado dos jesuítas; e que, como sabia perfeitamente a língua dos indígenas, armaria
os escravos contra seus senhores, motivo pelo qual os paulistas deveriam abster-se de recebê-lo. Estes, acre ditando nessa intriga, resolveram repelir o governador, se o mesmo se apresentasse em São Paulo. Corre ia soube do fato, mas não se
perturbou, prosseguindo sua viagem para o sul; e, durante o tempo em que permaneceu na região, prestou aos habitantes da mesma todos os serviços que foram possíveis prestar, abrindo estradas, construindo pontes, fazendo colocar embarcações à margem
dos rios, sempre tão cortês, quanto inteligente e corajoso.
Os paulistas que, em meio de suas ações iníquas constantemente cometidas, não eram estranhos aos sentimentos de nobreza e generosidade, ficaram sobremaneira sensibilizados com a nobre conduta de Correia, a quem testemunharam a mais viva gratidão,
oferecendo-lhe, mesmo, seus serviços contra os rebeldes do Rio de Janeiro, que, antes, tinham sabido seduzi-los.
Muito pouco se sabia, no norte do Brasil, sobre o que eram os paulistas, ninguém havia, entretanto, que não tivesse ouvido falar de sua coragem e da habilidade com que faziam a guerra aos indígenas. Os habitantes da província da Bahia, não podendo
livrar-se dos contínuos ataques de formidável tribo dos Guerens, recorreram aos paulistas, apelando para um dos mais famosos chefes desses homens aventureiros, de nome João Amaro. Era mister que esse sertanista reunisse sua gente e que, para
alcançar a Bahia, atravessasse imensas regiões desabitadas, sem caminhos, regiões em que só se podia viver da caça e de frutos silvestres.
Dois anos decorreram, e Amaro não aparecera ainda. Chegou, enfim (1673), com sua tropa de mamalucos exercitada na arte de caçar homens. Levava também indígenas, os quais menos inteligentes do que
seus senhores, eram entretanto, como estes, tão ativos quanto intrépidos e cruéis. Todas as tropas locais reúnem-se à de João Amaro. Partem. Atravessam terras incultas, até então desconhecidas; massacram os indígenas que resistem; enviam milhares
de prisioneiros à Bahia, livrando, assim, por longo tempo, os habitantes dessa cidade do temor dos selvagens.
Os cativos eram tão numerosos que foram vendidos a 30 francos por cabeça; mas os sofrimentos, os maus-tratos, o desespero fizeram-nos perecer tão depressa que os compradores acharam que por um preço
tão vil ainda faziam um péssimo negócio. Além da elevada quantia prometida a João Amaro, deram-lhe uma vasta extensão de terras e o domínio sobre uma vila de que tinha sido o fundador. Mas, para os paulistas, destemidos caçadores de homens, o descanso
era um suplício: João Amaro vendeu suas terras, voltando para São Paulo, ansioso por encetar novas aventuras.
Pouco mais ou menos na mesma época (1674), um outro chefe de paulistas, não menos famoso do que João Amaro, o destemido Domingos Jorge, partiu de sua vila natal, percorreu os desertos perseguindo os
indígenas, e chegou, depois de incríveis trabalhos e fadigas, à enormíssima distância de sua terra, à região que, atualmente, forma a província do Piauí.
Quando se julgava separado de todo o universo, percebeu Domingos Jorge uma tropa de homens brancos que para ele se dirigia. Era um outro bando de sertanistas penetrando no interior das terras, sob o
comando do português Domingos Afonso, alcunhado Sertão, devido ao seu amor pelos desertos. Os dois chefes sentiram indizível alegria, vendo-se reunidos. Cada um contou ao outro suas aventuras e continuaram juntos a marcha, prestando-se,
reciprocamente, os maiores serviços. Aprisionaram um grande número de indígenas, puseram em fuga um número mais considerável ainda, e, enfim, após longos trabalhos, separaram-se.
Domingos Afonso Sertão tinha vistas mais largas do que seu companheiro: – nas terras que conquistara (era assim que se exprimia então), formou cinquenta fazendas destinadas à criação de gado; deu
algumas delas a particulares, vendeu outras e doou à Companhia de Jesus, para que os respectivos rendimentos fossem empregados em obras pias. Ao passo que Domingos Jorge regressou a São Paulo, levando para ali a maior parte dos indígenas que
aprisionara.
Impossível é narrar com pormenores todas as expedições que os paulistas fizeram, durante cerca de dois séculos, no interior da América do Sul. Uma houve porém, tão gigantesca, que eu me censuraria
se a deixasse passar em silêncio. Sob o comando de Antônio Raposo, sessenta desses homens audaciosos, acompanhados por um bando de indígenas, atravessaram o Brasil do suleste ao noroeste, galgando os Andes e chegando até o Peru, onde o destemido
sertanista bateu os espanhóis em várias pelejas sangrentas.
Depois, retirou-se e rumou para o rio Amazonas ou um dos seus afluentes, aí construindo jangadas que deixou seguir a corrente fluvial, indo desembarcar na pequena vila de Gurupá, cujos habitantes
maravilhados o receberam com generosa hospitalidade. Para regressar com sua tropa ao lar, através dos sertões, teve necessidade de viajar ainda por alguns anos.
Os paulistas tinham como ponto de honra a preocupação de adicionar as terras desertas à monarquia portuguesa; mas, dentro em pouco, fariam uma descoberta mais importante – a das ricas minas de ouro da vasta região que depois recebeu o nome de Minas
Gerais. A história desse descobrimento, se bem que relativamente recente, é cheia de incertezas. Os paulistas, como os gregos dos tempos heróicos, buscavam as aventuras, expunham-se a todos os perigos, batiam-se com coragem, mas não escreviam.
Sabe-se, entretanto, que, em meados do século XVII, um homem empreendedor, chamado Marcos de Azevedo ou de Azeredo, subindo o rio Doce, trouxe de sua viagem amostras de minério de prata e
pedras verdes, consideradas esmeraldas. Azevedo morreu sem que se soubesse onde fizera tal descoberta; entretanto, as imaginações logo se exaltaram, e todos os homens dados a aventuras pretenderam encontrar a montanha das esmeraldas, onde Azevedo
tinha estado, e o próprio governo favoreceu a busca, com auxílios e promessas de recompensas.
É inútil dizer que os paulistas foram os primeiros a se pôr em campo. Entre eles vivia um ancião de oitenta anos de idade que, devido à sua energia e às suas caçadas contra os indígenas, tornara-se
célebre. Ouvindo ele as maravilhosas narrativas feitas sobre a montanha das esmeraldas e sobre as riquezas que a mesma encerrava, seu sangue circulou com mais rapidez, suas forças se reanimaram: julgou sentir ainda os ardores da mo cidade.
Obtendo do governador-geral a permissão de fazer à sua própria custa uma grande expedição a fim de encontrar a tão gabada montanha, empregou a maior parte de sua fortuna em preparativos bem combinados, partindo, em seguida, para os sertões. Era
necessário penetrar num imenso deserto, eriçado de altas montanhas, coberto de gigantescas florestas, percorrido constantemente por tribos bárbaras.
Nada, porém, o deteve. Durante alguns anos explorou uma parte considerável da região atualmente denominada Minas Gerais, onde formou um grande número de estabelecimentos e por fim, quando acreditava
ter atingido o termo de sua viagem, quando alcançou a lagoa famosa chamada Vupabuçu, perto da qual era suposição serem encontradas as esmeraldas de Marcos de Azevedo, a insalubridade do lugar e a desunião que se estabeleceu entre seus companheiros
forçaram-no a tomar o caminho de volta para São Paulo.
Mas não conseguiu atingir o torrão natal, pois, pelo ano de 1678, faleceu, perto do rio das Velhas, deixando a seu genro, Manuel Borba Gato, as ferramentas de mineiro que levava, a pólvora e o
chumbo que ainda lhe restavam, bem como o roteiro de sua acidentada viagem. Teve, entretanto, a glória de ser o descobridor da província mais importante do interior do Brasil.
Foi, ao que parece, Rodrigues Arzão, natural de Taubaté, quem, primeiro, encontrou ouro nessa província. Penetrou pelos desertos de Cuiaté e, no ano de 1695, apresentou três oitavas desse metal à câmara municipal da sede da província do Espírito
Santo. Com o ouro que recolheu foram cunhadas duas medalhas, uma das quais ofereceu a São Paulo. Os habitantes da capitania de São Vicente passaram, desde então, a só pensar nos tesouros de Cuiaté.
Arzão, ao morrer, entregou o roteiro de sua perigosa excursão a seu cunhado Bueno de Cerqueira, o qual, por sua vez, entranhou-se pelo sertão. Durante suas excursões, encontrou um outro bando que caçava indígenas. Os homens que compunham esse bando,
sabendo do objetivo das buscas de Cerqueira, ao mesmo se aliaram, renunciando à caça aos indígenas; assim, todos juntos só cuidaram de descobrir ouro, que foi encontrado com abundância; mas ignoravam como se devia proceder para extraí-lo da terra e
limpá-lo. Em vez de picaretas, utilizavam-se de pedaços de ferro pontiagudos, ou mesmo de pedaços de madeira, e separavam o metal precioso dos corpos estranhos, com auxílio de pratos de estanho.
Em pouco tempo, entrementes, bandos numerosos de homens de todas as idades e de todas as condições saíram de São Paulo e das vilas vizinhas, à cata de ouro. Indiferente lhes era galgar montanhas das mais escarpadas, atravessar rios encachoeirados,
penetrar nas florestas espessas, cheias de cobras venenosas e de feras bravias: a cupidez parecia-lhes re dobrar as forças, afastando-lhes todos os perigos. Esses homens, a princípio, tiveram o bom alvitre de seguir por caminhos diferentes e deixar
os primeiros chegados na posse dos tesouros que descobriam. Dessa forma espalharam-se, em pouco tempo, por toda a superfície da região recentemente descoberta; encontraram ouro por toda a parte, originando-se daí a denominação de Minas Gerais que
deram à região, que se tornou o maior centro de mineração do país.
Os paulistas, no início de suas expedições à cata do ouro, nenhum estabelecimento fixo formaram nas regiões que lhes prodigalizavam riquezas. Quando encontravam ouro em algum lugar, no mesmo levantavam, às pressas, pequenas cabanas, e, quando o
precioso metal se esgotava, iam para diante. Certas localidades, porém, eram tão ricas, que nas mesmas por mais tempo permaneciam, construindo casas e formando aldeias, muitas das quais, com o correr dos tempos tornaram-se cidades.
É devida aos paulistas a fundação de Mariana, Ouro Preto (antiga Vila Rica), Sabará, Caité, Pitangui, São José e muitas outras cidades ainda, que foram, originariamente, arraiais, denominação
que, por força do hábito, ainda se dá a todas as aldeias da província de Minas Gerais. Se bem que os mineradores paulistas adotassem algumas precauções para evitar motivos de dissídios, era difícil que, tendo costumes igualmente rudes, estando
igualmente possuídos da sede de ouro, entregando-se às mesmas buscas para satisfazê-la, vivessem sempre em paz.
Desde que a vila de Taubaté deixara de ser um aldeamento de indígenas, tornou-se rival de São Paulo, de que é vizinha. A descoberta de minas de ouro fez nascer novos ódios entre os habitantes das
duas localidades, e, na ocasião da viagem do autor, seus descendentes conservavam ainda lembranças das contendas de seus antepassados. Dissensões bem graves não tardaram a explodir no território das minas.
A notícia da importante descoberta espalhou-se com extrema rapidez. De todas as partes do Brasil afluíram nuvens de aventureiros, de desertores, de criminosos perseguidos pela Justiça, e, dentro em pouco, esses indivíduos foram seguidos por grande
número de europeus, quase tão perversos como eles. Os paulistas possuíam algumas ideias generosas, das quais não podia compartilhar essa malta de homens sem escrúpulos, escória de Portugal e do Brasil; todavia, não se pode negar que o hábito de
viverem cercados de numerosos escravos, suas caçadas aos indígenas, a licenciosidade a que se entregavam, longe de toda a vigilância, no meio dos desertos, tenha contribuído fortemente para sua corrupção. Todos os vícios, parece, tiveram morada na
região das minas. Todas as paixões desencadearam-se ali; ali se cometeram todos os crimes.
Não viam os paulistas, sem indignação, estrangeiros virem se estabelecer nas ricas terras que consideravam como lhes pertencendo. Orgulhosos de seus numerosos escravos e das riquezas que possuíam, antes mesmo da descoberta das minas, tratavam os
forasteiros recém-chegados com o mais profundo desprezo; faziam-nos passar por contínuos vexames e deram-lhes o ridículo apelido de emboabas, por que, usando os mesmos botas ou perneiras, tinham semelhança, diziam, com certas aves cujas
penas descem até os pés.
Tantas afrontas acabaram revoltando os recém-vindos; dois partidos se formaram – os estrangeiros ou forasteiros puseram à sua frente o português Manuel Nunes Viana, homem poderoso, ativo, dotado de
espírito penetrante, e que, embora cheio de doçura e afabilidade nas circunstâncias normais da vida, sabia, em caso de necessidade, desenvolver grande energia.
Alguns padres que, esquecidos de seus deveres de caridade cristã, tinham-se introduzido na região das minas, atraídos pela sede de ouro, agregaram-se aos forasteiros, instigando-os à revolta. Um
deles, certo padre Antônio de Meneses, da ordem da Trindade, agitador subalterno, levou-os a se apoderarem das armas dos paulistas, por meio de traição e a proclamarem Nunes governador da região. Explodiu a guerra civil. Houve combate nas cercanias
do rio das Velhas. Os forasteiros foram vencedores, mas mancharam a vitória, assassinando um bando de paulistas que acabava de se entregar.
O governador do Rio de Janeiro – d. Francisco Martins de Mascarenhas – sabedor do que ocorria na região das minas, para ali se dirigiu. Nunes foi a seu encontro com um bando considerável de homens armados, causando-lhe admiração pelo seu porte
cheio de ousadia. Numa entrevista havida entre ambos, Nunes afirmou ao governador que nunca deixara de ser um súdito fiel, persuadindo-o de que, se se tinha posto à frente dos sediciosos, foi unicamente para os conter. Diante disso, o governador
regressou ao Rio de Janeiro. Mas, após seu regresso, Nunes passou a exercer, discricionariamente, as funções de governador. Nomeou para os cargos públicos os homens mais capazes que pôde
encontrar, restabeleceu a ordem do melhor modo possível, mas foi objeto da censura das pessoas de bem, por não ter tido sua autoridade origem legítima.
Durante esse tempo, os paulistas se preparavam para a vingança. As mulheres de São Paulo incitavam os homens com furor, acoimando-os de cobardes; os padres, diz o padre Manuel da Fonseca, deslembrados de que a paz é o patrimônio da Igreja, faziam
ressoar nos templos gritos de guerra. Bem armados, os paulistas saíram de São Paulo, marchando para Taubaté, a fim de nesta localidade aliciar recrutas.
Entrementes, chegou de Lisboa ao Rio de Janeiro Antônio de Albuquerque Coelho, para substituir Meneses no cargo de governador (1709). As pessoas mais sensatas da região das minas, embora fazendo
justiça a Manuel Nunes Viana, sentiam quanto sua posição era falsa e perigosa. Enviaram a Albuquerque, secretamente, um religioso que fora seu secretário, a fim de suplicar-lhe que restabelecesse entre eles a autoridade legal. Esse governador era
homem de grande capacidade e atividade.
A fim de inspirar mais confiança aos habitantes da região das minas, à mesma se dirigiu, quase sem séquito. Todos se submeteram à sua autoridade, e, imediatamente, uma anistia geral foi concedida a
todos os rebeldes, com exceção do frade trinitário, de um companheiro de Nunes Viana e do próprio Nunes, que morreu na prisão, mas que, talvez melhor sorte merecesse.
Era mais difícil chamar à ordem os paulistas, sempre exasperados pela traição de que tinham sido vítimas. Albuquerque, entretanto, tentou apaziguá-los, procurando entendimento com o seu pequeno exército, mas, percebendo que os concitava inutilmente
à paz e receoso, quiçá, pela sua própria segurança, julgou mais prudente retirar-se, apressando-se em chegar ao Rio de Janeiro, de onde, secretamente, mandou dizer aos emboabas da região das minas que se apresentassem para receber os paulistas.
Estes, efetivamente, chegaram pouco tempo depois até perto do rio das Mortes e atacaram um pequeno forte onde se tinham refugiado os emboabas. De ambos os lados a luta foi encarniçada; mas os
paulistas distinguiram-se em todos os encontros, pela habilidade com que visavam seus inimigos. Cientes, entretanto, de que numerosos reforços chegavam em socorro destes últimos, aproveitaram-se das trevas da noite para se retirar, e voltaram a São
Paulo, tudo devastando em sua passagem.
Essa expedição acalmou o furor dos paulistas. Albuquerque aproveitou-se habilmente, da feliz disposição em que se encontravam os mesmos. Enviou aos membros da câmara municipal de São Paulo um retrato de d. João V, escrevendo-lhes que, se o rei não
podia visitar sua cidade, queria pelo menos que sua imagem ficasse no meio de seus habitantes, a fim de demonstrar aos mesmos que os tomava sob sua especial proteção. Os paulistas, que eram realmente afeiçoados a seu soberano, ficaram
sensibilizados com a honrosa distinção, e tudo voltou à ordem.
Albuquerque apressou-se em dar conta a seu soberano de tudo o que acabava de acontecer. O ministério português verificando que um só homem não podia governar a imensa região que se estende desde a
embocadura do Paraíba até as colônias espanholas, e do oceano até as nascentes do Arraçuaí, desmembrou da capitania do Rio de Janeiro o território de São Paulo, assim como o das Minas, e destes dois últimos formou-se (9 de novembro de 1709) um
governo distinto.
Albuquerque aprendera a conhecer os paulistas. Foi ele quem à frente dos mesmos foi posto. O governo português concedeu-lhe a liberdade de residir onde julgasse conveniente; preferiu, entretanto, os arraiais de Minas Gerais recentemente fundados,
São Paulo, cuja situação era mais aprazível e onde se observava sempre certa deferência para com as autoridades nomeadas de conformidade com as leis. A vila de São Paulo foi, então, homenageada com o nome de cidade de São Paulo, nome que também foi
dado à nova capitania.
Até essa época a administração da capitania não cessara de ser entravada pelas contendas de disputas dos herdeiros dos dois primeiros donatários. O rei pôs termo (1711) a essas longas querelas,
comprando, do marquês de Cascais as 50 léguas de terras que o mesmo possuía na capitania de São Paulo, como sucessor de Pero Lopes de Sousa. Ficou, então, a autoridade concentrada por inteiro na pessoa do capitão-general de São Paulo, não sendo
mais de temer as agitações oriundas da situação anterior, e a administração começou a seguir marcha regular.
Desde esse momento os paulistas constituíram, quase sempre, um povo submisso e fiel, sem perda, entretanto, do seu gosto pelas aventuras e correrias longínquas, em consequência das quais não cessaram de fazer descobertas, até que não houve mais
nada a descobrir. Fixaram-se os paulistas, primeiramente, nas partes do território de Minas Gerais mais vizinhos da alta cadeia de montanhas que o percorre do norte ao sul. Em pouco tempo, porém, espalharam-se por todo o território da região
mineira, e não se contentaram apenas em procurar ouro: formaram, nos vastos campos marginais do rio São Francisco, estabelecimentos para a criação de gado.
Forasteiros, entretanto, continuaram a chegar a Minas. Em detrimento dos verdadeiros interesses do país, proprietários de terras na Bahia abandonavam seus engenhos de cana e vinham procurar ouro na
região que o fornecia fartamente àqueles que se dessem ao trabalho de procurá-lo. Foram introduzidos, nas Minas, escravos em grande número; e, em pouco tempo, os desertos se cobriam de belas habitações, ricas igrejas e considerável população.
Tornou-se, então, impossível, aos capitães-generais, que residiam em São Paulo, governar a região das Minas, fazendo na mesma respeitar as leis. Foi, por isso, necessário criar para a região um governo separado, recebendo a mesma a denominação de
capitania de Minas Gerais.
A capitania de São Paulo perdeu, assim, uma grande parte de seu território; mas novas descobertas recompensaram-na dessa perda, imediatamente, e com apreciáveis vantagens. Desde o tempo em que os
paulistas tinham começado a percorrer os desertos, alguns dos seus bandos, passando de um rio para outro, atravessando infinidade de catadupas, passando por pantanais insalubres, guerreando constantemente hordas de selvagens, alcançaram o rio
Paraguai e as vastas regiões regadas pelos seus afluentes. No ano de 1718, Antônio Pires de Campos, o mais terrível dos exterminadores de indígenas, subiu o rio Cuiabá, para conquistar a valorosa tribo dos curhipós. Estava ele por de mais
preocupado com a apreensão de escravos, para se interessar por qualquer outra coisa.
A honra de descobrir os tesouros dessas terras que percorria estava reservada a Pascoal Moreira Cabral, outro destemido desbravador dos desertos, que seguia em suas pegadas. Pascoal, subindo o rio
Cuxipó-Mirim, viu grãos de ouro brilharem meio das areias das margens desse rio. Deixando uma parte de seus companheiros no lugar onde fizera esse descobrimento e, considerando-o como o prelúdio de outras descobertas, prosseguiu sua marcha. Não se
enganara. Pouco depois, com efeito, encontrou alguns indígenas que traziam palhetas de ouro como ornamento. Fez pesquisas e, dentro em pouco tempo, conseguiu juntar considerável quantidade desse metal.
Voltou, então, ao lugar onde deixara seus companheiros, os quais não foram tão felizes, embora estivessem todos contentes. Esses homens, cercados de imensas riquezas, tomaram a resolução de só
deixar a região depois que a mesma estivesse esgotada. Construíram, então, cabanas nas margens dos rios e semearam o resto de grãos de cereais que ainda possuíam. Não tinham transportado ferramentas – serviam-se das mãos para cavar a terra. A
ambição deu-lhes força e coragem.
Um outro bando, que percorria também os desertos, foi levado, por acaso, ao local em que acampara o primeiro. Era constituído também por paulistas, que se reuniram a Pascoal e seus companheiros, perfazendo, juntos, um grupo de vinte e duas pessoas.
Depois de reunidos, resolveram enviar um emissário a São Paulo, para avisar o governador do que ocorria e receber ordens. A título provisório, elegeram Pascoal por chefe, concedendo-lhe autoridade quase absoluta e prometendo-lhe inteira obediência.
Pascoal era inteiramente analfabeto, mas não era homem vulgar; aliava a um grande valor grande prudência, muita atividade, inteligência notável e, o que era raro entre os paulistas desse tempo,
possuía um coração compassivo. Tinha a habilidade de dirimir os dissídios que surgiam amiúde entre seus companheiros. Com esses predicados, soube fazer-se querido dos mesmos guiando-os com grande prudência, desde o ano de 1719, até o de 1723, época
em que foi substituído por dois magistrados enviados por dr. Rodrigo César de Meneses, governador de São Paulo.
Logo que em São Paulo se soube das descobertas de Pascoal e de seus companheiros nas vizinhanças de Cuiabá, jovens e velhos paulistas partiram para a região que tantas riquezas prometia. Divididos
em diversos bandos, embarcaram pelo Tietê e outros rios, pensando, unicamente, no fim da viagem. A ambição de tal forma os cegava, que não se preocupavam com o que lhes seria necessário, nem com os perigos que iam afrontar, pelo que não tomaram,
nesse sentido, nenhuma das mais indispensáveis precauções.
Foram atacados pelas febres em meio dos pantanais, e não possuíam medicamentos; devendo durar alguns meses sua travessia pelos desertos, seus mantimentos eram escassos. Não levaram apetrechos para a
pesca, nem o número suficiente de armas de fogo para a caça e para a própria defesa, de sorte que viajaram sempre premidos pela fome, e foram, constantemente, importunados pelas hordas dos indígenas inimigos. Faltavam-lhes todos os recursos para
tão arrojada empresa; e a fome, as doenças e as horríveis fadigas fizeram perecer grande número deles, sucumbindo outros nas lutas com os selvagens. Só chegou a Cuiabá um minguado número desses infelizes, depauperados, macilentos, mal podendo tomar
parte nos trabalhos dos que os haviam precedido.
Tão funesto exemplo não deteve as emigrações. A ambição deixa-se dominar pelo desânimo mais dificilmente do que as outras paixões que agitam o coração humano. Durante muitos anos, homens
atormentados pelo desejo de adquirir riquezas partiram para Cuiabá, não somente de São Paulo, mas mesmo de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Os indígenas guaicurus, hábeis cavaleiros, e os paiaguás, exímios condutores de canoas, acatavam os
emigrantes com furor, matando um grande número deles; de um bando de 300 homens saídos de São Paulo em 1752, só escaparam 2 brancos e um negro!
Esses desastres eram geralmente conhecidos; mas o ouro, dizia-se, era tão abundante em Cuiabá, que desse metal se serviam os caçadores, em substituição ao chumbo. Assim sendo, por que não se
experimentar a sorte, procurando alcançar uma terra que oferecia a seus habitantes tesouros tão fáceis de serem adquiridos? Com a esperança de adquirir riquezas, todos se arriscavam aos azares da sorte.
Enquanto isso ocorria, os companheiros de Pascoal continuavam em suas buscas. No ano de 1722, o de nome José Sútil, ao fazer uma plantação nas margens do rio Cuiabá, teve fome e mandou dois
indígenas, seus servidores (camaradas), procurar mel nos troncos das árvores. Os selvagens voltaram à tarde, não tendo encontrado mel, mas trouxeram a seu senhor grãos de ouro envolvidos em folhas, encontrados à flor da terra, e que orçavam em
cerca de 120 oitavas. No dia seguinte, de madrugada, Miguel Sútil e seu compadre João Francisco, conhecido pela alcunha de Barbudo, dirigiram-se, acompanhados de todos os seus escravos, para o local onde tinha sido feita a preciosa
descoberta. Sútil voltou ao acampamento com meia arroba de ouro, e Barbudo, com mais de 400 oitavas.
Toda a colônia precipitou-se para o local onde tamanha riqueza se encontrava, e sem necessidade de fazer profundas escavações foram retiradas da terra, no espaço de dois meses, 400 arrobas do
valioso metal. No local desse descobrimento é que, atualmente, está situada a cidade de Cuiabá.
No decorrer do ano em que Miguel Sútil fez essa brilhante descoberta, chegou a São Paulo o governador Rodrigo Cesar de Meneses, a quem já me referi. Seu primeiro cuidado foi providenciar no sentido
de fazer com que fosse pago ao reino o imposto do quinto sobre o ouro extraído das minas de Cuiabá. Quando os portugueses se ocupavam do Brasil, era, o mais das vezes, para arrancar-lhe as riquezas. Dois homens poderosos foram escolhidos por
Meneses para agentes do fisco real da recém-fundada colônia.
Um deles – Lourenço Leme – para ali partiu com o título de procurador do imposto do quinto; o outro – João Leme –, irmão de Lourenço, como mestre-de-campo das minas de Cuiabá. Meneses não era
desprovido de méritos, mas não conhecia o país, por isso julgou que não podia ser melhor representado do que por dois personagens aos quais os paulistas, patrícios dos mesmos, prodigalizam o máximo respeito. Ignoravam que unicamente o temor
motivava as manifestações de deferência de que eram alvo os Lemes e que estes só faziam uso de suas riquezas para violar impunemente as leis e oprimir os fracos.
Quando os dois irmãos chegaram a Cuiabá vendo-se longe de toda a vigilância, não tiveram mais limites as suas insolência e audácia. Entregaram-se a todos os caprichos, cometeram os mais absurdos
atos de violência, e pretenderam, mesmo, expulsar das minas todos aqueles que não fossem paulistas e seus apaniguados. O capelão da nascente colônia opôs-se, corajosamente, contra semelhante injustiça; ordenaram, então, os Leme, que fosse o mesmo
arcabuzado.
Um colono de nome Pedro Leitão teve a desdita de lhes excitar a inveja, razão pela qual fizeram-no maltratar, da maneira mais bárbara, ao pé do altar, na ocasião em que assistia o ofício divino da
missa. Meneses soube, afinal, do que ocorria em Cuiabá, e, querendo livrar a região dos desmandos dos dois monstros que para ali enviara como representantes de sua autoridade e cuja tirania tornara-se intolerável, ordenou a um oficial superior que
os prendesse remetendo-os para São Paulo.
Os dois irmãos, entretanto, avisados a tempo dessa ordem, fugiram com seus amigos e escravos. Enviada uma escolta em seu encalço, foram encontrados, bem fortificados, num sítio deserto, onde foram
atacados, mas se defenderam valentemente, do que resultaram mortes de lado a lado. Fugiram mais uma vez; uma bala, porém, atingiu Lourenço, tendo seu ir mão sido feito prisioneiro e, mais tarde, em 1724, executado na Bahia.
A morte desses dois homens não pôs termo às desditas dos habitantes de Cuiabá. Durante muito tempo só tiveram eles opressores como chefes, os quais lhes exigiam somas enormes a título de pagamento
do quinto e de outros impostos; aprisionavam os que não podiam satisfazer seus exorbitantes pedidos, tratando-os com a maior barbaridade. Todo o povo a tal grau de desespero chegou, que, em dado momento, projetou abandonar um lugar onde, em vez das
imensas riquezas que prometia, só encontravam, em definitivo, desolação e miséria.
Nesse ínterim, o governador Meneses recebeu de seu soberano ordem para inspecionar as minas de Cuiabá. Já estava fixa da a época de sua partida, mas, nas vésperas dessa empresa, amedrontou-se com a extensão de tão perigosa viagem, que devia ser
feita, quase toda ela, por via fluvial. Por essa razão fez abrir um caminho por terra firme, obra cuja terminação durou cerca de dois anos. Só então Meneses se pôs em marcha, chegando a Cuiabá no dia 15 de novembro de 1726, cinco meses depois de
sua partida.
O caminho que Meneses mandou abrir representou um grande benefício para a população, pois tornou mais fáceis, menos lentos e mais seguros os meios de comunicação entre São Paulo e sua nascente
colônia, e é ainda o caminho que atualmente trilham as caravanas que demandam Goiás e Mato Grosso.
Apenas chegado a Cuiabá, Meneses elevou essa aldeia a vila. Sua presença, porém, não melhorou a sorte dos cuiabanos. Seus agentes, quando ele ainda se encontrava em São Paulo, extorquiam o ouro
desses infelizes, para se fazerem valer junto do mesmo, que não os obrigou a mudar de conduta, querendo, também, com tal atitude, fazer-se valer diante do seu rei, ao qual, em última análise, eram destinadas todas as avultadas riquezas extorquidas
ao povo das minas.
Mais de mil pessoas, que não podiam continuar a viver num lugar onde estavam expostas a contínuos vexames, abandonaram Cuiabá no mês de abril de 1728, tomando o rumo de São Paulo.
Meneses tinha nessa ocasião, para remeter a Portugal, quatro caixas contendo 7 arrobas de ouro cada uma, pelo que se aproveitou, para expedi-las, do propício ensejo que lhe apresentava, tomando
todas as possíveis precauções para que a remessa chegasse com segurança a seu destino. As quatro caixas foram enviadas a d. João V, perfeitamente fechadas e lacradas com selos apostos no momento da partida. O rei, ao recebê-las, cheio de orgulho e
de satisfação, fê-las abrir na presença de altos dignitários da corte e de alguns diplomatas estrangeiros acreditados junto ao governo português. Abertas as caixas, só foram encontradas, dentro das mesmas, barras de chumbo.
Nada foi desprezado para a descoberta dos culpados pela fraude; mas foram inúteis todas as diligências em tal sentido feitas. O povo de Cuiabá ficou persuadido de que, por uma transformação
milagrosa, o próprio Céu tomara a seu cuidado vingá-lo de seus tiranos. Sua alegria, entretanto, foi de pouca duração. O recebedor dos impostos, querendo merecer as boas graças do governador e do próprio monarca, culpou os mineradores pelo
desaparecimento do ouro enviado a Portugal, tirando-lhes tudo quanto possuíam, até seus escravos.
Concluída essa odiosa empreitada, Meneses regressou a São Paulo (setembro de 1728), tendo, antes, modificado a forma de recebimento do imposto, e fez, forçoso é confessá-lo, úteis reformas. Os
cuiabanos nada mais possuíam; mas diz um historiador, puderam, ao menos, chorar em paz. Recomeçaram a cavar a terra corajosamente, e esta lhes prodigalizou novos tesouros.
Mas os paulistas, que formavam a maioria da população, não tinham perdido seu gosto pelas aventuras, nem sopitado sua insaciável sede de ouro. Necessitavam de perlustrar outros desertos,
precisavam de minas mais ricas ainda do que as de Cuiabá. No ano de 1734, dois irmãos – Fernando Pais de Barros e Artur Pais –, naturais de Sorocaba, penetraram ao oeste dos Campos Parexis, numa região coberta de espessas florestas, onde até então
nenhum homem branco ainda havia chegado. Essa região é a atualmente denominada Mato Grosso. Pararam à margem de um dos afluentes do rio Guapoú, onde construíram cabanas, desse ponto se espalhando pela vizinhança, verificando em toda a parte a areia
dos ribeirões e rios. Decorrera apenas um ano, e já os dois irmãos Pais enviavam a Cuiabá considerável quantidade de ouro.
À vista disso, o povo rejubilou-se. Todo mundo quis partir para as novas minas. Milhares de indivíduos puseram-se, efetivamente, a caminho; mas sofreram pouco mais ou menos o que sofreram os
primeiros paulistas que tinham partido de São Paulo para Cuiabá. Uns se perderam no meio dos desertos, perecendo miseravelmente de fadiga e de fome; outros caíram sob os ataques dos paiaguás e dos guaicurus. Só um pequeno número alcançou a desejada
meta.
Enquanto bandos de paulistas conquistavam para a monarquia portuguesa os vastos territórios de Cuiabá e de Mato Grosso, outros paulistas faziam uma descoberta não menos importante – a de Goiás. Pelo ano de 1680, Bartolomeu Bueno da Silva, alcunhado
de espírito mau, chegava ao território dos indígenas goiases, cujas mulheres enfeitavam os cabelos com palhetas de ouro. Submeteu sem esforços esses homens pacíficos, dignos de sorte mais feliz, e voltou a São Paulo, trazendo ouro e um grande número
de cativos, bastantes para povoar uma cidade.
Durante muito tempo as riquezas de Minas Gerais fizeram esquecer Goiás; mas as minas de Cuiabá, trazendo a Meneses a recordação das que Bueno havia descoberto, fê-lo incitar os habitantes de São Paulo a que procurassem encontrá-las. Parece que os
antigos paulistas habituavam seus filhos, desde muito novos, às fadigas das expedições longínquas e à caça dos indígenas. Quando penetrou nos domínios da Nação dos goiases, Bueno levou em sua companhia um filho de doze anos de idade. Esse menor,
que se chamava igualmente Bartolomeu Bueno, já então envelhecido, mas não deslembrando de sua viagem na infância, ofereceu seus serviços a Meneses, que lhe prometeu, se fosse bem sucedido, dar-lhe, como recompensa, a peagem muito rendosa de
diversos rios.
Partiu, assim, o segundo Bartolomeu Bueno, em 1721; mas, infelizmente, não teve êxito, e, após uma infinidade de acidentadas aventuras, regressou a São Paulo, desesperado e quase só. Meneses
reanimou-o, insuflando-lhe coragem e fazendo-lhe sedutores promessas, conseguindo, assim, decidi-lo a voltar, suprido dos necessários recursos para a empresa. Foi Bueno desta vez mais afortunado do que da primeira. Depois de longas marchas e de
incríveis fadigas, descobriu, enfim, no ano de 1726, o local onde estavam situadas as minas descobertas por seu pai.
A fama das riquezas de Goiás atraiu desde logo para lá muitos bandos de aventureiros, que fundaram numerosas aldeias. Bueno foi dignamente recompensado. Era homem empreendedor e possuidor de avultadas riquezas; mas, como a maioria dos exploradores
de minas daqueles tempos, não soube conservá-las, morrendo pobre, pois tinha doado, em vida, a seu filho, as peagens concedidas a sua família pelo espaço de três vidas. Em 1825, sua 3ª geração acabava de extinguir-se.
Assim, os trinetos do homem que havia conquistado para o Império do Brasil um território tão vasto quanto o da Alemanha, viviam na indigência. Descendiam eles, muito verossimilmente, de Amador Bueno
da Ribeira, que recusou a oferta da coroa real feita pelos habitantes de São Paulo.
Foram os paulistas que descobriram Goiás, Cuiabá e Mato Grosso. Até o ano de 1748, essas vastas terras fizeram parte da capitania de São Paulo.
Chegou-se, afinal, a reconhecer que um único homem não podia governar uma região cerca de quatro vezes maior do que a França, e cujas partes componentes eram separadas por imensos desertos. Foram formadas, em conseqüência, a capitania distinta de
Goiás e uma outra de Cuiabá e Mato Grosso; mas, ao mesmo tempo, teve-se a infeliz ideia de suprimir a capitania de São Paulo, reunindo-a à do Rio de Janeiro. Os governadores desta última capitania já tinham bastante que fazer com a administração da
mesma. A de São Paulo foi posta à margem.
Nos primeiros tempos de São Paulo, quando os caçadores de indígenas deixavam o seu torrão natal, a ele regressavam; outro tanto não acontecia com os pesquisadores de ouro, que se estabeleciam permanentemente nas regiões onde encontravam esse metal,
objeto de suas ambições, e não mais volviam aos pagos. Desde a descoberta de Minas Gerais, a população da capitania de São Paulo não cessou de diminuir.
Os imigrantes a empobreciam com as despesas que eram obrigados a fazer para os preparativos de viagem. Por falta de braços, as terras permaneciam incultas e o gado ficava abandonado; as habitações
caíam em ruínas. Para remediar tantas misérias, seria necessário uma administração vigorosa, ativa, reparadora. Desde a supressão de sua capitania, os paulistas só tiveram em sua terra agentes do governo com poderes extremamente limitados,
os quais não ousavam assumir a responsabilidade de qualquer medida de alguma importância. E, assim, uma das mais belas regiões do Brasil ia declinando dia a dia, cada vez mais.
Em 1758, o rei d. José baixou um decreto que para sempre honrará a sua memória – o que deu liberdade definitiva a todos os indígenas do Brasil. Uma infinidade de outros decretos já os havia
declarado livres, mas eram constantemente burlados. Não havia escravos, dizia-se, havia administrados; mas os infelizes assim denominados eram condenados aos mais rudes trabalhos. Sob o reinado de d. José, era ministro o marquês de Pombal, ao qual
não se podia iludir com palavras.
O marquês de Pombal quis, sinceramente, que os indígenas fossem libertados, e estes não tardaram a adquirir a liberdade. A supressão da escravidão dos indígenas foi, entretanto, novo golpe desfechado
contra a prosperidade de São Paulo. Muitíssimas famílias, que não possuíam outras riquezas a não ser seus escravos, ficaram inteiramente arruinadas. A capitania de São Paulo, dizia um dos seus governadores, é, desde o ano de 1737, como uma bela
mulher sem dote. Mais do que nunca mereceu esse conceito.
O primeiro vice-rei do Rio de Janeiro, Antônio Álvares da Cunha, reconhecendo, afinal, o estado de miséria a que estava reduzida a capitania, acreditou que, se na mesma se restabelecesse um governador ocupado unicamente com as necessidades de seus
habitantes, retomaria ela algum esplendor. Um memorial que, nesse sentido, endereçou ao governo da metrópole, convenceu o rei d. José; e a terra dos paulistas retomou o título de capitania, que por tanto tempo lhe pertencera, e d. Luís Antônio de
Sousa Botelho chegou, em 1765, para governá-la, munido de sábias instruções do marquês de Pombal.
Nessa época, ou poucos anos antes, notável mudança começou a operar-se relativamente aos paulistas. Os terrenos auríferos tendo sido repartidos e a caça aos indígenas estando severamente proibida,
foram eles obrigados a renunciar a seus hábitos de mais de dois séculos. A agricultura foi o seu recurso: instalaram numerosos engenhos de açúcar, e, onde a natureza lhes oferecia pastagens, passaram a criar gado cavalar e vacum.
As ocupações sedentárias, às quais foram constrangidos a entregar-se, habituaram-nos à vida de família. Suas antigas rivalidades se extinguiram e, pouco a pouco, seus costumes tornaram-se mais brandos.
Sempre ufanos da glória de seus antepassados, não mais pensaram, entretanto, em imitá-los. Deviam perder, necessariamente, os defeitos dos antigos corredores de desertos; nada os impediu, porém, de conservar as brilhantes qualidades que distinguiam
esses homens extraordinários. Tiveram coragem sem crueldade, firmeza sem rudeza, franqueza sem insolência. No trato com magistrados que lhes eram enviados de Portugal, tornaram-se tão delicados quanto estes.
Alguns cultivaram elevadamente a inteligência; e, se a terra paulista não mais produziu Antônio Raposo, Fernando Dias Pais, Pascoal Moreira Cabral, pode gloriar-se de ter dado à luz, nos tempos
modernos, a Alexandre de Gusmão, a Gaspar da Madre de Deus, a José Feliciano Fernandes Pinheiro e aos ilustres irmãos – a três Andradas –, que tanto contribuíram para a independência do Brasil.
Se bem que a era das expedições longínquas tivesse passado para os paulistas, seu novo governador, Luís Antônio de Sousa Botelho, proporcionou-lhe logo uma oportunidade de retornar a seu antigo pendor pelas aventuras. O marquês de Pombal, sabedor
dos imensos recursos do Brasil, ocupou-se, carinhosamente, dessa bela região, que conhecia melhor do que todos os ministros seus antecessores, e parece, mesmo, que teve por momentos o desejo de transferir para a vasta e rica colônia a sede da
monarquia portuguesa.
Temia que os espanhóis acabassem se apoderando de Guaíra, que ficara deserta desde as invasões dos paulistas, dali se infiltrando aos poucos no território brasileiro. Esse temor inspirou-lhe um
projeto que asseguraria um belo futuro à província de São Paulo; ordenou o governador que Botelho fizesse explorar os rios Iguaçu, Ivaí e Tibagi destinados a oferecer, algum dia, meios preciosos de comunicação, e a formar, nas regiões desabitadas
por onde correm, um estabelecimento que pudesse proteger as possessões brasileiras, permitindo dilatá-las.
As ordens de Pombal foram executadas pelo governador de São Paulo. Uma tropa de paulistas percorreu os imensos desertos regados pelos afluentes meridionais do Paraná, e, nas barrancas do Iguatemi,
numa região fértil, foi construído o pequeno forte de Nossa Senhora dos Prazeres, esplendidamente situado para deter as invasões dos espanhóis.
Infelizmente, Pombal perdeu sua influência na corte portuguesa, caindo no desfavor do monarca. Botelho foi substituído por Martins Lopes Lobo de Saldanha. Este, que afetava um profundo desprezo pelo
que seu antecessor havia feito, abandonou o forte de Nossa Senhora dos Prazeres. Os espanhóis não tardaram a apoderar-se desse forte, destruindo-o doze anos depois de sua fundação.
Se o projeto grandioso do marquês de Pombal fosse continuado com perseverança, a capitania de São Paulo teria aumentado, sem efusão de sangue; regiões férteis ainda desertas estariam hoje semeadas
de fazendas e criação, uma porção de rios facilitaria as relações entre os habitantes de São Paulo e os do Paraguai.
Não tenho necessidade e de dizer que os paulistas não escaparam aos rigores do sistema colonial. Seu comércio foi mesmo entravado, em diversas épocas, por proibições que não atingiram outras partes
do Brasil. Desde o ano de 1701, uma ordenação real vedou aos paulistas o envio de gado de suas minas para a Bahia. Em 1743, quando os habitantes de Minas Gerais dependiam de São Paulo, foi limitado o número de fábricas paulistas de tafiá
(aguardente de cana ou de melaço), a fim de favorecer o comércio de Portugal.
Muito mais recentemente, enfim, Antônio José da Franca e Horta, que começou a governar São Paulo em 1802, proibiu a navegação de cabotagem aos habitantes da costa, só permitindo aos cultivadores
enviar seus produtos até Santos unicamente, arruinando, dessa forma, todos os outros por tos, e colocando aqueles à mercê de três ou quatro negocistas, que, coligados, tornaram-se inteiramente senhores dos serviços de transportes. Não sabemos que a
probidade de Horta tenha sido posta em dúvida; mas se não houve nenhuma conivência entre ele e os aludidos negocistas de Santos, é de se notar que tudo o que fez, cedendo a um capricho maléfico, inteiramente inexplicável, deu azo à suspeita de tal
indignidade.
Essa tão prejudicial determinação de Antônio José de Franca e Horta foi executada até o ano de 1808, quando o rei d. João VI, fugindo do exército francês, chegou ao Brasil, pois foi um de seus primeiros atos franquear os portos do país às nações
amigas, suprimindo o sistema colonial com todas as suas proibições – igualando, em suma, a Portugal sua antiga colônia. Não era ainda a independência do Brasil, mas já era um prelúdio da mesma.
A capitania de São Paulo aproveitou-se dos benefícios decorrentes da nova ordem de coisas. Suas relações comerciais se ampliaram, tornando-se cada dia mais importantes; a navegação de cabotagem
retomou a passada atividade. Os agricultores, vendendo seus produtos mais vantajosamente, ampliaram suas plantações; os engenhos e cafezais multiplicaram-se; homens de todas as nações chegaram a São Paulo, trazendo aos seus habitantes novas ideias,
e as artes mecânicas se aperfeiçoaram. Mas, é forçoso dizer, os estrangeiros mais de uma vez abusaram da boa-fé dos paulistas, que pelo menos passaram a conceder justa desconfiança, perdendo um pouco de sua antiga boa-fé, de sua franqueza e
hospitalidade.
Não foi por muito tempo que os paulistas gozaram, em sossego, de uma liberdade mais extensa. A guerra rebentou em 1811, entre o Brasil e os hispano-americanos povoadores do rio da Prata. Para repelir os ataques destes últimos, não era possível
aliciar soldados no Pará ou em Pernambuco.
As capitanias do Rio Grande e de São Paulo eram as mais vizinhas do território inimigo. Foram elas, em consequência, que forneceram tropas. A boa justiça teria exigido que estas fossem sustentadas
também pelas outras capitanias distantes; mas não foi o que aconteceu: São Paulo foi, sozinho, forçado, não somente a fornecer homens, mas, ainda, a prover a todas as despesas dos mesmos.
Quando se iniciou o recrutamento para o exército do sul, os paulistas desde muito tempo gozavam de uma paz profunda, por isso tais acontecimentos muito os consternaram, e a sua consternação ainda
foi mais viva, porquanto eram recrutados tanto os homens casados como os solteiros.
Para a defesa de sua própria terra, de seu São Paulo querido, não duvidamos, acorreriam em massa, sem hesitações; mas ocorria que os homens recrutados iam bater-se por uma causa que lhes era de certa
forma estranha, contra um povo do qual tal vez nunca tivessem ouvi do falar, sendo mister que partissem para regiões a várias centenas de léguas de São Paulo, longe de suas famílias, sem esperança de revê-las durante muito tempo, sem, mesmo, poder
fornecer-lhes notícias.
Grande número deles não teve essa coragem. Houve consideráveis deserções, com o que a população de Minas Gerais aumentou de forma sensível, às expensas da capitania de São Paulo. Uma legião inteiramente formada de soldados tirados desta capitania
tomou parte, contudo, nas campanhas do exército do Sul. Uma vez sob as armas, esses homens souberam curvar-se às necessidades da guerra, demonstrando que era ainda o sangue dos velhos paulistas que lhes circulava nas veias.
Forneciam-lhes uma alimentação à qual não estavam habituados, alimentação composta de carne sem farinha e sem sal. Durante mais de dois anos não receberam o soldo: suas roupas caíram em pedaços, sem
serem renovadas. Suportaram, entretanto, todas as privações, todas as fadigas, com uma constância admirável. Combatiam ora a pé, ora a cavalo. Não eram inferiores a seus inimigos – os gaúchos – na arte de lançar o laço, e como eles percorriam as
vastas campinas da Banda Oriental, galopando com inconcebível rapidez; enfim, nada menos intrépidos que os soldados do Rio Grande, seus camaradas de armas, observavam muito melhor do que estes as leis da disciplina.
Distinguiram-se em muitos encontros, e foram devidos principalmente a seu valor os resultados felizes do combate decisivo de Catalã, do qual decorreu a rendição da importante cidade de Montevidéu. A
legião de São Paulo estava ainda alojada nas margens do Prata, quando, no fim do ano de 1820, chegou ao Rio de Janeiro uma notícia que, apesar das dificuldades das comunicações, se espalhou, com a rapidez de um relâmpago, por todas as partes do
Brasil; notícia de um acontecimento que deveria logo mudar os destinos desse vasto Império – Portugal tinha sacudido o jugo do governo absoluto, e ia ter uma constituição liberal.
A revolução que acabava de explodir na metrópole excitou, na maioria dos brasileiros, grande entusiasmo; e, durante alguns instantes, uniram-se eles aos portugueses, externando para com os mesmos
sentimentos de uma estreita fraternidade. Mas, é útil observar, só os espíritos esclarecidos sabiam do que se tratava; o povo não compreendia bem o significado da palavra constituição, que andava em todas as bocas; era-lhe explicando que por
tal expressão se entendia a reforma dos abusos de que tinha queixas desde muito tempo, e o povo jurou fidelidade à constituição, antes mesmo de ela estar elaborada.
Quando a revolução teve início, os capitães-generais se viram diante da alternativa embaraçosa de se tornarem odiosos ao povo, se procurassem manter a antiga ordem de coisas ou de desagradarem ao
rei, se não sustentassem a autoridade real por todos os meios possíveis. Mas, logo que o próprio soberano renunciou o poder absoluto, é claro que eles, representantes desse poder, deviam proceder da mesma forma na colônia.
Contudo, acostumados a governar despoticamente e a receber homenagens que raiavam pela adoração, custou-lhes muito partilhar o poder, nada mais sendo do que meros presidentes das juntas provisórias,
criadas em todo o Brasil, tornando-se quase iguais a indivíduos que haviam tratado, pouco tempo antes, com severa altivez. Estavam persuadidos de que a revolução acabaria por ser abafada, e só se prestaram a executar os novos decretos com visível
repugnância. Passaram, então, a ser vistos como defensores interesseiros da tirania. Não podiam ter partidários, razão pela qual foram expulsos, em sua maioria.
Os fatos não transcorreram inteiramente assim na província de São Paulo. Um governo provisório foi na mesma instalado, no mês de junho de 1821, tendo como presidente João Carlos Augusto de Oeynhausen, ex-capitão-general.
O ilustre José Bonifácio de Andrada e Silva, que exercia a maior influência na província de São Paulo, onde nasceu, julgou, e com razão, que seus conterrâneos, sempre ligados ao rei e à família real, respeitassem mais a nova administração, se a
mesma continuasse a ser exercida pela pessoa que, originariamente, fora escolhida pelo soberano, e que, além disso, soubera fazer-se estimar por todos, devido a suas qualidades pessoais; assim, sustentou José Bonifácio muito fortemente João Carlos
D'Oeynhausen, que ficou à testa do governo por muito mais tempo do que os outros capitães-generais. Dessa forma, a passagem da antiga ordem de coisas à nova fez-se menos bruscamente em São Paulo do que em qualquer outra das províncias brasileiras,
não causando nenhum abalo.
É indispensável dar uma justa ideia do que foi a revolução no Brasil. Em seus primórdios, foi, pode-se dizer, antes portuguesa do que americana. Até o mês de dezembro de 1812, o que ocorreu no Rio
de Janeiro foi obra dos europeus, que também muito contribuíram para as revoluções parciais das províncias, auxiliados por alguns membros de famílias brasileiras, ricas e poderosas, que pretendiam ser os substitutos dos antigos governadores.
Quanto à massa do povo, seduzida, a princípio, pelas brilhantes promessas cujo cumprimento tardava sempre, tornou-se logo indiferente a tudo que se passava, parecendo dizer – "Não terei que suportar
sempre a minha carga?" – e o povo não tardou, mesmo, a ter saudades da administração inteiramente individual de seus antigos capitães-generais.
A maioria dos franceses ganhara extraordinariamente com a revolução de 1789, que suprimira os privilégios legais de que se aproveitava uma classe favorecida; no Brasil, a desigualdade de classes não tinha sido, realmente, consagrada por lei alguma.
As injustiças, de que as classes inferiores tinham muitas vezes razão de queixa, eram abusos de poder cometidos constantemente pelos funcionários da administração e pelos homens ricos; mas foram
precisamente esses homens que, nos primeiros tempos, se puseram à frente da revolução, pensando unicamente em diminuir a autoridade do rei, para aumentar a própria autoridade. Expulsaram os capitães-generais, não se ocupando, de qualquer forma, com
o povo, que ficou a perguntar a quem poderia implorar proteção.
Os paulistas tinham alimentado por longo tempo tão profundo amor pelo rei, que, em 1822, vários meses depois de seu regresso a Portugal, os habitantes dos campos consideravam-no ainda árbitro
supremo de sua existência e da de seus filhos; era sempre ao rei que pertenciam os impostos, a peagem dos rios, todo o país, em suma.
Não havia um só agricultor na província de São Paulo que não repetisse estas palavras: "Prometiam-nos tanta felicidade com a constituição, e vivemos alarmados por contínuos receios. Cada qual,
outrora, ficava sossegado em sua casa; agora, é necessário abandonar continuadamente nossas mulheres e nossos filhos, para irmos apaziguar o Rio de Janeiro ou Minas. Não era melhor ser governado pelo nosso rei e pelo nosso capitão-general, que,
sozinho, decidia tudo, do que ser por tanta gente que vive brigando entre si e mandando-nos de um para outro lado quando formulamos um pedido, e que nenhuma piedade tem dos pobres?"
Todavia, tinha chegado a época em que a revolução ia tomar novo caráter, ia tornar-se inteiramente brasileira. O povo português tinha-se sublevado bem menos, talvez para enfraquecer a autoridade real do que para fazer voltar ao jugo de Portugal sua
antiga colônia, cuja emancipação tinha sido para os portugueses um motivo de dor.
"Essa emancipação, com efeito, colocava-os num segundo plano, e, esgotando uma das fontes principais de suas riquezas, feria-os de cheio em seu orgulho e em seus interesses. A assembleia das Cortes
de Lisboa julgou, então, que, para se tornar popular, seria mister recolocar o Brasil sob a dominação da metrópole. Cegos pela vaidade nacional, os legisladores portugueses nem mesmo se dignaram de lançar os olhos sobre o mapa do Brasil. Um decreto
desastradamente hipócrita restabeleceu o antigo sistema colonial; e, compreendendo num mesmo anátema o reino do Brasil e o jovem príncipe a quem d. João VI confiara o governo da ex-colônia, as Cortes ordenaram a d. Pedro, casado e pai de família,
que regressasse à Europa, viajando sob a vigilância de um governante e lendo com este os Offices de Cícero e as Aventuras de Telêmaco".
D. Pedro pareceu, a princípio, resolvido a obedecer às ordens das Cortes, mas assim procedeu, sem dúvida, para melhor fazer sentir aos brasileiros quanto sua presença lhes era necessária. Sem esse príncipe, com efeito, não havia mais para ele um
centro comum; as províncias se separariam uma das outras, desmembrando-se, e o Brasil, entregue a uma anarquia dissolvente, teria a triste sorte das colônias espanholas na América.
Em circunstâncias assim difíceis, a província de São Paulo deu um nobre exemplo. A 24 de dezembro de 1821, a junta que a governava veio expor ao príncipe-regente todos os inconvenientes que
acarretaria a sua partida para a Europa e o concitou a permanecer no seio de um povo que lhe era dedicado. Os mineiros demonstraram compartilhar dos sentimentos dos paulistas, e, em 9 de janeiro de 1822, a câmara municipal do Rio de Janeiro obteve
de d. Pedro esta célebre resposta: – "Desde que o povo acredita que minha presença no Brasil é para o bem de todos, diga ao povo que fico."
Pela energia com que se pronunciaram contra as Cortes de Lisboa e a fidelidade de que deram provas para com o príncipe regente, os paulistas adquiriram eternos direitos ao reconhecimento dos demais
brasileiros. Mas, devemos também dizer, sua inexperiência dos negócios era tal, que provavelmente ficariam em inação se a Província não permitisse que estivessem à sua frente dois homens tão notáveis pelo seu talento e patriotismo – José Bonifácio
de Andrada e seu irmão Martim Francisco – que dominaram seus colegas da junta governativa, guiando-os; e, assim, o Brasil foi salvo da anarquia e do desmembramento.
Alguns meses mais tarde, d. Pedro acorreu a São Paulo, com uma rapidez que testemunhava ao mesmo tempo sua robustez física e a energia de seu caráter. Ali na planície do Ipiranga, bradou este grito nobre – "Viver independente, ou morrer!"
Consequência: o Brasil separou-se de Portugal. Desde essa época uma geração passou. D. Pedro, fundador de um dos mais vastos impérios do mundo, criou ingratos. Foi morrer no pequeno país onde nascera. Seu filho, d. Pedro II, subiu ao trono, e o
povo do Brasil, depois de ter sofrido duras provações, encontra hoje, numa constituição inteiramente adequada às suas necessidades, as vantagens do sistema monárquico constitucional, aliadas às de uma união federativa.
Essas felizes mudanças nada representam diante das que ainda podem vir. Pela vasta extensão, pela capacidade de alguns de seus portos, pela fertilidade de seu território, pela variedade de suas produções, pela inteligência de seus habitantes, o
Brasil está fadado aos mais altos destinos; mas uma condição impõe-se para que possa cumpri-los – é necessário que todas as suas províncias, independentes cada qual em sua administração privada, mantenham-se unidas entre si, ligadas a um centro
comum. Se a qualquer tempo os brasileiros, seduzidos por hipócritas declamações e promessas enganadoras, cessarem de reconhecer um poder central, seu país será logo a presa de horrível anarquia, ou, dizendo melhor, não haverá mais Brasil.
Nas províncias, separadas uma das outras, repetir-se-iam, em pequena escala, os fatos que acarretariam a desunião geral, e todas se desmembrariam. Assim, no mesmo instante em que se operasse sua desarticulação, Curitiba declarar-se-ia independente
de São Pau lo; a vila de Paranaguá, separada de Curitiba por montanhas quase inacessíveis, recusaria submeter-se à mesma administração que esta última; Franca, originariamente povoada por mineiros, não quereria mais ter nada de comum com as outras
partes da atual província; ver-se-iam, quiçá, explodir as antigas contendas entre São Paulo e Taubaté, e, do belo nome paulista, só restaria uma lembrança histórica. Os brasileiros devem, pois, unir-se contra os ambiciosos, que só trabalharão para
destruí-los.
Quando o perigo aproximar-se, os paulistas devem cerrar fileiras; devem recordar-se da glória de seus antepassados, do belo dia 24 de dezembro de 1821, do nome dos Andradas e, em seguida, marchar
para a frente e salvar mais uma vez a pátria comum, repetindo estas palavras de um guerreiro glorioso, palavras que tão bem lhes assentam – Noblesse oblige.
Itinerário das cinco viagens de Saint-Hilaire pelo interior do Brasil, de 1816 a 1822
Imagem publicada em 11 de maio de 2007 no site do Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Sul (IHGRGS), com artigo de Gervásio Rodrigues Neves, Liana Bach Martins e Márcia Piva Radtke sobre as viagens do botânico francês ao Sul do Brasil (acesso: 9/8/2014). Este é parte do
relato:
O título do mapa anexo ao volume "Saint Saint-Hilaire. Voyage à Rio Grande do Sul (Brésil). Orléans, H. Herluison, libraire-éditeurs. 1887"
em folha de 42,6 x 36,4 cm e internamente 31,2 x 33,4 cm é impresso na escala aproximada de um por um milhão e com quatro escalas gráficas em milhas francesa (20°), marítima (20°), milhas a 60° e portuguesa e espanhola a 17 ½ graus.
A referência a latitude é a de Paris definido como base da cartografia francesa de 1634 a 1884. A definição resultou da decisão de Luiz XIII e do cardeal Richieleu. O meridiano de Paris está a 20° a oeste da ilha do Ferro.
O mapa básico é datado de 1822. Nele estão registrados os itinerários, em linhas retas orientadas, das cinco viagens de Saint-Hilaire das quais a
4ª foi ao Rio Grande do Sul e à Província Cisplatina.
Este mapa se constitui num valioso documento à leitura e interpretação das observações de Saint-Hilaire. Curiosamente este precioso documento não foi incluído em nenhuma das traduções e, nem mesmo foi citado, nesses cento e vinte anos, a contar da
publicação em 1884.
Detalhe do Itinerário de Saint-Hilaire: São Paulo e as viagens iniciadas no Rio de Janeiro
Veja o texto completo de Saint-Hilaire: clique >>aqui<< ou na imagem abaixo para abrir o arquivo em formato Adobe PDF (
KB), disponível também no site do Senado Federal (acesso: 9/8/2014):
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