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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
A lenda das arapongas (2)

Uma história de Caim e Abel na área continental do município santista
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Uma versão ampliada desta lenda foi publicada na edição comemorativa do 1º Centenário da Cidade de Santos, pelo jornal A Tribuna, em 26 de janeiro de 1939 (grafia atualizada nesta transcrição):
 


"...as cem vozes de tentação, de ambição, de grandeza, sobrepujaram a voz do sangue e ele, repentinamente, atirou seu irmão para dentro do abismo"
Ilustração de J. Wasth Rodrigues, publicada com o texto

"Caim! Caim!" O grito das arapongas

Uma lenda santista das primeiras décadas da colonização - Revivendo o drama fratricida do velhíssimo Engenho dos Gayas

O velhiíssimo Engenho dos Gayas existia ainda no século passado (N.E.: século XIX), ao fim do ciclo açucareiro do litoral de S. Paulo. Era então chamado Engenho do Largacha", mas não deixava de ser a fazenda seiscentista "de Nossa Senhora do Engenho", enquistada ao fundo de Cabraiaquara (N.E.: Sítio das Neves, na área continental de Santos), no recesso umbruoso da Serra da Garganta, bem ao seu sopé, junto à "Cachoeira Grande", que, séculos depois, chamar-se-ia "do Quilombo".

Era um dos velhos engenhos santistas, continuação gloriosa dos predecessores - "Madre de Deus", "São João", "do Governador", "São Miguel", "Nossa S. dos Pelaes", "São José", "N. S. da Apresentação" e tantos outros pioneiros que constituíram a primeira colonial.

Rezava a tradição, conservada pelos pretos velhos e pelos velhos mateiros da região, que a receberam dos últimos guaianases ali estabelecidos, que as primeiras arapongas da floresta tinham aparecido naquele ponto da serra, ao fim da primeira posse do engenho antigo, e a história que contavam aqueles remanescentes de um passado fastígio é, em resumo, a que a seguir reproduzimos.

Nos primórdios da colonização - Com a vinda de João Afonso para ali, na distância de 1560, toda aquela imensa região de Cabraiaquara, sertão bruto e intransitável, se transformara.

O gentio de Ururai, unido ao braço português, pela catequese, transformara-a em pouco tempo na mais rica região de engenho, de que se tinha notícia.

Alguns anos depois, Cabraiaquara era um núcleo colonial bem povoado, com sua casaria caiada, dominado pela Fazenda de N. S. do Engenho, com sua capela ao alto do primeiro outeiro.

Dois filhos trouxera João Afonso do reino. Pedro e José, meninos então e agora homens, homens fortes pela lida da terra, mas de tendências exatamente opostas. Enquanto Pedro, o mais velho, integrava-se na vida da lavoura, seguindo o mesmo rumo do pai e secundando-o corajosamente em tudo, José, trabalhando embora, revelava-se cada vez mais infenso ao trabalho, preocupando-se com futilidades, com a vida da cantina, namoriscando as índias, provocando os naturais e inventando viagens à vila distante.

Nesse seu relaxamento moral, fora pervertendo os sentimentos e, chamado à ordem pelo irmão, diversas vezes, embora mansamente, criara-lhe um mal disfarçado ódio, misto de despeito e egoísmo. Entrou a pensar que se um dia fosse só, e fosse o dono único do engenho, sua vida, ali e na vila, seria uma coisa principesca, como a de um rajá dessa Índia distante de que ouvira falar.

Um índio e um pássaro - Havia um homem, porém, que acompanhava desde muito a transformação moral de José, a luta entre o sangue e o moral decadente daquele moço, prevendo a conseqüência da eclosão: era Goaturã, um índio fiel, da confiança de João Afonso, que fora educado no colégio dos padres em Piratininga, e por eles entregue ao colonizador como homem bom para o trabalho e para o perigo. Goaturã se afeiçoara desde logo a Pedro e era a sua sombra, principiando a votar profundo ódio a José, quando lhe percebera os sentimentos.

Goaturã achara um dia, em plena floresta, um filhote de pássaro, caído ao chão; um pássaro sem graça, de um verde sujo, cabeça mal conformada, e trouxera-o para casa, tratando-o da asinha machucada e colocando-o por fim sobre um varal de uvá, para que ele se fosse embora, quando pudesse voltar para a floresta. Passara-se, entretanto,um ano, e o pássaro feio ainda lá estava, no mesmo varal, manso que dava gosto. Seu canto único era um grasnido rouco, aflitivo, como se quisesse gritar e lhe apertassem a garganta. Goaturã assim mesmo ficou gostando dele, criou-lhe afeição, e, tratando-o paternalmente, punha-se a conversar com ele, enquanto o pássaro ficava a olhá-lo, sério, impassível, os dois grandes olhos atentos, como se o compreendesse.

O pensamento predominante de Goaturã era, entretanto, a profunda aversão que mantinha pelo branco mau, por aquele mau filho do seu senhor, e, como durante muitos anos ouvira dos padres do Colégio a história daquele mau irmão Caim, da história sagrada, que matara Abel, contava-a sempre ao pássaro, remoendo aquele nome - Caim! Caim! - que era para ele a personificação daquele José que detestava. Entre ele e o pássaro tornara-se familiar a história do Caim, como confidência de uma alma rude, que não tinha com quem desabafar, entre os receios de que alguém conhecesse o seu modo de sentir a respeito do moço.

A distribuição da herança - João Afonso andava doente, ao fim dos seus trabalhos de vinte anos. Apanhara as sezões. Tinha momentos de tremores e delírios. Definhava a olhos vistos. Por fim, vira aproximar-se a Morte e chamara os filhos.

Ao despedir-se, aconselhara paternalmente a José, indicando-lhe rumos na vida, e ditara que o dinheiro amealhado, reunido ali, na velha arca da família, ficasse lhe pertencendo, uma vez que ele não era amigo da terra, do trabalho generoso e nobilitante, ficando para Pedro toda a propriedade, a fazenda de N. S. do Engenho, com todos os seus duros encargos, para que ele fosse o continuador de sua obra.

Por capricho e profundo despeito, negou-se José a concordar com os ditames do pai; fez-se de diminuído moral ante o mau conceito que o velho fazia de sua capacidade, e recusou o dinheiro; queria que ambos continuassem ali, partilhando do ouro amealhado e da propriedade, sem diferenças ou inferiorizações de qualquer natureza. Bem sabia João Afonso do ódio que intimamente José votava a Pedro, e assim, pretendera separá-los, dando àquele a parte mais sedutora, o ouro, para que ele se fosse dali, a gastá-lo como lhe aprouvesse, e a Pedro, a parte sólida, o trabalho, a continuação dos seus esforços na terra virgem do Brasil. Mas, concordando Pedro com a exigência do irmão, para que não houvesse atrito, morreu João Afonso, levando para o túmulo aquele último amargor, aquela última e torturante dúvida.

A vigilância do índio - A vigilância de Goaturã redobrara, agora que ele sentia estar próxima uma atitude criminosa de José. Ora ele era o buriqui a galgar o arvoredo mais alto, à espreita do cenário; ora era a furtiva jaguatirica, a seguir, sem ser percebido, os passos do mau irmão, para adivinhar-lhe os intuitos. José, todavia, não ignorava a vigilância do índio, nem o ódio que o mesmo lhe votava, e odiava-o também, procurando todos os meios e modos de eliminá-lo indiretamente, ou de afastá-lo do engenho, em missões distantes, no Cubatão, em Piassagüera, e até na Vila de Santos, mas Goaturã era forte e ligeiro, e de tudo se livrava com presteza.

A fazenda de João Afonso continuava a prosperar. O lençol verde das canas de açúcar estendia-se a perder de vista; a roda d'água cantarolava fazendo coro à sununga da cachoeira; a criação procriava, numerosa, variada, álacre; o casario aumentava; a Casa Grande esplendia em conforto; a paz continuava sem perturbação, e o açúcar e a aguardente saíam, em grandes canoas pejadas, aos milhares de arrobas e de litros, a rumo do porto, onde os navios as esperavam e de onde mais ouro vinha para a velha arca. Apenas uma sombra pairava sobre tudo aquilo: eram o ódio e a ambição de José, que arquitetava, em obsessão cada vez maior e mais empolgante, a eliminação de Pedro, para realização do seu sonho.

Pedro, entretanto, confiava em José, confiava no sangue que lhe corria nas veias, que era o mesmo de ambos, que era o mesmo [... - N.E.: ilegível por falha na impressão] haviam perdido pequeninos, ainda no reino, quando juntos ouviam as primeiras lições do cura da aldeia, confiava em sua regeneração pelo exemplo, pela verificação dos resultados colhidos da lida com a terra. Essa confiança exasperava a Goaturã, que não podia, por isso, comunicar-lhe as suas desconfianças e seus presságios.

A loucura fratricida - José, por sua vez, atravessava, a meses apenas do desaparecimento do pai, uma terrível fase íntima: sonhara coisas grandiosas, aventuras extraordinárias, tal como se lhe houvessem dado estranha beberagem, e sentia em seu cérebro aturdido vozes várias e insistentes, como cem falas tentadoras:

- Coragem! Vamos! Mata-o e tudo será teu!

- Eia, covarde! Não vês o papel inferior que representas junto desse homem? Vamos!

Era a febre, o delírio por fim, loucura fratricida obsedante, constante, fatal.

Tentativa de morte - Numa daquelas manhãs, Goaturã recebera a incumbência de trazer mantimentos de Santos. Pensara em desobedecer, em não ir, explicando as razões a Pedro. Tivera sonhos maus naquelas duas noites anteriores e, nesse ponto, ainda conservara a tradição da tribo, a interpretação do velho pagé. Qualquer coisa aconteceria naquela sua saída... Mas foi, chefiando a caravana de canoas.

Quando dobrava o esteiro, na última curva do rio em Cabraiaquara, Goaturã, vista de gavião, notou um movimento no mato marginal, abaixou-se rápido e uma flecha passou zunindo, na altura do seu peito, para sumir-se na margem oposta. Goaturã mergulhou rápido e surgiu no barranco. Num salto rápido internou-se pela floresta, elástico e sem ruído, como um jaguar. Daí a momentos voltava com o punhal tinto de sangue. Antes de matar o agressor obtivera a confissão do seu mandatário.

- Goaturã vai voltar! - disse ele aos companheiros, e sem mais delongas, atirando-se à pequena embarcação que comandava a flotilha, entrou a remar vigorosamente, rio acima.

Mal chegado ao engenho, o índio fiel correu à Casa Grande. Disseram-lhe que o senhor saíra com "seu" José para os lados do caminho da serra. Goaturã urrou de desespero, imprecou alto em sua língua, e lançou-se em desabalada no rumo indicado pelo caseiro.

Era o seu sonho mau que se realizava...

Convidando o irmão para um passeio na serra - José levantara cedo naquela manhã, mal pintara a madrugada sobre os cabeços de Jurubatuba.

Aparentemente jovial e intimamente dominado pela sanie, procurara seu irmão, logo às primeiras horas, convidando-o, entre palmadinhas nos ombros, a compartilhar consigo do espetáculo que sentia vontade de fruir naquele dia, lá do alto da serra, tomando a brisa viageira da manhã santista, aspirando os aromas do caminho alpestre, contemplando a beleza do cenário, a imensidão verdoenga da lavoura, o serpenteio do rio entre o varjão maciço, ouvindo o gorjeio intenso do passaredo na calma augusta da floresta.

Preocupado com a regeneração do irmão e certo de que essa já era uma demonstração evidente do renascimento moral da criatura, Pedro aceitou-lhe o convite e, momentos depois, já se punha a caminho, ao lado dele, trauteando uma antiga modinha.

Pelos cálculos de José, Goaturã já devia estar longe, talvez morto, mas, se voltasse, a coisa seria então bem diferente; seria ele o dono único de Nossa Senhora do Engenho, e o índio seria passado a bacamarte, a seu sabor, como seu escravo.

Atirando o irmão no abismo - Os dois irmãos subiam a serra; iam a pé, para melhor gozarem a natureza; pouco faltava para chegarem ao cimo; Pedro, alegre; José, mal disfarçando a preocupação do crime premeditado.

A certa altura, pareceu a este ter ouvido um grito lá em baixo da serra, com o tom da voz de Goaturã; deu de ombros, era ilusão, decerto.

Estavam no alto, à beira de enorme despenhadeiro, sobre as nascentes da Cachoeira Grande.

Que maravilha lá em baixo!

José mostrou-a a Pedro, para desviar-lhe a atenção do perigo a que se expunha naquela borda.

Aquelas vozes diabólicas de tanto tempo se repetiam agora, com mais intensidade, enchendo-lhe o cérebro e atordoando-lhe o ouvido:

- Chegou tua hora! Aproveita-a! Vamos! Empurra!... Empurra!...

Um último vislumbre de consciência ainda retinha-lhe o braço, mas a sanie, o delírio, as cem vozes de tentação, de ambição, de grandeza, sobrepujaram a voz do sangeu, e ele, repentinamente, atirou seu irmão para dentro do abismo.

José fechara os olhos, mas ouviu aquele terrível grito de angústia do irmão, e ouviu depois, lá embaixo, o trágico ruído do corpo batendo contra as rochas. Recolheu-se em si mesmo, assaltado de remorsos e de medo, o sistema nervoso atropelado de fantasmas, olhou para o caminho sinistro, e viu, pouco além, como um deus de vingança, terrível, galgando a serra aos pinxos, Goaturã, o índio fiel de seu pai. Desvairado, assaltado pelo pavor, José atirou-se, em corrida desabalada, para dentro da floresta aberta à sua frente.

A assombrosa aparição - Nesse instante, no escuro umbroso da mata, um fantasma branco, nimbado de luz, surgiu-lhe à frente interceptando-lhe os passos:

- Onde vais, filho desnaturado!

Era o fantasma do pai, o velho João Afonso, com aquelas barbas longas e os venerandos cabelos brancos dos últimos tempos, a fisionomia severa:

- Assassino! Onde está teu irmão? Filho maldito! Vai! Erra pelos matos! Enlouquece de fome e de medo, ouvindo sempre a minha maldição!

Goaturã chegara a tempo de assistir o milagre e prosternara-se ante a visão de seu antigo senhor.

- Deixa-o, Goaturã! Não manches tua mão nesse sangue maldito! Volta! [... N.E: ilegível por falha de impressão] Alguém há de vir continuar a minha obra!

O fantasma desapareceu instantaneamente, Goaturã rendera-se à sua suave intimação, enquanto José, o assassino, internava-se pela floresta.

"Caim! Caim!" - Naquele momento, Goaturã viu o seu pássaro, ali, na ponta de um galho vizinho; estava branco, alvo como o fantasma de João Afonso, e ouviu-o, então, emitir um grito, fino, altíssimo, que parecia humano e reboava pelas quebradas:

- Caim! Caim!

Era o nome que ele lhe ensinara durante tanto tempo. E aí, de todos os cantos e recantos da floresta, nas grotas e nos espigões, surgiram aves brancas como aquela, enchendo a serra bruta da mesma exprobração:

- Caim! Caim! Caim!

Assim surgiram as arapongas, aves gritadoras, lembrando aos homens a identidade da origem e respeito do sangue, acima dos egoísmos e das ambições.