Dia 8 de novembro de
1943
A Sessão Solene de Instalação da
Semana Médico-Social da Santa Casa
Em prosseguimento às excepcionais e
imponentes festividades comemorativas do transcurso do quarto centenário da fundação da Santa Casa da Misericórdia de Santos, a Mesa Administrativa,
em observância ao programa de festejos elaborado, promoveu na noite de 8 de novembro realização de solene sessão destinada a assinalar condignamente
a instalação da Semana Médico-Social.
A expressiva solenidade, que se
revestiu de acentuado brilhantismo, constituiu acontecimento de remarcado cunho social e científico, tendo a assisti-la as figuras mais
representativas de nossa sociedade, autoridades civis e militares, classe médica de Santos, representantes de entidades culturais e instituições
médicas, Mesa Administrativa e Conselho Deliberativo da Irmandade.
O consistório em que se realizou a
sessão oferecia aspecto festivo, traduzindo o justificado júbilo da sociedade santista pela passagem do 400º aniversário da notável realização de
Braz Cubas.
Presidiu a solenidade o professor
dr. Clementino Fraga, membro da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil e da Academia Brasileira de Letras e uma das mais destacadas figuras
da ciência e das letras nacionais.
Tomaram ainda lugar à mesa as
seguintes pessoas: dr. Antônio Gomide Ribeiro dos Santos, prefeito municipal; sr. Benedicto Gonçalves, provedor da Irmandade; sr. João Teófilo de
Medeiros, inspetor da Alfândega de Santos e representante do dr. Artur de Sousa Costa, ministro da Fazenda; prof. Dr. Aluísio de Castro, professor
emérito da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil; dr. Afonso Celso de Paula Lima, delegado auxiliar de polícia; prof. Ernesto de Souza
Campos, representando o ministro Gustavo Capanema, titular da pasta da Educação e Saúde; tenente Amauri Rocha, representando o tenente-coronel Paulo
Rosas Pinto Pessoa, comandante da Fortaleza de Itaipu e interino da Guarnição Militar de Santos e 1º Grupamento de Artilharia de Costa; e dr.
Horácio Vieira de Melo.
Abriu a sessão, que teve a presença
também do dr. Valentim Bouças, ilustre economista brasileiro, o sr. Benedito Gonçalves, frisando que Deus lhe concedia a ventura de dirigir os
destinos da Santa Casa da Misericórdia de Santos nesta hora sublime de sua história e a insigne honra de ter ao seu lado a figura emérita do prof.
Clementino Rocha Fraga, personalidade da maior projeção no cenário científico e intelectual do país.
Oração do dr. Guilherme Gonçalves
Em nome da Irmandade da Santa Casa,
saudou o prof. Clementino Fraga o dr. A. Guilherme Gonçalves, que proferiu a seguinte oração:
"Só
de estarrecido espanto poderá ser, senhoras, a vossa expectativa, diante da minha irreverente ousadia.
"Porque grande ousío é pretender
falar de um Mestre, o mais desajeitado dos que nesta Santa Casa exercem.
"A Obediência, que não a Vaidade, a
isto me levou. E, sem termos que melhormente vinquem o destaque de Clementino Fraga, vou contar-vos na acanhada simpleza do meu feitio, de quem,
assinalado na Ciência e nas Letras, tamanhamente eleva, dignifica e enobrece a Pátria.
"Assim, o meu dizer, possivelmente
de ruim quilate em contrastarias de rigor, mas com algum ouro bem garimpado na minha veneração, há de encontrar na vossa paciência amável a benévola
escusa que procuro.
"Nesta cidadela que a municiosa
previdência de Braz Cubas ergueu como refúgio de dores e, desde quatro séculos sobrevêm ao efêmero, que variado conjunto de vidas não bole aqui
dentro? Umas, buscando lenitivos; muitas no desespero das grandes aflições; tantas, que o infortúnio conduziu; aquelas que, finando-se, mais se
aproximam de Deus Nosso Senhor; todas, merecendo compaixão pelo agror da sua desdita e dando azo, pela multiplicidade do seu sofrer, a que homens
prudentes possam, ao servir-se da experiência que esta lhes traz, aliviar e guarnecer a quem depois vier.
"Foi num claustro igual – os
hospitais se assemelhavam pela mesma dadivosa misericórdia – que, em São Salvador, começou Clementino Fraga a trilhar a reta e larga estrada que,
predestinadamente, lhe indicava o vértice.
"Estudante, na emoção
entusiástica das coisas novas, acicata-o a curiosidade de saber, impaciente de tudo aclarar. E investigando, conhecendo e aprendendo, na continuada
assistência ao drama humano, parecia ter em recalque, na confidência cerrada do Pensamento, a límpida verdade do verso de Hesíodo: ‘desgraçado o que dorme no amanhã’.
"Doutor, sem se alhear dos
imperativos da Arte nobilíssima, procura também medicar com o coração, indo direito à alma. Porque, para a moléstia que oferece tanto enigma,
confuso e tanta novidade imprevista, com os que nela estacam no seu melhor ou pior, até aos de quem se entoja lona e difícil a cura, nem sempre
basta a terapêutica exata: muitos remédios de Farmácia possuiriam efeitos puramente paliativos, não fora o reforço de certas medicações psíquicas
com que a fascinação pessoal do médico hipnotiza naturezas impressionáveis de doentes.
"Lente Catedrático, o que
leciona é manancial fecundo de ensinamentos. E da palavra colorida e esvelta que toga de linho e púrpura as idéias, vêm o aticismo, a simplicidade,
o ritmo em que as suas aulas são plasmadas.
"Quem estudar nos livros que
escreveu, quem ler as suas conferências ou gozar o encanto de o ouvir, tem que o admirar e respeitar.
"Que o respeito na vida intelectual
requer, primeiro que tudo, o deslumbramento, e este só perdura quando, na sabedoria e no talento de outrem, não existe fraco pelo qual a admiração
se comece a esvaecer.
"Cidadão, norteia as
atividades pela índole de batalhador, as atitudes pela rigidez do caráter.
"Na Câmara Legislativa e nos
congressos científicos em que esplende o luxo oratório de seu verbo e nas diversas administrações que honradamente magnificou, alonga-se do comum,
trabalhando, produzindo, cooperando, sem descansar de tão sagrado viver.
"Porém, todas estas excessivas
ocupações, nunca lhe empeceram a crença na grandeza apoteótica do seu excelso ideal: um Brasil maior para um mundo melhor!
"Suaviter in
modo, fortiter in re. Ameno no trato e enérgico. Este dístico consagrador que ilumina o busto de Clementino Fraga, diz mais que tudo o que dele poderia narrar".
O discurso do dr. Guilherme
Gonçalves encantou a assistência pela elevação dos conceitos e pela forma castiça.
Em seguida foi dada a palavra ao dr.
Clementino Fraga, que, discorrendo sobre a data que se comemorava, pronunciou a seguinte brilhante conferência:
Conferência inaugural da Semana Médico-Social comemorativa do 4º centenário da Santa Casa da Misericórdia de Santos
Pelo ilustre prof. Clementino Fraga
"Senhores:
"Entre as solenidades comemorativas
da fundação da Santa Casa de Santos, nenhuma há que exceda em inspiração generosa à realização de uma assembléia médico-social. A lembrança dos que
passaram renasce na homenagem aos que hoje mourejam, para honrar a obra na continuidade de seus dons e privilégios, bênçãos e vantagens. A caridade
plantou o marco inicial, envolveu na cruzada feliz a colaboração da ciência e da mais humana das artes – a de curar; e assim, de concerto, a virtude
e o saber, culminando no mesmo ângulo de incidência, dominam o plano superior das ascendências temporais.
"Quando a rainha dona Leonor, aos
estímulos de seu grande coração, volveu olhos piedosos para o infortúnio humano, foi nos serões do Paço que, com frei Miguel de Contreiras, ambos
encontraram a forma de cooperação na Confraria da Misericórdia, verdadeiro instituto de fraternidade cristã, que entre outros intuitos de finalizar
o bem, sublimava no cuidado de visitar e tratar os enfermos. Não tardou que a obra, solidamente portuguesa, fosse aqui domiciliada contemporânea dos
primeiros colonizadores, e de então a Santa Casa de Santos, irmã gêmea da cidade, vive e reverbera no tempo solar de quatro séculos rodados!
"Obreiros da caridade e da
religião, os irmãos da S. Casa da Misericórdia foram dignos continuadores de Braz Cubas, o fundador da instituição, que em 1551 obteve de
el-rei d. João III o alvará concedendo à irmandade recenada os privilégios das Misericórdias portuguesas. Aqui o facho da piedade clareou a rota da
civilização; no antigo outeiro de Santa Catarina, a 'Casa de Deus para os homens, e porta aberta ao mar', desde 1543, sob
o signo da bondade cristã, teve o nome de 'Hospital de Todos os Santos'.
"A caminho do Bem, tendo a
iluminá-lo a estrela do altruísmo, é sempre difícil, ou seja pelos tropeços naturais de permeio, ou seja pela inconstância do brilho estrelar,
nimbando a revezes no horizonte móvel da vida que foge. Braz Cubas, nos votos cordiais de sua dedicação, dirigiu a Irmandade durante 49 anos;
depois, no curso de dois séculos, entre névoas e eclipses, padeceu a claridade de seus dias, até 1831, quando um médico de grande coração e muita
energia, Cláudio Luis da Costa, lhe trouxe decisivo impulso com a reconstrução do edifício e paralelo desenvolvimento de suas pertinentes
atividades.
"São Vicente – núcleo inicial de
colonização na América portuguesa – em pouco ampliava seus limites, envolvia a colina bendita em que foi erguida a primeira casa de Deus em terras
do Brasil, e esta foi o centro germinativo da vida urbana, de onde lhe veio o nome pressago, nos favores dadivosos da terra generosa e moça.
"A cidade hoje afortunada,
populosa, próspera, engasta a sua Santa Casa e lhe honra a ascendência excelsa. Na instituição multissecular, o hospital centraliza o esforço
benemérito, ajudando a vida a resistir às agressões que a salteiam, e pois protegendo a colméia humana na assistência efetiva dos cuidados
médico-sociais.
"Num serviço nosocomial, a ciência
e a caridade, no milagre da aplicação, conjugam préstimos e realizam a bondade militante, que é aspiração alada e voto de sabedoria. A seqüestração
dos doentes defende a sociedade, preservando-a do mal, quando se trata de moléstia infecciosa, aliviando-a nos demais casos de doenças orgânicas,
sobretudo de evolução lenta, que pesam e embaraçam a vida da família pobre,ainda quando os melhores afetos lhes povoam o lar; no hospital, a
Medicina trata do corpo e acode à alma, enquanto a religião ajuda a sofrer e conforma o homem na realidade do seu destino.
"O hospital moderno, na solicitude
de seus cuidados, compensa em conforto e pontualidade de recursos a assistência carinhosa do meio familiar. Cabe em seu programa mínimo a plenitude
das instalações de diagnósticos e a correlata aplicação dos meios terapêuticos. Tanto se efetiva na entrosagem do laboratório e da enfermaria, dos
métodos complementares e do exame clínico, na comunicação entre médicos e doentes, nas relações entre os técnicos e a administração hospitalar,
entre os chefes de serviço e seus auxiliares.
"Recentemente fundada em
Washington, a Associação Inter-Americana de Hospitais, de acordo com o espírito das decisões da Convenção Nacional de Hospitais de Atlantic City, em
1941, resolveu estabelecer a técnica de organização e administração, facilitar a cooperação entre as associações hospitalares americanas, concorrer
para o intercâmbio de idéias, fomentar as publicações, instituir bolsas de viagens de estudos e realizar reuniões e congressos periódicos. A
afirmação destes propósitos abre novas possibilidades ao desenvolvimento crescente da técnica e administração hospitalares. Os serviços da Santa
Casa de Santos, pelo progresso que atingiram, podem e devem figurar nessa federação humanitária inter-americana, agora inaugurada sob os mais
auspiciosos fundamentos.
"A condição efêmera da vida torna o
hospital um símbolo de altruísmo, fundamentalmente impessoal e plenário, porque o benefício a todos pode acudir na oportunidade da doença; nos
hospitais modernos se concentra a armadura dos processos diagnósticos e terapêuticos, alertados na mobilidade e presteza de amplos recursos, certo,
entre os maiores benefícios da civilização motorizada de nossos dias. Durante uma investigação cirúrgica,para citar apenas um exemplo, em dois a
quatro minutos o exame anatômico dirá ao cirurgião da natureza da proliferação celular, orientando decisivamente a diretriz tática no caso concreto.
A fatalidade orgânica na involução natural ou acidentada condiciona o desenvolvimento das instalações nosocomiais; não raro o indigente, num
hospital, é melhor tratado que um abastado no seio de sua família, onde faltam os recursos fisioterápicos, os cuidados pontuais da enfermeira,
diligente, tolerante e exata no seu papel de prolongar a ação do profissional, sem as transigências que procrastinam a cura.
"A observação psicológica verifica
que o homem mais se revela na doença: suas taras e caprichos, vícios e recalques, surgem voluntária ou involuntariamente, facilitando a curiosidade
clínica o conhecimento de motivos íntimos, até então ignorados e capazes de embaraçarem a marcha do tratamento. Figura-se nesse passo um dos
aspectos mais delicados do dever profissional, foreiro do humanismo médico, e que atinge a alma do indivíduo, muitas vezes mais doente que o próprio
corpo.
"Assim se projeta, em submissa
interdependência dos fatores físicos e morais, a unidade psicossomática que revela o homem e o eleva ou desgraça na escala das variações pessoais.
Em tanta largueza de objetivos e responsabilidades, o mister da Medicina é dos mais árduos, e, no rato de longa vida profissional, a experiência não
reconhece fórmulas nem previdências uniformes, em face da mobilidade e ineditismo dos caracteres individuais. Em verdade, o homem é o animal que
menos se parece com os seus semelhantes.
"Do médico do hospital se exigem
excelências de competência técnica e sentimento, difíceis de reunir, e não é menor a virtude da paciência para tratar com o doente humilde, sem
parecer que lhe presta simples serviço material ou lhe explora a vantagem do caso materializado, indispensável à instrução, sobretudo nas clínicas
didáticas. A caridade não deve sobrestar no leito e na cozinha dietética, enquadrados nas condições elementares de um serviço clínico: cabe à
ciência, em sua aplicação e disciplina, organizar a filantropia, realizá-la portas a dentro do hospital, à maneira dos ensinamentos inspirados
nos progressos do dia no estudo das ciências biológicas.
"Em nosso tempo, que se poderia
dizer, num arredio de horror, a época do ferro e do fogo nas relações internacionais, em nossos tristes tempos, a Medicina Clínica procura reagir,
invocando a doçura moral, a par das vantagens técnicas. Deplorava Claude Manceaux, tipo de velho e sábio cirurgião no livro de Maurice Duplay, que
muitos cirurgiões modernos trabalhassem o corpo humano como o marceneiro a madeira e o ferreiro o ferro; outros operam como se executassem uma
ária de violino ou de piano. Em ambas as situações, a piedade foge às preocupações do momento e diminui a alma do médico, libertando-a da função
específica de se ofício.
"Vira o mestre a vitória
profissional do maior de seus discípulos, o Daniel do romance de Duplay, sua carreira de ascensão impetuosa na clínica, no magistério, no prestígio
mundano, ainda jovem, requerido e requestado, talvez por isso mesmo um tanto seco de alma, ambicioso de renome e de glória. Foi por essas alturas de
projeção social que o destino o feriu em cheio, no próprio coração, roubando-lhe a companheira amada,pela moléstia que mais estudava no laboratório
e na clínica – o câncer. Colhido pela desilusão, teve na assistência dos conselhos do seu mestre o conforto maior, que o fez cultivar a flor da
piedade, tornando-a de então por diante parte efetiva no complexo de sua superioridade profissional.
"Poupado pela morte, Claude
Monceaux, em idade e consciência provectas, dizia com a doçura de sempre: 'A mon âge, onn'est plus bon à rien; qu'importe la santé!
Qu'importe la vie!'
E chegava a invejar a sorte de Berger,vitimado por um ataque apoplético em
seu serviço clínico, comovendo a discípulos e doentes; Lucas Champrionière, fulminado em plena sessão da Academia; Guinard e Pozzi (como entre nós
Arnaldo Quintela), assassinados por loucos em meio à faina da vida clínica.
"Por outro lado, ele considerava de
seu dever, uma vez que durava, continuar adversário irreconciliável da morte; fora assim para seus doentes e o era de preferência a si mesmo: "à présent qu'elle s'en prend à moi, je me dispute à elle, comme je lui ai disputé mes operés".
"Os que vão envelhecendo costumam
repetir o que aprenderam da Biologia, isto é, que a idade fisiológica não é marcada pelo relógio. Não estou longe de concordar –
quod volumus, facile credimus – não tanto por mim mesmo, quanto pelo que dizem outros, que teimam em prolongar a mocidade. Sempre temos por certo aquilo que nos agrada.
Martins Fontes, fulgurante poeta que tanto admirei, chegou a dizer:
'Estou ficando cada vez mais moço,
Como um rosal ao sol, rejuvenseço,
Noto em cada botão, em leve esboço,
Que com as flores, de fato, me pareço.'
"Isto em poesia, porque os versos são generosos e amáveis; praticamente, porém, devemos concordar que a última palavra,
incisiva e dolorosa, está mesmo com o relógio; a idade fisiológica, que durante algum tempo não coincidiu com a do tempo, por final cederá à
inexorável realidade.
***
"A assistência à comunhão, que esta Semana Médico-Social tem em mira ventilar, interessa não somente aos médicos,
senão também aos homens de Estado, economistas, juristas e outros entusiastas da aspiração patriótica no sentido do bem-estar geral. Do ponto de
vista médico, que limita minha escassa aptidão, a preocupação alteia a personalidade profissional, transpõe o dever puramente clínico, realizando
obra de maior vulto, na proteção do maior número, sem distinguir classes, condição pessoal ou hierárquica.
"Assim, a Medicina preventiva,
confiada e ampla em seus horizontes, sistematiza as atividades que vão da subtração do contágio aos cuidados da resistência individual, aos
imperativos orgânicos da higidez e às medidas tutelares da previdência social. No conceito de R. Sand, a Medicina Social é a arte de prevenir e
curar, considerada em suas bases científicas, nas respectivas aplicações individuais e coletivas, dentro das relações recíprocas que ligam a saúde
do homem à sua condição.
"À luz destes princípios,
considerava Rist, grande médico e humanista: 'O médico não deve ser apenas
colaborador, simples e mecânico, mas um colaborador privilegiado. Deve conservar a liberdade de movimentos e decisão, autonomia e independência, sem
as quais a missão essencial da Medicina não poderá ser preenchida. Uma Medicina que não fosse profissão liberal, escravizada à rotina burocrática,
cessaria de progredir: então, tímida, hesitante, retrógrada, fugiria às suas responsabilidades, deixaria de inspirar confiança. Ora, sem confiança
não há Medicina'.
"Estudos históricos revelam que a
duração média da vida era de menos de 30 anos, ao tempo do Império Romano. Depois, em 19 séculos, ela cresceu muito lentamente. Em 1850, nos Estados
Unidos, era de 40 anos, e já em 1900 alcançara 47 anos. Daí por diante, o 'aumento tem sido dramático', diz Stieglitz: atingiu a 60 anos em 1930, para a população branca americana, e 63 anos,em 1940.
"Naturalmente, as cifras são muito
desiguais nos diferentes países, como se pode ver nos dados citados por Schreiber (1930): '25
anos no Egito, 42 no Japão, 44 na Rússia, 46 na Polônia, 50 na Itália, 54 na França e na Escócia, 56 na Irlanda e Suíça, 57 na Alemanha, 59 na
Inglaterra, 61 na Dinamarca, Suécia, Austrália, 64 na Nova Zelândia'.
"O aumento do prazo médio da vida,
variando embora com as condições higiênicas de cada país, ocorreu, de modo geral, em todos os povos.
"Tomando para exemplificar, o caso
dos Estados Unidos, de referência aos quais dispomos de fartas cifras, verificamos que no curto espaço de 40 anos, a partir de 1900, houve a notável
modificação de 16 anos (47 para 63), no sentido de elevação de longevidade média. De sorte que, atualmente, existem na U.N.A. cerca de nove milhões
de pessoas acima de 65 anos (aproximadamente 7% da população).
"Diante de tais dados (Geriatric
Medicine, 1943), Edward Stieglitz diz que 'o mundo está envelhecendo
muito depressa' e os problemas de gerontologia se impõem, cada dia mais, à consideração dos médicos.
"Os benefícios da higiene criaram
mais este importante capítulo de Medicina Social que reclamará, em breve, urgente solução.
"Até agora as alterações na
estrutura da população se faziam com relativo acréscimo dos moços, porque atuavam as forças destrutivas no sentido da seleção natural. Ao passo que
defrontamos, já neste momento e daqui por muito mais, novos problemas, resultantes de forças construtivas e da colaboração destruidora da guerra,
que atinge, principalmente, os jovens.
"No Brasil, segundo trabalhos
recentes do professor Giorgio Mortara, a vida média no Rio de Janeiro tem a característica conhecida do tipo semi-tropical, ou seja de 43 anos, ao
passo que em São Paulo é de 50 anos, mais aproximado, portanto, dos tipos europeu-meridional e europeu-oriental.
"Como nos votos do bem há vários
aspectos, um deles, mais agilmente apreendido do ponto de vista econômico, tornou evidente que a defesa das condições gerais, estirando a vida
humana, tem aproveitado em máxima parte às companhias de seguros de vida, suficientemente tranqüilas nos cálculos de lucro, e com razão carnal,
porque os verdadeiros, os grandes segurados, são os seus solícitos diretores.
"Paradoxalmente no Brasil, o seguro
de vida só é bom negócio quando o indivíduo morre antecipando a média normal. E porque a Medicina Social, principalmente a higiene preventiva, tanto
tem contribuído para a prosperidade da indústria de seguros, se eu tivesse qualquer parcela de autoridade para ser ouvido, ousaria sugerir que
dos lucros maciços das companhias fosse consignada uma taxa percentual, expressamente destinada às obras de assistência pública.
"Podendo ser forte, o homem é
frágil de si mesmo. Para fortalecer o corpo, é mister treinar os músculos, submetendo-os à pena do esforço crescente até o limite da fadiga, e, sem
dúvida, a intempérie favorece a oportunidade de experimentar a resistência física. Assim também, no sentido moral, o exercício da virtude é menos
cômodo, por vezes ingrato, sempre difícil de acertar e praticar. Como a arte, longa e acidentada no seu caminho sem vim, a virtude se orienta no
penhor da disciplina, dentro de seus objetivos, aliada ao dever de censura, que distingue e separa, louva ou condena. Só a consciência livre pode
julgar e decidir.
"Para atenuar ou dirimir os pecados
do instinto, costumamos atribuir nossas culpas à fraqueza da carne, como se fosse possível, no complexo orgânico, separar corpo e espírito. A
dominante psíquica regula todos os atos somáticos e com ampla deliberação na esfera moral. A pauta do caráter tem entretanto normas e restrições, a
cuja jurisdição devemos singular respeito e vigilante obediência. Fora daí, sem a aventura no terreno das concessões e transigências, resistir é ter
a coragem do brio pessoal. Não está em nosso poder evitar os colapsos da moralidade social, mas é de nosso decoro negar-lhes colaboração e mesmo a
cumplicidade do silêncio, a não ser quando a força nos impede a mais mínima manifestação.
"A submissão à lei recapitula e
consagra o dever cívico. Socialmente, vivemos em comunhão de bens e males, como no casamento, que constitui organicamente a família e reproduz a
sociedade em miniatura. Mas só o respeito humano, dentro do conceito da liberdade e da justiça, pode contrapor à mística que mecaniza a
personalidade e degrada o homem, impondo-lhe o tributo da obediência, sem exame, e da crença nos poderes sombrios da força; outro é o caso do
Direito, que inspira a lei e na lei cristaliza as normas do dever coletivo, resume as aspirações gerais, comanda e fortalece a coesão nacional.
"Nesse pressuposto de autoridade
moral, a lei deve refletir a consciência livre da evidência luminosa dos propósitos de Haward, nos assomos de sua imensa autoridade, que é hoje um
fenômeno de consciência liberal: 'Os impérios do futuro serão impérios do
espírito'. Nestes termos, devemos acreditar, poderá ser nobremente configurado o problema espiritual da paz.
"As grandezas e desgraças do mundo atual identificam o supremo poder das forças morais na preservação do homem e das
conquistas da civilização. Não importa que a esta hora o oriente de nossa crença esteja ameaçado por armas profanadoras e satânicas: a amplitude
inviolável de sua grandeza não está nos domínios restritos do Vaticano, mas na irradiação da fraternidade cristã, na centelha divina que ilumina o
orbe católico, e, em cada igreja, em cada Santa Casa, como esta, faz repontar e esplender, na fé de dois milênios, ouro e forte invencível reduto da
Cristandade!
***
"Senhores, na ambiência desta cidade, que, rente com o mar nasceu de alagadiços e lodaçais, recuando o olhar nos
longes do passado, sentimos a promessa bem fadada, como no encanto misterioso das coisas humildes que denunciam grandes destinos. As vicissitudes
iniciais experimentaram o homem e o afizeram ao destemor das circunstâncias, às hostilidades do meio físico, às lutas e transigências com o selvagem
que defendia a terra de seu berço.
"Esgueirando-se pela costa sinuosa,
a faixa de terra firme teve da rota marítima a visita da civilização. O mar foi sempre em todos os tempos, a esperança e o constante desafio à
coragem humana: dá a existência a fascinação do novo e do imprevisto, entretanto a ânsia de outras paisagens e desconhecidas sensações. À vida,
tributada pelo interesse e pelo trabalho, trazia a impressão de plenitude e de desafogo, como sentia Baudelaire:
"'La
mer, la vaste mer, console nos labeurs',
"ou como, ao encontro da inspiração
do poeta, compreendeu Augusto de Lima:
"'Homem livre, há de ser sempre amigo do mar
O mar é teu espelho, aí vês tua alma ao largo,
Dos grandes lamarões no infinito rolar,
- Nem teu espírito é menos profundo e amargo'.
"Como na vida de Shelley, o tema de água, dominando a sinfonia da natureza, sonhos, tristezas e desencantos, em segredos da alma, o poeta vive,
evoca, associa a suas intimidades, contemplando e escutando o mar. Lembrai-vos do oceanismo lírico de Vicente de Carvalho, o poeta do mar, inspirado
nas belas praias de Santos:
"'Escutais bem... Quanto entardece
Na meia luz crepuscular
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar'.
"E mais expressivo:
"'Beijando a areia, batendo as fráguas
Choram as ondas; choram em vão;
O inútil choro das tristes águas
Enche de mágoas
A solidão'.
"Santos abotoou no seio das ondas; cresceu,
floresceu, alcançou as grimpas da serra e abriu caminho à formação urbana de São Paulo. Quando se considera hoje o desenvolvimento da grande
metrópole paulista – autêntica capital do Sul do Brasil; quando, com a ternura do sentimento brasileiro, admiramos o seu progresso, duas
circunstâncias havemos de estimar em sua gênese: o caminho do mar e a influência catalisadora de Santos.
"'Burgo humilde, Vila de poucos fogos, cidade tumultuosa de milhares de habitantes, Santos é berço fecundo de grandes vultos, talhados para
excelsos feitos' – disse Guilherme Gonçalves, numa síntese de grande
ressonância. Terra de sonhadores, de homens de Estado, de economistas e de poetas: Bartolomeu Lourenço de Gusmão – o precursor da aviação; Silva
Jardim, o propagandista da República; os Andradas, entre estes o maior de todos – José Bonifácio, o construtor da nacionalidade; terra de enlevo e
de doce poesia, aonde cantaram Vicente de Carvalho e Martins Fontes. 'Na história de Santos, como na história do Brasil, surgem-nos a cada passo os testemunhos do predomínio das forças morais do
povo, determinando os próprios destinos', disse José Carlos de Macedo Soares, na precisão luminosa de sua eloqüência. E Paulo Prado, tocado do amor da terra que lhe
foi berço, afirmou: 'O Caminho do Mar prepara o paulista para a predestinação que lhe reservava a história do Brasil'.
"Aqui repontou o amor ao trabalho, que é flama e nume da vocação paulista; aqui amanheceu também o espírito de concórdia, que é um dos traços
constitucionais da generosidade brasileira, e que define num fato histórico, assim narrado pelo historiador Francisco Martins dos Santos: um jovem,
ainda adolescente, Thimoteo Correia de Góis, foi - por morte do pai - investido nos cargos de provedor e contador da Fazenda Real. Insurgiram-se
alguns habitantes, chefiados pelo antigo capitão-mor, contar a autoridade de uma criança. Por seu turno, resolveram os amigos do novo provedor
enfrentar a luta; organizaram-se em expedição primitiva, cercaram a cidade e venceram os rebeldes. Interveio então a clemência do vencedor,
perdoando os vencidos e restabelecendo sob os auspícios da concórdia os direitos de sua autoridade.
"Este episódio ganha em ser relembrado: teve o seu dia de luz meridiana no curso dos dias, porque recorda a elevação da alma jovem na consciência
adulta e na bravura da generosidade.
"Nos fastos da cidade Mater de São Paulo, uma das páginas mais emocionantes é a que recorda a campanha da Abolição. A acolhida aos cativos
que procuravam a cidade, a libertação promovida pela Sant Casa, os arroubos de entusiasmo pela campanha abolicionista, justificam a apóstrofe de
Batista Pereira, no ímpeto da simpatia nacional: 'Santos – a redentora'.
"Quando Rui Barbosa, aos clarões de seu poder verbal, profetizou o desenvolvimento material, político e social do grande Estado da federação
brasileira, não esqueceu, na concisão da frase lapidar, o sentido da justiça histórica: 'São
Paulo, a metrópole do progresso nacional, acorda estremecendo ao apelo de Santos'.
"É a significação sugestiva do Caminho do Mar, que procura a serra na antemanhã da nacionalidade; planta a civilização nos sem-fins do
altiplano; cresce na honestidade da ambição; floresce nas expansões do trabalho; mais tarde carreia na descida os frutos das canseiras de muitas
gerações, pelo mesmo caminho, já agora estrada larga de depleção e escoamento, em demanda das naves ancoradas no porto, em cujo seio a apojadura da
produção paulista leva ao mundo a seiva patriótica de sua altiva civilização! Sempre o Caminho do Mar no seu feitiço de origem:
"'Mar, velho mar selvagem
De nossas praias solitárias...'
"E depois, fecundada pelo trabalho na orla
movimentada do porto, a vida tumultuária, na mocidade de quatrocentos anos, referve e transluz na imponência da realidade brasileira!
"Senhores, estas palavras, ainda que muitas, infelizmente não foram tantas que bastassem à austera beleza da comemoração. No sobressalto da
timidez, penetrei nesta casa sem a qualidade elementar, que é a de ter olhos de ver grandezas passadas no culto atual de legítimos legatários e
continuadores. Aqui, paredes a dentro, José de Anchieta teve seu primeiro domicílio; iniciou sua vida de evangelizador, assistindo os primeiros
doentes no conforto espiritual da religião; aqui a formação cristã plasmou o homem na prática da piedade; nele despertou a reciprocidade do afeto, a
vontade de servir ao próximo e a mercê de ser útil. Por tantos e tão patentes benefícios, a obra civilizadora venceu corações, correspondeu aos
desígnios do altruísmo e fortaleceu os princípios salutares da fé patriótica.
"Do quanto me sugere o sentimento de brasileiro e de médico no apreço desta pia instituição, muito pela flor tentei exprimir, e mais, muito mais,
me pedia o coração em agradecimento à honra que me fizestes; do prazer espiritual do mandato, não é a menor parte a que se desata em louvores, qual
na sensibilidade da poesia camoniana a inspiração consoladora:
"'Que a virtude louvada vive e cresce
E o louvor altos casos persuade'.
"Senhores da Santa Casa de Santos e meus irmãos
em Jesus Cristo: nestes duros tempos de matemática e de técnica conseguistes vos elevar numa grande obra de exaltada benemerência; certamente sabeis
que 'o preço da elevação é a responsabilidade'.
Lado a lado, a ciência e a virtude colhem os frutos de sementeira bendita: a Medicina e a caridade acertaram neste trecho abençoado do espaço a
encruzilhada suave do bem. Médicos e Irmãos da Misericórdia, aproximados na conformidade dos intuitos, realizais a grandeza na simplicidade, e, como
quem persegue o ideal, tranqüilos e confiantes, percorreis o caminho da dignidade humana".
Ao terminar a sua belíssima conferência, foi o prof.
Clementino Fraga muito aplaudido e cumprimentado. |