Visita ao Instituto D. Escolástica Rosa
Mais tarde, o embaixador Macedo Soares, sempre acompanhado pelos dirigentes da
Santa Casa, visitou o Instituto D. Escolástica Rosa, a cuja entrada foi aclamado por alunas do curso diurno do acreditado estabelecimento
educacional. Todas as seções técnicas foram apreciadas pelo distinto visitante, que não retardou a externação de sua impressão lisonjeira.
Ao fim da visita, reunidos os alunos no pátio, em frente à
estátua de João Otávio dos Santos, fundador da casa, o prof. Pedro Crescenti, de improviso, pronunciou caloroso discurso de saudação ao embaixador
Macedo Soares.
"A
cidade de Santos – disse –
entre música e flores, comemora o 4º centenário da fundação da sua Santa Casa. E
não só Santos, mas todo o Brasil e também a América do Sul, em espírito, tal o carinho e a admiração que se consagra a estas praias magníficas,
palmilhadas por Anchieta e Nóbrega, e onde se erigiu o primeiro hospital da América Latina, 'Casa
de Deus para os homens, porta aberta para o mar'".
Referiu que o acontecimento
histórico-social que se comemora muito aprazia ao Instituto D. Escolástica Rosa, que está intimamente ligado à Santa Casa por laços indissolúveis,
porque são os laços do coração e da caridade.
Evocando a figura de João Otávio dos
Santos, louvou sua obra de benemerência. "João Otávio dos Santos
– disse o orador – bem compreendera que o cuidado da Santa Casa, a que tanto servia, não era apenas mitigar as dores dos que lhe batiam à porta, mas também
encaminhar a juventude, propiciando-lhe recursos para sua formação profissional. E com um pouco de sua fortuna, fundou esta casa, dando-lhe o nome
de sua mãe, d. Escolástica Rosa. Júlio Conceição foi seu testamenteiro. E a Santa Casa cuidou desveladamente da obra do grande filantropo. Evoluiu
esta escola. Vingou a semente plantada por João Otávio dos Santos. Milhares de rapazes aqui se diplomaram. E este ano, diplomaremos a maior turma,
236 jovens, que se vão integrar no exército de técnicos. E também várias futuras mães de família. Educados profissionalmente, eles são a esperança
de um Brasil maior".
Por último, o prof. Crescenti
renovou o agradecimento do corpo docente e discente do Instituto D. Escolástica Rosa pela visita do embaixador Macedo Soares.
O embaixador Macedo Soares agradeceu
as palavras do diretor do Instituto D. Escolástica Rosa e louvou a organização do estabelecimento, convidando o intelectual Lima Neto para declamar
aos alunos uma poesia de Martins Fontes e uma outra de sua lavra.
Acedendo, o poeta Lima Neto afirmou
que ali era o melhor lugar para repetir a legenda lapidar de Braz Cubas sobre o hospital que fundara: "Casa de Deus para os homens, porta aberta para o mar". Repetia a clássica legenda em presença do embaixador Macedo Soares, amigo da caridade, espírito esclarecido e culto, "inteligência do Brasil para o mundo, coração aberto ao mar".
Em seguida, declamou Religião,
de Martins Fontes, e Nosso Brasil, de sua lavra, ambas muito aclamadas.
Ao deixar o Instituto Escolástica
Rosa, novas manifestações de carinho e simpatia se tributaram ao embaixador Macedo Soares.
Sessão solene no
Consistório da Santa Casa
Às 21,30 horas, verificou-se a
sessão solene que assinalava oficialmente a abertura das festividades comemorativas do 4º centenário da Santa Casa.
Foi realizado no Consistório da
Irmandade e constituiu acontecimento de ressonância social.
Autoridades federais, estaduais e
municipais, conselheiros, consultores, irmãos da Santa Casa, médicos, representantes de instituições culturais e conservadoras de Santos, exmas.
senhoras e várias outras figuras de expressão social assistiram à magna solenidade.
À mesa de honra, sentaram-se os srs.
embaixador Macedo Soares; d. Idilio José Soares, bispo de Santos; dr. Gomide Ribeiro dos Santos, prefeito municipal; Benedito Gonçalves, provedor da
Santa Casa; capitão-de-mar-e-guerra Francisco Pedro Rodrigues Silva, capitão dos Portos e representante do ministro da Marinha; tenente-coronel
Pinto Pessoa, comandante interino da Guarnição Militar e representante do ministro da Guerra; João Teófilo de Medeiros, inspetor da Alfândega e
representante do ministro da Fazenda; e prof. Ernesto de Sousa Campos, representante do ministro da Educação.
Nos demais lugares, entre inúmeras
outras pessoas, os srs. dr. Euclides de Campos, dr. Afonso Celso de Pala Lima, prof. Clementino Fraga, major Djalma Pio dos Santos, major Boanerges
Lopes Cesar, dr. Lourival dos Santos, dr. Nelson da Veiga, dr. Ciro Carneiro, dr. Humberto José da Nova, dr. Ismael de Sousa, cônsul de
Portugal, prof. Luiz Damasco Pena, cap. Hildebrando Moura, dr. Lincoln Feliciano, João Moreira Sales e Adail Camargo Viana, estes em representação
da Associação Comercial; dr. Frederico Neiva, dr. Dias de Morais, inspetor da Saúde dos Portos, Luis Caiafa, pelo Rotary Clube, e várias outras
figuras de representação oficial e social, além de damas e senhorinhas.
Oração do provedor
da Santa Casa
Abrindo a solenidade, o sr. Benedito Gonçalves,
provedor da Santa Casa, pronunciou este discurso:
"Na
compreensível emoção com que me domina a magnitude desta solenidade e no desvanecimento da insigne honra que, em função da Provedoria, me cabe de
declarar abertos os festejos comemorativos do 4º centenário da fundação da Santa Casa de Santos, seja-me desde logo permitido traduzir, em
antecipados agradecimentos, toda a alegria da Irmandade pelo apoio animador recebido de quantos amam e cultuam os grandes e nobres feitos do nosso
glorioso passado.
"A deferência do exmo. sr.
presidente da República, delegando a sua representação às solenidades à pessoa do exmo. senhor embaixador Macedo Soares, figura das mais
prestigiosas da atualidade brasileira e paladino indefectível do engrandecimento de nossa instituição, sensibiliza-nos sobremodo pelo muito que tão
honrosa presença e representação enaltece as nossas festividades.
"À solidariedade que nos
testemunham, pelo seu comparecimento, as eméritas autoridades, às nobres delegações tão altamente credenciadas, a todos os nossos dignos irmãos e
cooperadores e especialmente às exmas. damas que emprestam a este ambiente um halo de virtude e simpatia, a antecipação do caloroso reconhecimento
da Irmandade pela generosa interferência com que a prestigiam e aplaudem neste passe empolgante de sua longevidade soberba.
"Congrega-nos, no instante de
profunda emoção que ora vivemos, uma comunhão de pensamento e de ação fazendo-nos volver instintivamente os olhos para o panorama do passado diante
da qual nossa alma se extasia enternecida na contemplação do trabalho persistente dos nossos maiores em prol do engrandecimento desta obra que era e
é, na beleza do seu sonho criador, o elo indestrutível da continuidade de nossa história.
"Quatro séculos bem nutridos de
realizações alcançadas a golpes de esforços nem sempre eqüitativamente compensados, é o acervo inestimável que nos legaram gerações sucessivas de
abnegados diante de cuja memória hoje reverentemente nos curvamos.
"Aquilatem-se os sacrifícios de seu
afã diuturno contra a rudeza do meio-ambiente pelo paralelo com as vicissitudes ainda hoje enfrentadas na seara de sofrimentos a que é forçoso
acudir em cumprimento dum dever que nós mesmos nos impusemos sob os ditames da caridade indelevelmente insculpidos na sagrada letra do Evangelho.
Nada soma a riqueza material acumulada e tardiamente iniciada, no confronto com os valores morais que se alinham ininterruptamente, abrindo um
crédito inesgotável de méritos e benemerências com as quais se valoriza e perpetua a lendária instituição.
"Reparte-se toda a história da
Santa Casa de Santos, através dos séculos vividos em três capítulos bem nutridos de episódios nobilitantes, no último dos quais se situa e movimenta
a geração hodierna a gizar ainda os lineamentos clássicos dessa obra soberba que se espera legar à posteridade, qual nova força propulsora de mais
amplos e seguros destinos.
"A última e anterior centúria, cujo
ciclo há menos de um decênio festivamente encerramos entre loas à sua magnífica desenvoltura, modela os capítulos extremos da quadri-secular
existência. Agiganta-se aí a figura sobranceira de Cláudio Luiz da Costa – num apostolado que vale a instauração de novos e assinalados rumos e cuja
ação dinâmica, impertérrita, fez repontar, pelo exemplo, a coorte dos super-homens construtores da nossa grandeza.
"Recua para a sombra esmaecida do
passado o primeiro capítulo enquadrando trezentos anos de vicissitudes sem conta, contra as quais se movimentaram heróis anônimos cujos nomes o
infortúnio sonegou à nossa lembrança pelo desvario momentâneo com que, segundo se inculca, o saque duma pirataria mavórica, no incêndio da vila,
destruiu preciosos monumentos da nossa história.
"Mas é preciso retroceder até os
primórdios dessa era de formação para trazer a este plenário a festejada e altaneira figura de Braz Cubas – o gênio tutelar não só desta casa como
também das férteis paragens que foram o berço da civilização do Brasil – traço de união entre dois mundos, a porta aberta para o mar, a qual
canalizou riquezas, traçou roteiros, criou o comércio, implantou a indústria, rasgou a selva e assentando-se nos promontórios de Itaipu e Munduba,
fez-se a fortaleza irredutível que assegurou a posse e o domínio da terra!
"Honra e glória a Braz Cubas,
enobrecido mais pelos ideais que lhe nortearam a ação indomável de magnificência da terra que povoou e engrandeceu do que pelos títulos e galardões
de que o culminou a munificência régia. Honra ao seu desvelo de meio século com que criou, arroteou, protegeu e exaltou este solo sagrado, viveiro
de gênios que alargaram e demarcaram a erra e libertando a pátria, sonharam e viveram a grandeza do Brasil.
"Glória a Braz Cubas que, antes de
fixar a configuração política do povo de seu sonho – deu-lhe a índole humanitária em cujos ensinamentos se plasmou a alma nacional, plantando, num
arroubo genial de sua alma apostólica, a casa de Deus para os homens – pouso sagrado oferecido,como dádiva do céu, à marinhagem exausta
das canseiras do mar!
"Vive ainda, na plenitude do fervor
com que lhe cultuamos a glória imarcescível, a caridade tutelar que inspirou Braz Cubas no ambiente rude de sua atuação.
"E, nesta hora de emoção
indizível em que Deus nos permite festejar o remoto acontecimento daquela fundação ousada, pela qual inaugurou Braz Cubas a fase histórica de sua
fulgurante existência, nós, que nos integramos na esteira luminosa de seus feitos, exaltemos-lhe a memória no culto de nossa grande e profunda
admiração!
"Na sua personalidade inconfundível
de semeador de civilização, no abismo de seu grande amor aos homens e à terra, simbolizemos, senhores, todo o nosso devotamento e respeito ao
trabalho inconcusso dos nossos maiores que desta casa fizeram o objeto de seu grande afeto, entregando-lhe as energias de corpo e espírito no
mourejar contínuo com que cimentaram a grandeza e perpetuidade da Santa Casa de Santos.
"Possa o sentimento vivo de nossa
gratidão perfumar a lembrança dos nossos antepassados, fazendo reviver a beleza dos seus feitos como um florão de maravilhas, ofertado à glória e
magnificência da generosa e fidalga cidade de Santos!
"Este, meus senhores, o pensamento
guiador da Irmandade na iniciativa desta celebração. Para o realizar e concretizar, declaro abertas as festividades comemorativas do 4º centenário
da fundação da Santa Casa da Misericórdia de Santos".
Ao encerrar seu discurso, o sr.
Benedito Gonçalves convidou o embaixador Macedo Soares para assumir a presidência da solenidade.
Pronunciando o discurso oficial da
cerimônia, o embaixador Macedo Soares leu a seguinte peça oratória de sentido histórico:
Discurso do
embaixador Macedo Soares
"Mui
desvanecido recebi o honroso convite para presidir a sessão inaugural das solenidades comemorativas do quarto centenário da fundação da Santa Casa
da Misericórdia de Santos. É com a mais viva emoção que assumo tão alta presidência para declarar iniciados os trabalhos desta comemoração sem par.
Há quatro séculos, no venerando consistório deste benemérito sodalício, homens bons da cidade de Santos dedicam a sua inteligência e a sua
capacidade realizadora para efetivar os objetivos da mais antiga casas de caridade de todo o continente americano.
"Os fidalgos lusitanos que
confiaram em Martim Afonso de Sousa, ao desembarcarem em S. Vicente e depois, em Enguaguaçú, tinham, como bons patriotas que eram, os corações
voltados para os eu Portugal distante. Corajosos e esperançados, aqui se instalaram à moda portuguesa. Fundaram, portanto, desde logo, como já era
uso em Portugal, uma Santa Casa da misericórdia, nos moldes traçados pela rainha dona Leonor, em 1498, para cuidar dos enfermos, dos presos e dos
desamparados. O nome que deram à nova Santa Casa, e que passou gloriosamente à cidade, lembrava o Hospital de Todos os Santos, ou, como dizia na
época, Esprital de todollos Sanctos, iniciado por dom João II e terminado por dom Manuel, o Venturoso.
Os fidalgos da expedição de 1532 haviam atravessado o Oceano, mas continuavam na orla do Atlântico, o mar glorioso das
façanhas heróicas dos marujos do infante dom Henrique. Daí, Braz Cubas, o fundador, fixar os destinos da Santa Casa da Misericórdia na conhecida e
lapidar frase 'Casa de Deus para os homens, aberta para o mar'.
***
"Durante oito séculos sentaram-se no trono de Portugal apenas cinco rainhas nascidas em terras lusitanas: dona Leonor
Teles, a Flor de Altura, mulher del-rei dom Fernando; dona Izabel, casada com Afonso V; dona Leonor, esposa de dom João II; e as duas infantes
reinantes, dona Maria I, que sucedeu a seu pai, el-rei dom José, e dona Maria II, filha do imperador do Brasil, dom Pedro I.
"Dentre elas, destaca-se, pela
formosura,inteligência e, sobretudo, pelo muito que sofreu e pelo bem que espalhou, dona Leonor, a fundadora das Casas de Misericórdia, filha do
duque de Viseu, dom Fernando, grão-mestre de Aviz, e grão-mestre de Santiago; neta del-rei dom Duarte, e duas vezes bisneta de dom João I, dona
Leonor, a Rainha dos Sofredores, era de temperamento mui diverso de seu real consorte.
"Ela, linda e faceira, era
impressionantemente bondosa. Tinha a fisionomia suavíssima, marcada pelos olhos azuis e cabelos louros, herdados de sua bisavó, dona Filipa de
Lencastre. Ele, sangue e alma dos príncipes da Casa de Aviz. Bravo até a mais audaz intrepidez. Vontade de ferro. Coração de pedra. Só tinha
uma preocupação: o engrandecimento da Pátria pelo fortalecimento do poder real. O destino colocou desde cedo em suas nobres mãos, ora a espada, ora
o punhal, com que deveria vencer os africanos, ou apunhalar fidalgos inimigos. Ela, rainha exemplar. Ele, um dos maiores, talvez o maior rei de
Portugal.
"A vida da rainha desdobra-se em
três fases bem distantes: a primeira, até a morte do filho, período não mui longe, mas em que dona Leonor foi uma eleita da Felicidade; a segunda,
até 1496, quando lhe morreu o esposo, fase em que ela curtiu as mais cruéis aflições; por fim, durante 30 anos ainda, até deixar este mundo, em
1525, quando tão bem mereceu o benemérito epíteto: Flor da Caridade.
"Casada aos doze anos de idade com
o primo, jovem de 15, dona Leonor 'só teve vasa',
no linguajar de Damião de Góis, dois anos depois. Realizara a princesinha o mais lindo sonho de uma infanta de Portugal: casava com o herdeiro do
trono, e um dos mais belos rapazes de seu tempo. Aos dezessete anos nasceu-lhe o filho, que recebeu o nome do avô paterno. Nessa época, acesas
andavam as lutas entre as casas reinantes de Castela e Portugal, a propósito da sucessão de Henrique IV. A infanta, dona Izabel, fez-se aclamar
rainha, em Segóvia, em prejuízo da sobrinha, a Beltranaja, cujos direitos ao trono eram amparados por dom Afonso V, de Portugal.
"Nessa altura, o príncipe dom
João conheceu a formosa dona Ana de Mendonça, que tantas lágrimas fez d. Leonor derramar... A guerra da sucessão na Espanha terminou pelo Tratado de
Alcaçovas, pelo qual o filho único de d. Leonor, com menos de cinco anos de idade, lhe foi tirado para ser entregue em 'terçaria' à infanta
d. Beatriz, só lhe sendo restituído quase quatro anos depois.
"Parecia terminado, com a volta do
filho, o pesar da rainha, mas,na verdade, começa pouco depois o seu calvário. Por morte de Afonso V, em agosto de 1481, sentara-se novamente dom
João II no trono de Portugal, pois por ele já havia passado cerca de um ano, quando seu pai abdicou e tornou a assumir o régio governo. Balanceando
o poderio e a riqueza dos nobres com o pouco que cabia ao erário real, concluiu dom João II: 'Meu pai deixou-me apenas as estradas do reino em senhorio'. E o enérgico rebento da 'ínclita geração' traçou desde logo a diretriz do seu
governo: apoiado no povo, fortaleceria o poder real, à custa dos privilégios e bens da nobreza.
"Três meses depois, dom João II
convocava as Cortes, que se realizaram na cidade de Évora, e onde el-rei exigiu dos fidalgos que lhe prestassem a mais completa menagem. Tal
o respeito que inspirava o jovem monarca que, malgrado os costumes da época, com o dobro da idade do rei, seu sobrinho e concunhado, e possuindo uma
terça parte Portugal, o duque de Bragança, dom Fernando, protótipo da Idade Média, dobrou humildemente o joelho ante o novo rei de Portugal.
"Mas a nobreza, antevendo a perda
de seus privilégios e bens, passou a conspirar contra o rei. Astucioso e paciente, dom João II, por dois anos, contemporizou na defensiva. Tendo,
porém, obtido documentos comprometedores, encontrados nos cofres fortes do duque de Bragança, o soberano iniciou contra ele processo de traição, e
fulminantemente o condenou à morte.
"Era o duque de Bragança casado com
dona Isabel, irmã da rainha. Sem forças para desviar o cutelo que decapitou o cunhado, dona Leonor limitou-se a prantear, acompanhando sinceramente
a dor imensa de sua irmã. Acuados pelo rei, juntaram-se de novo os nobres, dispostos à reação. Informado da conjura, segue dom João II para Setúbal,
manda chamar o duque de Viseu, seu cunhado e, na trágica entrevista, mata, ele próprio, à punhalada, o irmão de sua mulher.
"As prerrogativas e apanágios dos
fidalgos sofreram violento golpe. O rei saiu vencedor em tão feroz luta. E a rainha, sem forças para defender os que lhe eram caros, aproximou-se
quanto pôde de Deus, a fim de alcançar perdão pelo sangue derramado para consolidação do poder real.
"Golpe mais rude ainda estava
reservado a d. Leonor. De uma queda de cavalo morre o seu filho único, o príncipe d. Afonso, que oito meses antes se havia casado com a infanta d.
Isabel, filha dos Reis Católicos. Chorando ainda convulsivamente a morte do filho, teve a rainha de sustentar ingente luta para impedir a
proclamação do bastardo d. Jorge, filho de seu esposo e de d. Ana de Mendonça, na qualidade de herdeiro da coroa portuguesa.
"Descoberto o Cabo das Tormentas,
nome dado por Bartolomeu Dias, mas trocado pelo rei pelo Cabo da Boa Esperança, e poucos anos depois assinado o Tratado de Tordesilhas, que dava a
Portugal a metade do mundo, atingia d. João II o ponto culminante de seu glorioso reinado. Mas o espectro do remorso roia-lhe pouco a pouco a alma.
D. João II reinava, governava, discricionariamente, mas não era feliz. Ela, na exaltada vida angustiosa, mal suporta, transformando em fantasmas,
pequeninos fatos desmerecedores de atenção. É bem conhecida a cena dramática, do Paço de Santarém. Não resistiu muito o poderoso monarca. Aos 25 de
outubro de 1495 desaparecia o rei, sucedendo-lhe o duque de Beja, d. Manoel, irmão de d. Leonor.
"Ante o mandonismo inflexível do
marido, e sofrendo tantos golpes cruéis a quebrantar-lhe o ânimo forte, já estava d. Leonor inteiramente voltada para além. A divisa do rei e a da
rainha, como que sintetizam a trajetória de cada um deles neste mundo. A de d. João II: 'Pela lei e pela grei' – aproximava-o da grei, quer
dizer, do povo, para obter o apoio das massas, como diríamos hoje, na luta contra a nobreza. A divisa de d. Leonor: 'O
camarroeiro' – ligava a rainha aos humildes, pela força da dor imensa que
sofrera, ao ver seu filho único morrer numa rede de pescador de camarões, após a queda mortal do cavalo espantadiço.
"Depois de viúva, d. Leonor
consagra-se inteiramente a obras de benemerência. Dedicou-se às artes, às letras e aos sofredores. Cuidou das Capelas Imperfeitas (cujo nome
deveria ser Capelas Inacabadas), do famoso Mosteiro da Batalha, de Santa Maria da Vitória, onde deveriam repousar eternamente seu avô, d. Duarte; o
tio e sogro, d. Afonso V; o marido, d. João II; e o pranteado filho, o infante d. Afonso. Protegeu decisivamente a Gil Vicente, o fundador do teatro
português. Na infância ainda da arte de Guttemberg, d. Leonor fez imprimir à sua custa a famosa Vita Christi, de Cartusiano, traduzida por
Valentim Fernandez. Custeou a publicação de muitos outros livros, entre os quais as Viagens de Marco Polo, os Atos dos Apóstolos e o
Espelho de Cristina.
"D. Leonor já havia fundado, em
vida do marido, o Hospital das Caldas, nome mudado em sua honra para Caldas da Rainha. Sustentou-o com suas rendas, e quando essas se esgotaram,
vendeu suas jóias pessoais para pagar as dívidas do hospital. Fundou vários conventos, entre eles o da Madre de Deus, em Lisboa, onde d. Leonor
repousa em campa rasa, ao lado de sua irmã, a duquesa de Bragança, depois de ter feito,no dizer de Carolina Michaelis de Vasconcelos, 'a
favor da civilização e da humanidade, mais que qualquer outra rainha portuguesa'.
"O maior ato de benemerência de d.
Leonor foi, sem dúvida, a fundação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Iniciativa exclusivamente sua, lembrança do frade Contreiras, idéias
transplantada de Florença, ou imitação da China, a verdade é que a instituição benemérita medrou admiravelmente, e multiplicou-se em Portugal e
Colônias, conservando sempre o espírito magnânimo que lhe imprimiu a rainha.
"As obras de misericórdia da Santa
Casa, prescritas pelo seu compromisso original, eram sete espirituais e outras tantas temporais. As espirituais obrigavam os irmãos: 1ª) a rezar
pelos vivos e pelos mortos; 2ª) a dar bom conselho a quem o pede; 3ª) a castigar com caridade os que erram; 4ª) a consolar os aflitos; 5ª) a
sofrer com paciência as injúrias; 6ª) a anular as desavenças; 7ª) a amparar os expostos e ensinar os simples.
"As obras de misericórdia
corporais, segundo o ideal de d. Leonor, são: 1ª) remir cativos; 2ª) visitar os presos, confortando-os; 3ª) cobrir os nus; 4ª) dar de comer aos
famintos; 5ª) curar os enfermos; 6ª) dar pousada aos peregrinos pobres; 7ª) dar assistência aos condenados e enterrar os mortos.
"Em Portugal e suas colônias, existem atualmente para mais de trezentas Santas Casas de Misericórdia. No Brasil,não há cidade
importante que não tenha a sua, e a mais antiga de todas é aquela que comemora hoje quatro centenários de existência fecunda: a Santa Casa de
Misericórdia de Santos.
***
"De todas as virtudes inspiradas pelo Cristianismo, é a Caridade, indubitavelmente, a mais perfeita e a que mais belos
frutos produz. Nada aproxima tanto a criatura humana do Onipotente. A fórmula de pedir luso-brasileira – 'dá-me uma esmola, pelo amor de Deus' – é a
confirmação de que amamos ao próximo pelo nosso amor a Deus.
"A fundação da Santa casa da
Misericórdia de Santos foi um imperativo de solidariedade humana, inspirado pela grandeza da alma lusitana. Foi o reconhecimento tácito (em tempos
tão distantes!) do aspecto social da propriedade privada. Foi uma afirmação da necessidade de serem atendidas as exigências do bem comum. Foi a
comprovação de que os fundadores desta Santa Casa e os que lhe continuaram a obra benemérita desejam ultrapassar o âmbito temporal da sociedade
terrestre, a fim de cumprir também os seus deveres espirituais.
"Para os que tão generosamente
assim se consagram e, nos dias que correm, para os que se dedicam generosamente a esta Santa Casa, que há quatro séculos conserva milagrosamente o
espírito sublime da fundadora das Casas de Misericórdia, pedimos a Deus as suas melhores bênçãos".
Palavras do sr. Henrique Soler
O sr. Henrique Soler, presidente do
Conselho Deliberativo da Santa Casa, por último, fez-se ouvir na seguinte alocução:
"No
outeiro de Santa Catarina, nesta cidade, existe um monólito e nele uma placa de bronze com a seguinte e significativa inscrição: - 'Esta rocha é o resto do outeiro de Santa Catarina e foi sobre este outeiro que Braz Cubas lançou os fundamentos desta
povoação, fundando ao mesmo tempo, época de 1543, o Hospital da Misericórdia, sob a invocação de Todos os Santos, que deu a esta cidade a primeira
instituição pia no Brasil'.
"Assim, lançou, em terras da
América, o generoso e bravo fidalgo português, o marco inicial da assistência social hospitalar.
"E vem ele há quatro séculos, de
geração em geração, transmitindo-se na sucessão intérmina dos tempos, na suave e santa tarefa de distribuir a caridade àqueles que entram na sua
porta eternamente aberta.
"De Braz Cubas até hoje não lhe tem
faltado, nessa obra benemérita, a assistência dos poderes públicos e o amor e a dedicação de cidadãos generosos e filantrópicos.
"Aí estão, confirmando
eloqüentemente essa afirmação, os retratos que ornam e solenizam esta sala do Consistório. Entre eles está o do irmão benemérito, embaixador José
Carlos de Macedo Soares, que, por mercê de Deus, preside esta seção comemorativa, como representante de s. excia. o chefe da nação.
"V. excia., sr. embaixador, é bem o
Embaixador da Paz e da Caridade. Disso temos as provas mais evidentes. Sob seu estímulo, ao seu auxílio, trabalham desde longa data as Mesas
Administrativas desta casa.
"A v. excia., que preside os
trabalhos desta soleníssima sessão, como representante do eminente chefe da nação, pede a Irmandade que receba e transmita a s. excia. o seu
profundo agradecimento pelo valioso auxílio, tanto moral como material, que tem recebido do Governo da República, para a realização de suas
meritórias obras de caridade.
"Pode v. excia. dizer-lhe que o
povo desta terra, por intermédio da Santa Casa da Misericórdia, que bem o representa neste instante, tem o seu pensamento voltado para s. excia.,
numa invocação a Deus pela sua conservação e felicidade pessoal".
Todos os oradores foram
demoradamente aplaudidos.
O embaixador Macedo Soares encerrou
a sessão solene às 22,40 horas.
Homenagem dos funcionários da Alfândega
Associando-se ás homenagens
prestadas à Santa Casa, por motivo da passagem do 4º centenário da sua fundação, domingo, às 9 horas, estiveram no Consistório da irmandade, a fim
de apresentar cumprimentos à Mesa Administrativa, os seguintes funcionários da Alfândega, que eram chefiados pelo sr. João Teófilo de Medeiros,
inspetor em comissão: Luiz Mendes Gonçalves, Mario Daltro Dantas, Roberto X. Nery, Edgar Perdigão, Hamilton Barreto Coelho, José Santana, Leo
Castro, Polux Barros Fontes, Deolindo Dutra, Sizino Machado, Guido Magarolo, Agostinho Chaves, José Antônio dos Santos, Gabriel Barreto Couto, José
do Patrocínio Caldas, Mirtes Faro, João Gonçalves de Oliveira, Jener Caldas, João A. de Araujo, Alfeu Moura, Julio Brasil Montenero, Jordão Goulart,
Genaro Salgado, Angelo Betrami, José Fontenele de Medeiros, Rodolfo Lelis Soares, Otacilio Caminha Bezerra, Horacio dos Santos, Alfredo Doneux,
Joaquim Pereira Alves, Luiz Rocha Padilha, Sancho Boto de Barros, Fausto Boto de Barros e Manoel Nicanor Pereira.
Telegrama ao dr. Getúlio Vargas
- Ao terminar a sessão solene do
início das festividades comemorativas, realizada no consistório da Irmandade, o sr. Benedito Gonçalves, provedor, expediu ao chefe do governo da
República, dr. Getúlio Vargas, um telegrama redigido nos seguintes termos: - "Exmo. sr. dr. Getúlio Vargas DD Presidente da República Palácio Guanabara Rio de Janeiro Tenho a subida honra de comunicar a v. excia.
que na sessão solene de instalação dos festejos comemorativos do 4º Centenário da Santa Casa da Misericórdia, presidida pelo exmo. sr. Embaixador
José Carlos de Macedo Soares, representante de v. excia., foi apresentada com aprovação unânime pelo sr. Henrique Soler, presidente do Conselho
Deliberativo, moção de agradecimento a v. excia., pelo auxílio moral e material prestado à benemérita instituição, bem como uma invocação a Deus
pela conservação e felicidade pessoal de v. excia pt.
"Deus guarde v. excia. (a)
Benedicto Gonçalves - Provedor". |