LENDAS E TRADIÇÕES
A lenda das arapongas
O episódio foi vivido em Cabraiaquara (N.E.:
Sítio das Neves, na área continental de Santos), segundo Francisco Martins dos Santos, em
Lendas e Tradições de uma Velha Cidade de São Paulo e em trabalho divulgado na esplêndida edição da revista AABB
(N.E.: publicada pela Associação Atlética Banco do Brasil - AABB) em 1959, consagrada ao
Município.
João Afonso, português, homem de têmpera rija, apegado aos costumes da época, correto
e honrado, veio da Europa com o propósito de trabalhar e amealhar fortuna, com seus filhos Pedro e José. Instalando-se em Cabraiaquara, em pouco
tempo a pequena propriedade agrícola prosperou, com a ajuda de Pedro, que herdou do genitor toda a gama de operosidade e honradez, ao contrário de
José, que era ambicioso, queria ter propriedade e dinheiro, mas sem trabalhar, preferindo os encantos da carne moça das índias ao labor estrênuo,
que era seguido pelo genitor e pelo irmão. Desejava a posse da propriedade, sozinho, isolado, afastado da convivência dos familiares, dominado pelo
espírito de cobiça.
Não podendo prescindir do braço indígena, João Afonso valeu-se da fidelidade, lealdade
e intrepidez de Goaturã que, afeiçoado à vida natural, arguto e perspicaz, desde logo notou o rancor que José votava a Pedro, recordando-se da
história de Abel e Caim, que por mais de uma vez ouvira. Por fidelidade, vigiava os passos de Pedro.
Um dia, o indígena encontrou na selva um pássaro "esverdeado e feio", com uma das asas
machucada. Afeiçoou-se à avezinha. Por vezes, em encantadora ingenuidade, falava-lhe sobre o fratricídio bíblico, como a prever o desfecho da
animosidade entre os dois irmãos. Com a morte de João Afonso, que doara a propriedade aos dois filhos, mais continuada se fazia a vigilância de
Goiaturã sobre José, que o odiava.
Deu-se, afinal, o triste acontecimento. José mandara o silvícola a Santos, que o
atendeu mas desconfiou do intento. Mal empreendida a viagem, por canoa, uma flecha quase o atingiu no coração. Como um felino, jogou-se às águas,
com um punhal preso aos dentes e, ao chegar à margem, identificou o agressor e dele ouviu a confissão tétrica de que José convidara Pedro para um
passeio no mato, com o propósito de eliminá-lo.
Depois de matar o ofensor, Goaturã correu para a floresta à procura de Pedro para
defendê-lo da maldade assassina do irmão. Mas não chegou a tempo. José fizera aquilo que de há muito seu espírito tacanho, vingativo e ambicioso
engendrara, como desfecho de uma vivência oposta de irmãos. Pedro havia sido empurrado abismo abaixo. Goaturã viu, ao longe, a tragédia, como também
se convencera de que a sua ida a Santos nada mais era do que um plano perverso.
No mesmo instante, porém, José arrependeu-se. Acovardado, deitou a correr, roído pelo
remorso. Nesse instante, uma sombra gigantesca, branca, alagada em luz, ergueu-se no caminho e interceptou-lhe os passos. Era João Afonso.
- Aonde vais, filho desnaturado?
Estacando, assustado, sem acreditar no que via, José ouviu do pai há pouco falecido
esta imprecação:
- Assassino! Onde está teu irmão? Filho maldito! Vai! Erra pelos matos. Enlouquece de
fome e sede, ouvindo sempre a minha maldição.
Goaturã presenciou a cena. Petrificado, ajoelhou-se ante o fantasma do protetor, de
quem ouviu:
- Deixa-o, Goaturã. Não manches tuas mãos nesse sangue maldito. Volta.
O indígena obedeceu à súplica e José, deprimido, tremendo de medo, tal um réprobo,
enveredou pelo mato, desapareceu e dele nunca mais se teve notícia.
Nesse instante, o pássaro de Guaturã emitiu um canto forte e penetrante, doloroso e
trêmulo como o amargor de um espírito que, ainda mesmo em substância espiritual, recebia o impacto de uma traição filial:
- Caim! Caim! Caim! Caim! |