Primeira página do
Compromisso das Misericórdias, de 1498-99
(Arquivo da
Misericórdia do Porto)
Imagem publicada com o
texto
[...]
O Cartório da Misericórdia de Lisboa foi destruído por
ocasião do terremoto de 1755; todos os seus livros se perderam. Não se sabe por isso como foram feitas, nos primeiros anos, antes de 1516, as
eleições administrativas dessa Irmandade. Não é conhecido também o modo como se procedia em tal matéria pela mesma época nas outras Misericórdias
portuguesas. Mas, desde que há notícias sobre o assunto, não consta que as eleições se fizessem pelo sufrágio direto de todos os Irmãos, como
parece dever depreender-se do códice do Porto, e modernamente se voltou a pôr em uso.
A mais antiga eleição da Misericórdia portuense, de que se
conserva o respectivo termo no Arquivo daquela Confraria, é a que foi feita em 2 de julho de 1536. Já então a votação foi em dois graus,
declarando-se expressamente que se procedia "segundo forma do dito Compromisso". Quer dizer: já não vigorava, apesar dos vestígios que mostra de ter
sido muito folheado, o Compromisso manuscrito a que temos aludido, e que depois disso nunca mais vigorou, como se vê dos termos de eleições
subseqüentes.
Se o breve estudo comparativo que acabamos de fazer, e que
noutro lugar se completará, não bastar para nos convencer de que o Compromisso do Arquivo da Misericórdia do Porto é mais antigo que a edição de
1516, podemos acrescentar ainda alguns argumentos sobremaneira expressivos em reforço dessa conclusão.
Na penúltima página do último caderno de que esse códice é
formado - numa folha que sempre fez parte integrante do referido códice por formar, com as páginas 8 e 8 v.º do texto do Compromisso, uma folha
única - vê-se escrita determinada nota, relativa a um legado feito à Confraria portuense, cujos termos são textualmente os seguintes:
- Seja em llembrança que no mes de setenbro | de bc
x bj annos ou ho que se achar em verdade | se finou pedre anes das pouoas morador que foy | nesta cidade na Rua de pena
Ventossa o quall | fez seu testamento que he em poder de bras frrancisco notario e lleixou em seu testamento humas casas
| sobradadas na dicta Rua a quall casa parte de | huma parte com casas nouas pequenas de ffrancisco | ffernandes
escpriuam do auer do peso e com outras casas | que foram de Joham martins conego desta see e leixou | as
dictas casas as quaes ficam a esta casa de nossa Senhora da misericodia per morte de sua molher que ambos lha lleyxaron
e por lembrança asentey | oje quatro dias de oytubro de 1516 |.
(a) Antonio de coiros.
Quanto ao seu conteúdo, isto é, quanto aos fatos narrados,
esta nota é a pura expressão da verdade. Provam-no não só o testamento de Pero Anes feito por Bras Francisco, tabelião público d'El-Rei, em 5 de
Setembro de 1516, estando o testador mal disposto de saúde; mas também a posse da mencionada casa, conferida no ano seguinte a António de
Coiros, como Provedor da Misericórdia do Porto, sendo lavrado o respectivo termo em 10 de outubro de 1517.
É natural que António de Coiros já fosse provedor em 4 de
outubro de 1516, pois que as eleições deviam realizar-se no dia 2 de julho de cada ano, e em março de 1517 ele exercia o referido cargo, - como se
vê dum outro documento que, sendo também assinado por António de Coiros, serve para nos certificar, pela comparação da letra, de que a nota escrita
no Compromisso é toda do punho do mencionado provedor.
Se, pelo seu conteúdo, a nota que acima transcrevemos é
verdadeira, se ela foi na realidade lançada por quem declara tê-lo feito, nada autoriza a imaginar que a frase - oje quatro dias de oytubro de
1516 - não seja também a expressão da verdade. Por quê havia de mentir nessa afirmação António de Coiros?
E não sendo natural que mentisse, nem que se enganasse -
lembremos que se a falta de crítica é um defeito imperdoável em estudos históricos, a hiper-crítica não é defeito menor - parece-nos que sem
escrúpulos podemos dizer que a referida lembrança foi lançada, como nela se afirma, em 4 de outubro de 1516.
Significa isto, para o nosso caso, que o Códice em que a
mesma nota se encontra estava no Porto em 4 de outubro de 1516 - ou seja, mais de um mês antes de André Pires ter escrito o Compromisso
que veio a ser impresso em Lisboa por Valentim Fernandes e Harman de Campos.
Logo, é evidente que o Compromisso do Arquivo da Misericórdia
portuense não pode ser cópia do que foi editado em 1516 por aqueles célebres impressores. É, necessariamente, anterior.
Averiguado que o Códice do Porto é de data anterior àquela em
que foi escrito o Compromisso que saiu publicado em 1516; sabido que d. Manuel, na Carta de 14 de março de 1499, dizia aos homens bons do
Porto que lhes mandava dar o traslado do Regimento da Misericórdia de Lisboa, não se poderá legitimamente admitir a hipótese de que esse velho
Códice da Misericórdia portuense seja talvez a cópia que d. Manuel prometera?!...
Mas não se trata duma simples hipótese. É o próprio códice
que expressamente parece dizer-nos que essa é a verdade.
Com efeito.
No verso da sua primeira folha - a qual desde sempre fez
parte integrante do livro - está escrito em tinta e letra perfeitamente iguais às do texto, o seguinte:
- "...relado do
compromisso da sancta m i s e r i c o r d i a confrarja | da miserjcordia da cidade de lixboa pera a cidade do porto".
Estas palavras correspondem de modo tão exato às da referida
Carta Régia, que só dificilmente se pode conceber que essa coincidência seja produto dum mero acaso.
Além disso, se se tratasse não da cópia do Compromisso
remetida por d. Manuel em 1499, antes de fundada a Misericórdia do Porto, mas de outra qualquer cópia enviada mais tarde, era de esperar que se
tivesse escrito: "Trelado do Compromisso" ou "Compromisso para a Misericórdia da cidade do Porto" - e não simplesmente: para a
cidade do Porto.
O manuscrito a que nos referimos está encadernado juntamente
com um exemplar do Compromisso da Misericórdia de Lisboa, aprovado por Alvará de 18 de maio de 1618 (edição de 1640), formando com este um só
volume, que o padre Sousa Couto, erudito e proficientíssimo paleógrafo, autor do Inventário Geral do Arquivo da Confraria portuense, descreveu, em
1843, do modo seguinte:
- Contem dois
"Compromissos da Misericordia de L.xa - o 1.º com a data 1498 (sic) - escr.º em Pergam.º - he a Copia coeva do primitivo
Compromisso - feita para modello (talvez) do Compromisso p.ª a désta cidade (a). Depois do preâmbulo historico sobre a Instituição nos §§
1.º e 2.º se leem as Obras de Mizericordia - com algumas modiicações não substanciaes, no ennunciado, em relação com a formula hoje adoptada nos
Cathecismos e Compendios da Doutr.ª Cristã.
"Faltão as letras iniciais em os cap.os e §§ desta
copia, e se achão em branco os espaços em que deverião pintar-se de côres seg.º o estillo do tp.º.
"No fim escreverão de letra diversa (b) e data -
1516 - a lembrç.ª do Testam.to de P.e Annes porq. deixou à Misericordia huas Cazas na Pena Ventóza = Tem as confrontações.
"O 2º Compromisso data do anno 1618,
seg.º parece pelo q. se diz no Alvará de Confirmação nessa data a fls. 39, e foi impresso no a.º 1640".
(a)
N. B. Na C. R. a fls. 3 do Compromisso (de 1646) n.º 4 deste Banco, diz El-Rey - em o anno 1499 - mandara dar
o traslado a esta Mia. (Nota de Sousa Couto).
(b)
He do Provedor Ant.º de Couros q. assignou (Nota de Sousa Couto).
Reproduzimos na íntegra a descrição de
Sousa Couto para que se veja como esse erudito sacerdote era meticuloso na observação, e prudente nas afirmações. Ora, se ele diz que o segundo
Compromisso data do ano de 1618, segundo parece, não o afirmando categoricamente -, como é então que iria asseverar que o outro é cópia
coeva, e tem a data de 1498, se esta data não estivesse realmente expressa e clara?!
É, pelo menos, pouco crível que o consciencioso e probo Sousa
Couto tivesse mentido.
O que nos parece natural é que em 1843 a aludida nota
estivesse escrita nalguma folha, talvez na capa, que depois se perdesse, e de que, com efeito, existem vestígios.
Por tudo quanto escrevemos, parece-nos poder dizer-se que a
Misericórdia do Porto possui um exemplar bibliográfico verdadeiramente precioso - isto é: uma cópia coeva, talvez única, do primeiro Compromisso das
Misericórdias Portuguesas de 1498 ou começos de 1499.
E como a edição de 1516 apresenta,
em relação a ele, mesmo descontados os erros do respectivo copista, apreciáveis variantes, poderemos concluir que essa edição é já uma reforma do
Compromisso primitivo.
*
Ponhamos agora o problema:
Quem redigiu na sua forma inicial esse notável documento?
Fr. Bernardino de Sto. António, Jorge Cardoso, pe. Francisco
de Évora, fr. Agostinho de Santa Maria, fr. Jerónimo de S. Joseph, J. J. Caetano Pereira e Sousa, Félix Pereira, Vitor Ribeiro, Conde de Sabugosa
etc., dão-lhe como autor fr. Miguel de Contreiras; mas em geral repetem-se uns aos outros e nenhum apresenta a menor prova dos seus assertos.
Félix Pereira, por exemplo, declara que não põe em dúvida que
fosse fr. Miguel o autor do Compromisso, mas em questão de argumentos limita-se a invocar a autoridade e o saber de Pereira e Sousa.
Ora, parece-nos que não é bastante.
Que escreveu Pereira e Sousa?
- "A
Irmandade da Misericórdia de Lisboa foi instituída no ano de 1498 por fr. Miguel de Contreiras, natural da cidade de Valença, ou segundo outros de
Segóvia, religioso trino e confessor da rainha d. Leonor... Ele ordenou o Compromisso da dita Irmandade, cujo original escrito pela sua letra
se mandou guardar no Arquivo dela, o qual foi assinado pelo dito fr. Miguel de Contreiras, como Instituidor, pelo senhor rei d. Manuel, e pela
senhora rainha d. Leonor, pela infante d. Brites, e pelo arcebispo de Lisboa, d. Martinho da Costa".
[...]
Frontispício do livro
de A. de Magalhães Basto, conservado na Biblioteca Municipal do Porto
Foto-reprodução: Carlos
Pimentel Mendes, em 21/10/2008
Registro bibliotecário
e dedicatória no livro conservado na Biblioteca Municipal do Porto
Foto-reproduções: Carlos
Pimentel Mendes, em 21/10/2008
Folha-de-rosto do livro
de A. de Magalhães Basto, conservado na Biblioteca Municipal do Porto
Foto-reprodução: Carlos
Pimentel Mendes, em 21/10/2008 |