(Quepes militares marcam lugares na mesa de reuniões do salão nobre da Prefeitura
de Santos)
Foto: José Dias Herrera, de arquivo, publicada com a matéria
AI-5: 30 anos
No dia 13 de dezembro, a nação brasileira tem um bolo de aniversário um
pouco indigesto para degustar. Nesta data, comemoram-se os 30 anos do Ato Institucional nº 5 (AI-5), uma das marcas da ditadura militar, que
perdurou por 20 anos. O Primeira Impressão mostra como esse período de exceção refletiu na vida de muita gente, manchando de sangue a
história brasileira.
"Ato ainda está vivo"
Despertou com a sensação gelada do cano do revólver
encostado em sua testa. Quando abriu os olhos, percebeu que estava cercado por dez policiais da Oban (Operação Bandeirantes). Não houve reação. A
família toda foi presa: pai, mãe e irmãs, incluindo a de dois anos de idade.
Se não fosse um fato verídico, a cena poderia ser de filme policial. O episódio
aconteceu na vida do jornalista baiano Antonio Carlos Fon, 52 anos, no final de setembro de 1969, em seu apartamento na Rua Duque de Caxias, em São
Paulo, onde abrigava armamento, que seria usado pela ALN (Aliança Libertadora Nacional), da qual seu irmão era um dos dirigentes. "Todos nós
lutávamos para mudar aquela situação. Não ficávamos só na teoria", conta.
Fon ficou preso por aproximadamente 60 dias. Foi submetido a todo tipo de tortura. Uma
delas era um tipo de cela, conhecida como geladeira, que tinha 20 de altura por 1,5 m de largura. O local tinha variações extremas de
temperatura, indo de 0º C a 40 º C. Mas para Fon a tortura psicológica era pior. "A polícia invadiu o funeral de meu pai atrás de pessoas e
informações".
Fon foi o primeiro jornalista a ser detido quando se legitimou a censura no País, em
13 de dezembro de 1968, com o AI-5. "Trabalhava no Jornal da Tarde e cobri a prisão do proprietário do jornal, Rui Mesquita, por causa do
ocorrido. Como era repórter na Editoria de Polícia, fui à delegacia esperar a chegada do diretor. Par ameu azar, naquele mesmo momento, a polícia
recebia o AI-5. Decretaram voz de prisão no ato. Fiquei detido por volta de quatro horas", relata Fon, que escreveu o livro "A História da
Repressão Política no Brasil".
Embora não haja mais censura declarada, Fon faz um alerta: "O AI-5 ainda está vivo. O
oficialismo, em forma de press-releases, é a principal pauta das redações. Não há mais o jornalismo investigativo".
(Ana Renata Gianini de Melo).
"Foi a pior noite da minha vida"
Uma das vítimas da ditadura que mais pesou sobre os
ombros dos militares foi o jornalista Wladimir Herzog, na época editor da TV Cultura. A prisão, que resultou em sua morte, modificou completamente a
vida de sua esposa Clarice Herzog.
A dor de Clarice começou em uma noite paulistana de 1975, quando homens do DOI-CODI
apareceram em sua casa atrás de Herzog, que estava na Redação da TV Cultura, colocando o telejornal no ar. Clarice correu até lá e presenciou o
marido negociando sua apresentação na manhã do dia seguinte. "Foi uma das piores noites de minha vida". E a última vez que ela viu o marido. Segundo
ela, os militares afirmavam que seu marido era ligado ao Partido Comunista.
Clarice, que se casou com o jornalista quando tinha 22 anos, soube do enforcamento de
seu marido por intermédio dos colegas da Imprensa. "O pessoal da TV me informou", lembra. Na época foi gerada grande polêmica: Herzog se matou ou
foi espancado até a morte. "Porém, graças à imprensa, que ainda estava atuante apesar de tudo, foi provada a culpa dos militares".
Ela afirma que teve dificuldades para criar seus dois filhos. "Na época o mais velho
tinha nove anos e o menor sete. Foi difícil explicar para eles que seu pai tinha sido assassinado, e não se suicidado, como foi divulgado pelos
meios de comunicação". Clarice, que não gosta de se lembrar destes tempos, concorda que a morte de seu marido foi um dos divisores de água da
ditadura militar. "A partir daí a linha dura foi afrouxando'". (Aldo Neto).
"Seríamos os próximos"
Além de Wladimir Herzog, outros jornalistas tiveram seus
destinos traçados pelo AI-5. É o caso do jornalista João Moreira de Sampaio Neto, na época presidente do Centro Acadêmico do curso de Jornalismo da
Faculdade de Filosofia de Santos.
No dia da assinatura, Sampaio foi surpreendido por uma tropa do exército que o
aguardava na porta da sua casa. Foi preso e levado ao 2º Batalhão de Caçadores, onde permaneceu por 48 horas. Lá já estavam o então recém-eleito
vice-prefeito de Santos Oswaldo Justo, o candidato derrotado à prefeitura de Santos na mesma eleição em 68, Francisco Prado, e o bispo diocesano de
Santos, D. David Picão, entre outras personalidades da Cidade.
Sampaio relembra com tristeza as torturas psicológicas a que foi submetido. "Eles nos
tiravam da cela, levavam a uma sala e liam o AI-5 inteiro. Depois, perguntavam o que achávamos daquilo. Além disso, eles davam tiros de metralhadora
do lado de fora do quartel e diziam que seríamos os próximos".
Para Sampaio, este momento de sua vida leva a uma reflexão sobre tudo o que ocorreu.
"Agora que este ato completa 30 anos, tiramos uma lição. O mais impor-
[N.E.: SIC]
"A família foi dissolvida"
A família Capistrano também foi vítima da ditadura
militar. Os problemas começaram a surgir na vida de David Capistrano, desaparecido político e pai do ex-prefeito de Santos David Capistrano Filho,
muito antes do AI-5. Capistrano e a família tiveram suas vidas reviradas já no dia do Golpe Militar, em 1º de abril de 1964.
Capistrano era proprietário do jornal "A Hora" em Recife (PE) quando o golpe
foi anunciado. "A família foi dissolvida. Meu pai passou a viver na clandestinidade e eu, minha mãe e minhas duas irmãs fomos presos", lembra o
ex-prefeito.
Capistrano Filho só reencontraria a mãe e as irmãs em dezembro de 1965. No período em
que foi mantido preso num quartel em Recife, ele conheceu os primeiros sinais de tortura psicológica. "Eu tinha apenas 15 anos e fui mantido numa
solitária, sem nenhum contato com minha família", desabafa o médico.
A família só voltaria a se reunir, inclusive o pai, em janeiro de 1966, no Rio de
Janeiro, onde passaram a residir. David Capistrano, que já tinha mudado a aparência usando bigode e emagrecendo, passou a usar o nome falso de
Enéas. Além disso, toda a família era obrigada a agir da forma mais discreta possível. "Não podíamos receber visitas e nem dar o nosso endereço para
ninguém", afirma Capistrano Filho.
O cerco começou a fechar para David Capistrano em junho de 1972, período de ditadura
mais intenso após o decreto do AI-5. Ele foi para um exílio em Praga, na antiga Tchecoslováquia, onde trabalhou como jornalista na Revista
Internacional. "Mas meu pai era muito apegado à família e resolveu voltar ao Brasil".
Porém Capistrano não chegou ao seu destino, tendo desaparecido no trajeto entre a
cidade gaúcha de Santa Maria e a capital de São Paulo, junto com um amigo espanhol que o ajudava na viagem. "A certeza da morte do meu pai veio nove
meses depois, com a declaração do Governo afirmando que ele continuava exilado em Praga, sendo que já tínhamos informações de pessoas que o
abrigaram no Rio Grande do Sul". Mais tarde, ele obteve informações que seu pai e o amigo foram torturados até a morte e que o corpo de Capistrano
foi esquartejado e enterrado em pedaços ao longo da Rodovia Rio-Santos. (Soraya de Souza).
"Tinha-se medo de tudo"
Muitas pessoas ainda não imaginam como foi viver em um
período onde a censura era brutalmente imposta, em que jornais eram confiscados, pessoas seqüestradas, mortas e torturadas por um governo
extremamente poderoso. Não se tinha liberdade de ir e vir, tinha-se medo de falar, andar pelas ruas, medo de ser cidadão brasileiro". O AI-5 traz
lembranças traumáticas para Nelson Fabiano Sobrinho, ex-deputado estadual, que teve seu mandato cassado e seus direitos políticos suspensos por dez
anos.
"Minha história teve início em 65 como delegado da UNE quando lutei por várias
reformas: agrária, universitária e urbana". Quando universitário, Fabiano pertenceu ao "Movimento Acadêmico Renovador" e em 72 saiu candidato a
vereador pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e no "partido, lutei por várias reformas políticas e pela liberdade pública".
"Fui eleito vereador em 72 e passei vários episódios interessantes. Entre eles, o "senta-levanta",
atitude dos vereadores ao votar projetos na Câmara. São vitórias de vários dias e noites de discussões que estão guardadas em minha memória".
Fabiano foi considerado o melhor vereador daquele mandato e teve o maior índice de votação para deputado estadual da história de Santos em 74, mais
de 40 mil votos.
"Na Assembléia, durante dois anos, denunciei os casos de seqüestros, de torturas e de
mortes que aconteciam no País. Em janeiro de 76 tive meu mandato cassado e meus direitos políticos suspensos. Mas tenho certeza que contribuí para o
restabelecimento do Estado de Direito". (Renata Ozores)
"Enfrentei minha provação"
Outra vítima da ditadura foi Ademar dos Santos. Ele
relembra até hoje o que falou quando entrou em casa: "abro a porta da minha casa, tranqüilo, com a minha consciência em paz porque como cidadão,
como homem, acho que enfrentei a minha provação". Aconteceu há 34 anos.
No dia 18 de abril de 64, Ademar dos Santos, suplente do Sindicato dos Operários
Portuários, pegou uma jaqueta de náilon com gola, olhou para a família, seguiu para depor no Departamento Pessoal da Companhia Docas de Santos e foi
detido pelo Comando Revolucionário.
Após 26 dias, Ademar fazia parte do grupo de homens presos no
navio-presídio Raul Soares, onde ficou por seis meses e 18 dias. Torturas mental e física, batidas de madrugada realizadas pela Polícia
Marítima com a finalidade de recolher depoimentos, além da bolontina, apelido dado para a comida servida às quintas-feiras, faziam parte do
cotidiano que Ademar conheceu nas dependências do navio.
"A minha consciência não me acusa de crime algum por ter sonhado com uma sociedade
justa, igualitária. Coisa essa que, tenho quase certeza, partirei e não a verei". (Lizandra Rodrol)
"Onde tudo começou"
O ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, na
noite de 13 de dezembro, por meio da cadeia nacional de rádio e TV, declarou o Ato Institucional nº 5, que conferia poderes totais e absolutos ao
Governo e seus três ministros militares, e o Ato Complementar nº 38, que decretou recesso no Congresso.
Em Santos - Por sua importância de âmbito nacional, em virtude de ser o maior
porto da América Latina e aqui haver um grande número de sindicatos e políticos de oposição (Mário Covas, Gastone Righi e Rubens Paiva), o município
de Santos passou a ser controlado pelo Governo, sendo definido como área de segurança nacional em 69, perdendo o direito de eleger prefeito. Como
não poderia ser diferente, Covas, Gastone e Paiva tiveram seus mandatos cassados por tempo indeterminado e a Câmara foi fechada por oito meses.
A Fortaleza de Itaipu, em Praia Grande, era o local para onde eram trazidos todos os
presos políticos e integrantes das lutas armadas no País: UPR, VAR-Palmares, ALN, MR-8 e o próprio PCB, PC do B.
(Marcelo Moreira). |