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AS
AÇÕES DE REINTEGRAÇÃO
Estratégias, atividades,
cooperativas - Engels
Como na definição antropológica de Friedrich Engels, como contribuição à proposta de Karl Marx - do
trabalho formador das próprias feições humanas e do próprio homem, como elemento de sobrevivência e realização, unindo Basaglia no sentido da tutela
como momento de emancipação -, foi preciso praticar o exercício formal do trabalho para reviver e reconstruir aquelas pessoas, em técnicas e
estratégias socializantes. A transição do macaco em homem, escreve Engels, se dá através da criação e utilização de instrumentos de trabalho
agregados às suas necessidades de sobrevivência.
A mão não é apenas o órgão do trabalho, mas produto dele, que desenvolve assim o domínio da natureza
detonando a evolução da. Mas essa evolução, quando deixa de ter como objetivo o homem para buscar o lucro e acumulação, deturpa e deforma o sentido
do trabalho inerente ao homem, para transformá-lo em seu instrumento de produção a serviço de outrem. As cooperativas vão transformar esse processo
e vivenciar o trabalho comum e procurar desalienar a atividade produtiva.
Com as cooperativas integradas às demais secretarias e empresas municipais e privadas, se consolida
socialmente o projeto. Entendendo a tutela como momento de emancipação e não mais de repressão: emancipação no sentido de que a pessoa, quanto mais
necessitada de proteção, tanto mais deve viver positivamente a própria menoridade, para crescer, recuperar autonomia, responsabilidade. A
tese é de Franco Basaglia e, seguida à risca, fez com que se criassem mecanismos de reintegração com aprendizado dos pacientes com sofrimento
psíquico, que fosse capaz de trocas sociais, para adentrar ao mundo do qual foram isolados. Como se vê, é simples: basta querer.
Para reverter o quadro de centenas de pessoas humanas degradadas, submetidas por tanto tempo,
devolvendo sua identidade, redimensionar direitos e deveres, paralelamente às condições técnicas era preciso estabelecer relações de trabalho e
convivência com os pacientes, a abertura dos espaços internos, a proibição de atos de violência entre os pacientes, assim como a utilização de celas
fortes ou eletrochoques – esse terrível tratamento que era punição, igual ou pior aos centros de tortura da Ditadura Militar recente ou à
fictícia máquina de torturas da Colônia Penal - do livro de Franz Kafka.
Novos profissionais e auxiliares de enfermagem foram precisos no Anchieta sob intervenção municipal,
muitos mais. Debateu-se a violência existente de parte a parte, entre internos e funcionários, entre eles mesmos. Identificação e tratamento das
doenças existentes entre eles, hipertensão, diabetes, diarréias, piolhos e sarna em quase todos, devido às graves condições que lhes eram impostas
apesar de garantidos pelas verbas SUS, que iam para a conta particular dos donos, sem se traduzir e condições adequadas para os internos. Oferecendo
a liberdade de escolha, a não- imposição do ofício, parte desta terapia individualizada que projeta o resgate de cada um de acordo com suas
características.
A criação de unidades de produção favoreceu a grupalização e a socialização, instrumentos fundamentais
do compartilhamento solidário associadas às carências locais espalhadas pela cidade facilitando essa reinserção dos novos membros. Logo após
a injeção de recursos neste processo, para uma nova contratualização estimulada e não-sujeita à exclusão e cronificação dos sujeitos, logo se
teria sua normalização, vidas independentes. Cooperativas seriam o rumo da emancipação destes seres, desenhando a da sociedade como um todo.
Como exemplo, a promoção da convivência dos pacientes com os integrantes do projeto Meninos de Rua
causou, inicialmente, reações hipócritas e desaprovadoras de uma parte da sociedade, dos que queriam que tudo ficasse como estava, os meninos
abandonados nas ruas e os doentes internados e isolados. Diziam que iriam agredir-se, em uma relação deletéria que se mostrou ao avesso, produtiva
reintegradora de vontades. Foi apenas uma das ações praticadas, neste rol de estratégias que, afinal, deu certo.
Construiu-se uma nova ordem política interna, um novo padrão de relacionamento, fez-se assembléias.
Antes, havia uma divisão classista dos que trabalhavam na manutenção do hospital (limpeza, cozinha, vigilância) substituindo os funcionários
e ampliando o lucro - que recebiam por isso mais alimentos, melhores acomodações e mais poder sobre os demais. Foi a partir destes internos,
modificando e invertendo as relações, que se propagaram e se estabeleceram as novas regras.
No avanço do processo, na fase avançada, foram criadas atividades como o Projeto Lixo Limpo
(1990), em convênio do Anchieta com a Prodesan, para coleta e reciclagem, o Projeto Terra (1990), de aprendizagem de produção vegetal
no Horto Municipal, integrada com o programa "Adote uma praça" e com a iniciativa privada. Projeto Vendas, para barracas comercializando mel,
Projeto cantina para todos (1992), produzindo e comercializando doces e salgados, Projeto Marcenaria (1992), confeccionando móveis e
objetos em madeira e fazendo serviços de reforma.
Foram produzidos ainda o Projeto de Limpeza e Desinfecção de caixas d'água, na atividade, o
Projeto Dique, de construção civil e desfavelamento, o Projeto Serigrafia, produzindo camisetas promocionais (1994), Projeto
Consertando (1996), de manutenção predial na CSTC. São exemplos da reinserção social reconstrutora da cidadania, na invenção de espaços reais de
trabalho. Foi habilitando, aprendendo, criando junto – ensinando a "volta a ser" que este trabalho foi executado.
"Onde ficarão os loucos?"
O estímulo à comunicação grupal com supressão da violência agiu em busca de um projeto de humanização
que levasse à própria extinção daquele ambiente tido como necessário. "Onde colocaremos os loucos? ", se perguntava pela cidade quando se
falava em fechar o Anchieta, em questões estimuladas pelos grupos oposicionistas ao poder político que se implantara nesse ano e já ousava. Como
eles viveriam soltos? E os remédios? E seu trabalho? Onde ficariam, se as famílias os rejeitassem? Como se comportariam lá fora?
Eram dezenas de perguntas sobre este futuro analisado e debatido a cada passo, sem medo, pelos
técnicos e profissionais reunidos com o pessoal de enfermagem e apoio e os pacientes, se possível integrando as famílias em grandes assembléias. Na
verdade, não havia loucos, mas desajustados sociais, problemas ocasionais de transtorno mental que se agravaram naquele local, problemas que
poderiam ser assistidos e tratados sem as internações cruéis.
Este, o da demolição do manicômio, era um processo revolucionário que não havia como ser contido, pois
despertara seres e vontades. Para reconduzir aqueles cidadãos para uma vida normal, era preciso não apenas dissolver o status do hospício,
mas viabilizar maneiras de sua reintegração na sociedade sem tutela, valorizando aqueles seres ao invés de apenas assisti-los
caritativamente. Ao final, em um processo científico e essencialmente humano, os loucos desapareceram, se reintegrando na sociedade. |