Instalações da Sociedade São Vicente de Paulo na Avenida Rodrigues Alves
Foto: Carlos Pimentel Mendes, em 9 de abril de 2007
O Jubileu da Sociedade de São Vicente de Paulo
A Sociedade de São Vicente de
Paulo iniciou, no dia 28, as comemorações do 50º aniversário de sua instituição, em Santos, que ocorre a 2 de junho.
Publicamos abaixo o discurso pronunciado, ao microfone da P. R.
G.5, pelo nosso diretor, dr. Nicanor Ortiz:
"Heróico vicentino:
A caridade é a máxima virtude da tua exemplar existência de cristão.
Anda, sem perder hora, no meio evangélico dos pequeninos, por que aí, como um fio de
sol no seio das trevas, aclara e aquece, anima e reconforta, encoraja e restaura.
Acarinha, com o seu límpido sorriso, a infinita ala das crianças que pedem à tua porta
e lhes dá, com o pão de boca, a doce ânsia de viver e o sublime encantamento de ser feliz.
Aos que entram em anos, pés na algente estrada e à cabeça a neve do tristonho inverno,
empresta o que é demais na toalha da tua mesa, branca, iluminada e farta.
Nunca se alheou aos sofrimentos dos infelizes que têm, de tanto chorar, glaciais os
lábios, túmidas as pálpebras, sanguíneos os olhos e remissos os passos.
Ela tem, por maravilha, todas as formas, na sua extensão imensa de oceano, na sua
amplitude mística de céu. Quando não pode misturar-se com os humildes, quando não ameiga as crianças, quando não sacia a penúria, quando não enxuga
a lágrima nem reprime o soluço - faz o que fazem os que não vêem mas sentem: sopeia, em seu peito, a fio, numa agonia de compunção, o dó, a piedade,
a dor, o tormento.
Se choras com os que têm fome e desalento, dando-lhes com que encham o vazio da
pobreza; se umedeces, com a ponta dos teus dedos, a língua ressequida dos que têm sede; se limpas, com as fímbrias do teu lenço, os olhos marejados
da angústia; se guardas, de boa graça, a moeda com que enriqueces as magras mãos dos miseráveis; se, pelo menos, sentes compaixão por aqueles a quem
nada deste, mas se pudesses tudo darias - faze-o sem os alardes dos tímbales com que a mendace filantropia proclama os seus feitos. Imita assim o
bom, o tranqüilo, o manso, o docíssimo, o silencioso, o mais humilde dos humildes, esse meigo São Vicente de Paulo, que traz a caridade nos olhos,
baixos, na cabeça reclinada, no frouxo andar, nas mãos dadivosas, no largo peito, no estamenho da roupeta.
Nunca se viu virtude tão singular. Tem, no milagre das cores, as cores mais lindas. É
vermelha, no campo raso das batalhas, pensando as chagas dos que ainda ficam para a luta e confortando os que partem para a longa viagem, ao fim da
estância, de onde ninguém ainda voltou. É branca, com alvura de inocência, quando ela ressumbra de um desejo que quer ver a felicidade debruçada à
janela dos desditosos. Veste-se de verde, a roupagem da esperança, por que mora no mais alegre aposento do palácio encantado do coração humano, que
ministra aos moribundos o último anelo do minuto que vai morrendo. Amarela como o ouro, azul como o infinito, rósea como a rosa cor de rosa, na
corte, no asilo, na escola.
O teu santo furtou do terno Rabino da Galiléia o maior dos profetas, dos mestres o
maior, a divina doçura com que domava os incréus, mudava o rumo da vida dos ímpios, dava vista aos cegos de espírito, multiplicava os pães dos
esmoleres e transmutava no vinho bom de venturosos dias a água insulsa de aflição. Copiou da mais bela mulher de Nazaré, mais pura que a pureza,
aquele indulgente sorriso com que amainou, na terra, as mais impetuosas procelas das paixões e venceu os mais duros combates contra a indiferença.
Viu-se, como num espelho, na vida simples do Seráfico, em que refletiu o princípio cristão que manda, antes de mais nada e acima de tudo, dê o homem
a outro homem o pão que mata a fome, o manto que o agasalha ao frio e o teto que o protege ao tempo.
Sê, à singela, benigno com os pobres que te molestam, batendo com o cajado, à cancela
dos parques do teu alcácer. Não lhes jogues o dinheiro. Da tua mão à dele, a distância é igual à da dele à tua. Vai menos espaço que o que medeia da
tua boca ao coração.
Não te esqueças de que a pobreza cora e confunde o que foi rico. Para este, a tua
caridade escondida. Que ninguém saiba, dos teus lábios, que naquela cabana mora um homem que na sua nababia pisava alfombras no chão que seriam
toalhas de recamos na mesa do teu lar. Cose a tua boca, sobre a vida desse pobre envergonhado, diria Frei Luiz de Sousa, em estilo de grande
quilate. Entre a existência de um pobre que foi sempre pobre e o pobre que foi rico, vai enorme diferença: um bebeu e bebe o fel da esponja, outro
se bebe, agora, o travo atroz, sempre bebeu o doce néctar. Sofre, no caso, muito mais aquele que nunca sofreu.
Se na Primavera, céu de ouro e cinza, na floração das loiras aleluias, rosas de todo
ano, brando calor do sol, doce brisa da tarde - se estás, ainda na manhã, sonhando lindos sonhos, esperando que a ventura venha, sem as sombras dos
desenganos, enxuga a lágrima de um pedinte que atravanca o teu caminho. O teu patrono, em verde, colheu nas covas das mãos as gotas desse pranto.
Se no Estio, meio-dia da tua lida, bem andante e valeroso, quando a estrada vai
adiante, luzente e férvida, se começas aos quarenta - dá, por uma noite embora, teto, luz e leito ao peregrino cansado, sedento e faminto. O teu
patrono, muita vez, deu a sua cama e a candeia.
Se no Outono, longo da viagem, quando já se notam as primeiras pegadas na curva da
descida, as primeiras nuvens no horizonte e o primeiro sinal de fadiga - estende a tua mão em auxílio ao que te pede a esmola de um conselho.
Se no Inverno, fim da longa via, neve nos caminhos, desencantos e desilusões, antes da
despedida, tristeza dos crepúsculos - abre a tua bolsa e deixa cair sobre a terra o óbulo com que consolas os aflitos do Evangelho.
Não poderia o teu cândido protetor ter tido outro destino, sendo o de paladino da
virtude que dá, aos que necessitam, o pouco ou muito que sobra no alforje da economia. Ele não tem o empolgante desígnio das palmeiras que sobem,
vertical e majestosamente, num constante desafio às alturas, simbolizando a vaidade pela conquista da imensidão. É, antes, a sarça, sempre rasteira
e grave, a se espalhar por todos os lados, dilatando os seus braços, abrangendo horizontal e sofregamente a extensão maior, o mais vasto alcance.
Em um se vê a ostentação de crescer, o impulso de seduzir, o sonho de reinar. Em
outro, o desejo de sumir, o intento de viver em baixo, a sina de dormir à sombra.
Ao terminar a curta jornada pela vereda do bem, deixou, como o silvado, de poder a
poder, a latitude das imensidões imaturas. Nelas semeou, noite e dia, desabrochando, por fim, essa flor estranha que regas, com carinho de ciúme,
que proteges com zelo de entusiasmo.
Ele se foi no silêncio, com a mesma tranqüilidade de arroios, depois de ter visto, por
muitos anos, que a sementeira brotava, que a planta florescia, que o fruto debulhava. Ele foi o grande condutor, que dominou com a brandura. Ele foi
o doce armentário que venceu com o bem.
Como ele, tens sido indulgente, generoso. Espalha, por isso mesmo, benfazeres pela
terra, como o divino mago juncou pelo céu astros e estrelas. Dá ao mundo, quase destruído e bem arruinado, a prova de que, na prática dessa virtude
teologal se encontra a grandeza da minha, da tua religião e da nossa. Prefere, porém, o silêncio, a sombra, a penumbra, em cujo ambiente a mão
esquerda não sabe o que a direita faz, ao toque barulhento do tambor da ostentação, com que o filantropo promete o que vai dar e alardeia o que já
deu.
A tua escola é a maior, maior o teu mestre, a doutrina dele vem do maior livro, das
três virtudes a dele é a maior, tu terias de ser mesmo, entre os seus maiores discípulos, um grande epígono da caridade.
Por isso é que és vicentino de verdade!"
Igreja da Sociedade São Vicente de Paulo na Avenida Rodrigues Alves
Foto: Carlos Pimentel Mendes, em 9 de abril de 2007
Instalações antigas da Sociedade São Vicente de Paulo
Foto: acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão/SP
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