Palco de muitas cenas deploráveis no passado, o imóvel situado na Rua São Paulo, que durante 36
anos abrigou pacientes psiquiátricos, está sendo alvo de ações judiciais
Foto: Walter Mello, em 31/10/2008, publicada com a matéria
original
TORMENTO
Casa Anchieta é só preocupação
A população vizinha, que antes vivia assustada com os gritos dos pacientes,
agora convive com a insegurança. Prédio do antigo manicômio, chamado de Casa dos Horrores, está em estado de abandono, com os moradores ameaçados
por doenças. 15 famílias ocupam atualmente o imóvel, que já chegou a abrigar 75 pessoas em condições insalubres
Victor Miranda
Da Redação
O imóvel da Rua São Paulo, 95, na
Vila Belmiro, em Santos, parece estar fadado ao apelido que recebeu há mais de 40 anos: Casa dos Horrores. Afinal, mesmo duas décadas após a
interdição da Casa de Saúde Anchieta - que funcionava no local e sofreu intervenção da Prefeitura no dia 3 de maio de 1989 -, as pessoas que moram
nas imediações ainda ficam angustiadas e assustadas com o que acontece da porta do estabelecimento para dentro.
Ao contrário daquela época, porém, os temores hoje são outros. A população que durante anos
acostumou-se a ouvir choros e gritos de socorro dos internos do antigo manicômio, agora é quem pede ajuda, sob a alegação que o imóvel tornou-se
inseguro e um antro de ratos.
O antigo espaço da Casa de Saúde Anchieta está ocupado há mais de dez anos, quando foi totalmente
desativado pela Prefeitura. Desde então, muitas pessoas passaram a viver ali, em condições precárias. As celas e quartos com suíte viraram
apartamentos que, em uma comparação bem verossímil, lembram muito os cortiços.
Os novos moradores da Casa Anchieta são pessoas desempregadas, desalojadas, que vêm de outras
cidades ou que estão atrás de um lugar melhor para ficar. Uma população flutuante que já chegou a ser de 75 pessoas, mas que, atualmente, está
restrita a 15 famílias.
As contas de água e luz são pagas por rateios. Há quem diga que até Internet existe lá dentro.
Exagero ou não, of ato é que o local segue abandonado pelos donos de direito, devido a um problema judicial (ver matéria),
enquanto a vizinhança não vê a hora que essa pendência seja resolvida para voltar a viver em paz.
Intervenção |
No dia 3 de maio de 1989, a então prefeita Telma de Souza decidiu intervir na Casa de
Saúde Anchieta, um hospital psiquiátrico com, então, 36 anos. Nas palavras da hoje vereadora, a intervenção aconteceu porque "aquilo era um
depósito de lixo humano, um verdadeiro ponto de exclusão, algo que combatíamos". A decisão se deu depois que, no começo do seu mandato, um
interno foi morto por outro. "Não tinha condições de manter aquilo. Era a terceira morte em poucos anos. Havia apenas um psiquiatra para
atender 600 pessoas que estavam em um local com capacidade máxima de 240. Era a única coisa a se fazer". |
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Insegurança - O sentimento de insegurança entre os vizinhos é tão grande que eles relutam
em falar sobre o assunto. Alguns reconhecem que algo precisa ser feito, mas se negam a dar depoimentos à equipe de reportagem. Outros, só aceitam
falar com a garantia do anonimato.
"Desde o início da ocupação, eu me sinto inseguro. Antes, eram loucos que moravam ali. Sabíamos da
situação deles, mas o pavor não passava da porta para fora. Hoje, somos nós que vivemos trancados dentro de casa, com medo que algo ruim aconteça",
diz uma senhora que mora ao lado do estabelecimento há 34 anos.
Um outro morador conta que no passado este receio já foi maior. "Antes era só gente da pesada que
morava ali. Hoje temos família e pessoas trabalhadoras. Arrisco até dizer que eles são bons vizinhos, pois nunca mexem com quem é daqui. Mas não
posso negar que passam uma impressão negativa ao bairro".
Desinteresse |
"Sinceramente, não me interesso pelo que estão fazendo no imóvel. A Prefeitura criou um
problema, e é ela que deve resolver. Quero mais é que o circo pegue fogo" |
Um dos proprietários da Casa de Saúde Anchieta, que não quis se identificar |
Saúde - Para um aposentado, a principal preocupação que existe hoje é com a saúde pública.
Aquele lugar não tem higiene. É muito comum estarmos conversando no portão e vermos ratazanas enormes saindo do local. Por ser propriedade
particular, a Prefeitura não tem autonomia para mandar fiscais para verificar as condições do imóvel. E nós vivemos com receio de pegar uma doença".
O risco de infecções e as más condições do antigo manicômio são motivo de preocupação até mesmo
para quem mora no local. Uma moradora, que saiu de Guarujá para viver no conjunto, diz que seu maior objetivo é não ficar lá muito tempo.
"Sei que um lugar assim não é o melhor para morar. Mas, hoje em dia, quem pode se orgulhar de
morar em uma casa dos sonhos? São poucos. A gente vive como pode. Um dia vou sair daqui. Mas, enquanto este dia não chega, agradeço a Deus pelo que
tenho".
Ameaça |
O terreno está sub judice e os moradores podem ser obrigados a deixar o local a
qualquer momento. Eles já estão sendo orientados a procurar outro lugar devido às pendências judiciais que existem sobre a ocupação do imóvel,
que, no passado, chegou a ser invadido por marginais. Hoje, as maiores preocupações são com os ratos e com a falta de segurança |
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"Era uma favela em um bairro nobre"
Falar na situação atual do imóvel onde antes funcionava a Casa de Saúde Anchieta exige que se
mencione o autônomo Dolid Oliveira. Morador da Rua São Paulo há anos, ele assumiu a condição de administrador do local, incumbência pela qual faz
questão de ressaltar que jamais visou lucro.
"Acho engraçado que as pessoas sempre querem saber se eu ganho algum dinheiro. Nunca recebi um
centavo pelo que faço. Pelo contrário. Já tive que tirar do bolso para quitar contas. O que eu não queria era ver as coisas que aconteciam há dez
anos, com marginais invadindo a área e desvalorizando o meu imóvel como vizinho".
Dolid argumenta que, se não fosse pela intervenção, as coisas estariam piores. "Aquilo era uma
favela no meio de um bairro nobre. O fedor era terrível e nós, da vizinhança, éramos intimidados pelos moradores. Transformamos aquilo, fizemos
reformas e organizamos tudo. Sou um ex-policial e não aceito bandidagem".
O autônomo acrescenta que já foi considerado judicialmente administrador da casa e, por isso, é o
responsável pelo pagamento das contas que, segundo ele, não têm um valor fixo. Cada um contribui com o que pode. "Os moradores dão o dinheiro na
minha mão e eu repasso integralmente. Como disse, há vezes que preciso pagar do meu bolso".
Apesar disso, porém, Dolid sabe as pendências judiciais que estão imputadas sobre o imóvel. Por
isso, garante que ele mesmo incentiva os atuais moradores do antigo Anchieta a buscarem outros rumos.
"Não é o local ideal para se viver. O terreno está sub judice e essas pessoas podem ser
desapropriadas a qualquer momento. Mas eu recomendo que eles aproveitem o espaço enquanto puderem para guardar dinheiro e, no futuro, irem para uma
casa melhor".
Brigas e dívida |
No entender do proprietário da Casa Anchieta que aceitou falar com A Tribuna sem se
identificar, a única maneira de resolver essa queda-de-braço é com a aquisição do imóvel pela Prefeitura. Porém, ele mesmo vê isso como
inviável, visto que os R$ 6 milhões de dívidas são muito superiores aos R$ 4,5 milhões do valor venal do local. A Administração, por sua vez,
afirma ter interesse. Em nota, informou que após o levantamento das dívidas, "o preço do imóvel será reavaliado para que a construção seja
repassada para o Município". |
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Solução depende de decisão judicial
Os problemas envolvendo o antigo manicômio Anchieta estão muito além do que pode ser visto a olho
nu. Dívidas, briga política e questões judiciais impedem que qualquer medida seja tomada no imóvel.
O problema é justamente saber onde começou esse embate. Segundo um dos seis proprietários do
local, que não quis ser identificado, tudo começou quando a então prefeita e hoje vereadora Telma de Souza (PT) anunciou a intervenção na Casa de
Saúde Anchieta. Cerca de 400 funcionários teriam perdido o emprego.
"Até aquele momento, o hospital funcionava normalmente e estava zerado em dívidas. Tivemos uma
disputa judicial e perdemos para a Prefeitura. Estas pessoas que foram demitidas entraram com ação e hoje as dívidas trabalhistas passam de R$ 6
milhões".
Porém, esta alegação dos proprietários é negada pela ex-prefeita. "Pagamos, na época, todas as
dívidas do hospital. Nossa postura foi correta. Tivemos decisão favorável em todas as ações, o que mostra que estivemos isentos em todo o tempo. Se
fosse preciso, eu interviria mil vezes", defende-se Telma. Para ela, se há dívida, não surgiu no seu governo.
Procurado, o ex-prefeito Beto Mansur (PP), sucessor de Telma, afirmou, por meio de sua assessoria
de imprensa, que não pode se pronunciar enquanto a Prefeitura não apontar se as dívidas são, de fato, oriundas de sua gestão.
A Prefeitura, por sua vez, não faz muita questão de tornar o caso claro para a população. Após
receber um questionário solicitando diversas informações sobre o imóvel, limitou-se a dizer que "está trabalhando no levantamento das dívidas
referentes ao caso".
"Pagamos, na época, todas as dívidas do hospital. Nossa postura foi correta. Se fosse preciso, eu
interviria mil vezes" - Telma de Souza - vereadora e ex-prefeita de Santos
Foto publicada com a matéria original
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