O prédio da primeira sede própria, na Rua Amador Bueno, 256,
vendido em 1926 ao Bispado, que em seu lugar construiu e instalou a Cúria Diocesana
Ilustração publicada com a matéria
A veneranda Sociedade Humanitária
Daniel Bicudo
Em priscas eras, teve o nome aromal de Rua das Flores a
nossa, de hoje, Rua Amador Bueno.
Esta rua, em seu longo traçado partindo da Praça dos Andradas e terminando no Paquetá,
é uma das ruas centrais que, embora em ritmo vagaroso, se vai transformando e perdendo a tranqüila feição de outrora, de rua sobretudo residencial.
Como nenhuma outra rua, teve a singularizá-la, distanciadamente, solenes edifícios em
que funcionaram grandes associações, tais como: o Real Centro Português, a Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio, o Clube XV e, lá no
fim, a Real e Benemérita Sociedade Portuguesa de Beneficência.
Desses antigos edifícios resta apenas hoje, conservado em seu puro estilo manuelino, o
do Centro Português, servindo sempre de sede magnífica da prestigiosa agremiação lusitana. Os outros já se foram, no melancólico destino dos
casarões que as transformações urbanas condenam ao desaparecimento inexorável. Depois de desaparecidos, deles ficam quando muito, como daqueles
referidos edifícios ficaram, o documento fotográfico e a tradição.
E é precisamente da tradição e da recordação que aqui me valho para, nestas linhas em
que focalizo aspectos extintos da Rua Amador Bueno, ocupar-me da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio, no tempo em que a conheci em sua
sede possuída naquela velha rua. Faço-o neste passo, com o objetivo precípuo de tecer-lhe saudosas referências, no transcurso de mais uma de suas
gloriosas efemérides.
É a sua octogésima data de fundação a que agora se celebra. E, por esta razão, vem de
molde afirmar-se que raras, muito raras, são as velhas instituições que, como a Humanitária, hajam transmitido de umas a outras gerações tamanha
cópia de elementos recordativos ligados a uma classe de tão grande significação como é, indubitavelmente, a classe comercial. Instrução, benefícios
e recreação proveitosa, são termos que qualificam grosso modo o ativo confraternal de seu dilatado currículo.
E pouco haverá a distinguir entre estas proposições qual delas a mais impressiva ao
parecer. Pois que, na verdade, em todas, em cada uma, ou mesmo numa só, se poderão fixar minúcias pelas quais se reparta a grata lembrança de velhos
conhecedores.
Assim, por exemplo, quanto à instrução, veteranos comerciários haverá que se recordem
das antigas aulas noturnas da Humanitária, em que adquiriram ou aperfeiçoaram conhecimentos de contabilidade, de geografia, do vernáculo e dos
idiomas necessários. Haverá quem retenha o nome de mestres que ali lecionaram, como pessoalmente guardamos o do professor John Cross e suas aulas de
inglês. Dava-as ele numa sala do andar térreo, a primeira à esquerda de quem entrava no edifício. (Cross foi pai de Haroldo e Victor Cross, jovens
que se ligaram ao comércio e às primícias do futebol em terra santista).
No que concerne a benefícios de assistência social, força é reconhecer ter sido a
Humanitária pioneira. Em seu campo comercial os prestantes auxílios foram numerosos, num tempo em que essa modalidade constituía razão de ser de
raras organizações associativas de classe. Longe estava então a idéia governamental dos institutos de previdência, com o caráter de contribuição
compulsória. A superveniência dos institutos, como se deve compreender, reduziu a extensão dos auxílios sociais da Humanitária. Não se extinguiram
eles, porém, consoante algarismos de reiterados relatórios, até hoje continuados.
Criada em 1895, a Banda Filarmônica da SHEC foi uma das
precursoras da arte musical santista.
Durou cinco anos, apresentando-se em Santos, São Paulo e Mogi das Cruzes.
Foi seu regente o maestro Patrício Soares
Foto: F. Marques Pereira, na Revista Comemorativa ao Centenário da Sociedade Humanitária dos
Empregados no Comércio de Santos - 1879 0 12 de outubro - 1979, Santos-SP, 1979
E, no capítulo das recreações proveitosas que a Humanitária já teve, uma só preencherá
a mancheias estas reminiscências. Aludimos à sua saudosa banda de música, composta exclusivamente de associados. Não há hipérbole no dizer que foi a
melhor banda que já existiu nesta cidade, num tempo em que outras congêneres faziam as delícias locais, com seus concertos domingueiros nos jardins
públicos. Os da chamada "Banda da Humanitária" eram os mais apreciados.
O regente, Patrício Soares, cidadão preto, foi erguido às culminâncias de grande
maestro. E, com este renome, era de ver-se o seu garbo, de batuta em punho, a reger os músicos amadores nos solenes minutos das exibições. De braços
abertos, no começo, em acenos de vôo à medida que os acordes subiam do instrumental, marcava o andamento e as pausas, riscava no ar gesto incisivo
às notas vibrantes e, de mão espalmada, o abrandava na direção do acompanhamento. Fremia, nervoso, para animar os executores, erguia-se na ponta dos
pés, voltava-se para os lados, e, no comando dos agudos e dos graves, curvava-se tanto para a frente, braços em cruz, que até parecia querer pular
do estrado.
Aos aplausos que rebentavam, no final, multiplicava-se, exausto, em mesuras teatrais.
E foi sob tal aura que o maestro Patrício, um dia, levou a Banda da Humanitária a São Paulo, para tocar no coreto do Largo do Palácio, o mesmo em
que se exibia a Banda da Força Pública Estadual. Fato inédito, então. Foi notável a repercussão do evento nos centros associativos e musicais do
tempo. O seu registro é de ordem a acentuar bem o que foi a notável Banda da Humanitária, condenada entretanto a desaparecer em breve, pela razão
talvez de sua comprovada incompatibilidade com funções taxativas da Sociedade. E assim foi que se extinguiu.
A biblioteca da Sociedade Humanitária é que, já naqueles tempos, era a melhor e quase
única de Santos. Ocupava duas grandes salas do antigo sobrado, com a maior parte das paredes tomadas por altas estantes, pejadas de livros
encadernados. Nessas dependências do prédio de há muito demolido repousa nossa mais comovida recordação. Hoje, tão distante daquelas horas serenas,
de muda curiosidade intelectual, em que o mocinho inexperiente se isolava na aridez dos clássicos, e, após, se refocilava nos "Contos", de
Fialho e nas brejeirices de Paulo de Kock - hoje, ainda sentimos um vago perfume de saudade daqueles momentos.
E há nessa saudade uma centelha de gratidão. Somos, com efeito, até hoje agradecido à
velha Sociedade Humanitária pelo que ali, nos livros de sua biblioteca, nas suas mesas de leitura, pudemos descortinar nas primeiras caminhadas
hesitantes do pensamento. Foi ali que fortalecemos a confiança necessária para enfrentar o desconhecido. Ali foi que vimos, afinal, encantado e
confuso, visitantes ilustres que ali foram conhecer o acervo de cultura que a sua biblioteca acumulava.
Recorda-nos, ainda, a propósito, a visita minuciosa de Coelho Neto, então na sua maior
notoriedade literária, e a impressão por ele sintetizada no livro de visitantes apresentado pela Diretoria: " - À
Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio, de Santos, Coelho Neto 'DEVE'".
E - coisa ainda mais curiosa - foi nas salas da Humanitária que se apresentou em
Santos, pela primeira vez, uma tímida menina, que tocava piano, e que se fazia acompanhar da sua progenitora. Lembro-me do alvoroço de que se
possuiu o moço comerciário Leôncio de Resende, convocando outros moços para que fossem ouvir a pianista prometedora, que era de origem de sua terra
natal, São João da Boa Vista. E o nome dessa predestinada adolescente, de todo desconhecido, seria mais tarde revelado, como foi, à admiração
paulista, à admiração nacional e à admiração do mundo, pois era Guiomar Novais!
Não lhes parece que é sobremaneira notável, honrosamente glorioso, o passado de uma
instituição sempre tão abnegadamente útil, como até hoje tem sido a Sociedade Humanitária, da qual se pode vir contar, ao léu da memória, tanta
coisa interessante? |