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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - MEDICINA
Santa Casa de Misericórdia (16)

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Continua a matéria publicada no jornal santista O Diário, em 4 de setembro de 1936 (cópia no acervo do historiador Waldir Rueda - ortografia atualizada nesta transcrição):
  

Os serventuários do Hospital em 1837

No Arquivo da Irmandade encontra-se um documento, a cuja transcrição vamos proceder, onde se verifica o zelo que o administrador empregava na direção do hospital, de que nos dá testemunho o relatório dos acontecimentos internos, com todas as minúcias interessantes e muitas vezes bem ingênuas. Para não lhe tirar o sabor da época transcreve-lo-emos tal qual o redigiu o seu autor, em seus trechos principais:

"... São n'este Hospital empregados atualmente ainda os três facultativos que já vos indiquei, revezando-se de 4 em 4 meses; servem como já vos referi, gratuitamente, o sr. Victorino José da Costa, o sr. Firmino José Maria Xavier e Cláudio Luiz da Costa. Tem mais os seguintes empregados assalariados ou à custa da ração, vestuário e alimento: um boticário e escrevente; um 1º enfermeiro e despenseiro; um 2º enfermeiro e contínuo da Irmandade; uma enfermeira, um porteiro e comprador, um praticante da botica, um barbeiro e cabeleireiro residentes fora do hospital, e cinco serventes, ao todo dez empregados assalariados que segundo a ordem das datas de suas recepções são os seguintes: Domingos Benguella e Maria Benguella, africanos, o primeiro com 28 anos de idade e a segunda com 22 anos de idade, estão serventes do hospital desde o mês de outubro de 1831 em que foram arrematados seus serviços pela mesa. Foi uma excelente aquisição aos quais demos alforria. A africana deu à luz um crioulinho no dia 21 de maio do ano passado e que se chama Rufino e vamos criando nesta Santa Casa.

"José Ignácio da Glória, boticário e escrevente do hospital, foi admitido para este emprego a 24 de janeiro de 1833, serviu sempre muito bem e com ótimo comportamento, recebendo somente a quantia de 7$000 por mês até 15 de março de 1833, porque até então servia só de boticário, mas desde então para diante como se dedicasse ao serviço de servente, e se tivesse casado, havendo-se consideravelmente aumentado seu trabalho mesmo de boticário pelo aumento do concurso de enfermos, a Mesa de então elevou o seu ordenado a 20$000 mensais. É um empregado digno de todo o elogio.

"José Bernardo Morato, 1º enfermeiro, e despenseiro, foi recebido no dia 1º de dezembro de 1834. Os serviços destes dois cargos são bastante pesados. Recebe o salário de 12$000 mensais, e $240 diários para sua ração. É um empregado zeloso e cuidadoso de suas obrigações, e honrado.

"Margarida Rodrigues, enfermeira, é uma parda livre e já idosa, foi admitira em 2 de fevereiro de 1835; recebe 4$000 mensais e $240 diários para sua ração. Cuida no asseio da enfermaria a seu cargo, mas tem maneiras ásperas para com os enfermos, e é amiga de rezingas com elas, e com os outros empregados, o que me tem obrigado a repreendê-la para a conter em seus limites, nos quais me tem sido fácil contê-la.

"Luiz Mariano de Vasconcellos, 2º enfermeiro e contínuo da Irmandade, foi recebido no dia 1º de agosto de 1836 para servir os dois cargos que exerce, e igualmente o de comprador, percebendo de ordenado a quantia de 10$000 por mês; mas a 13 de novembro do mesmo ano se lhe concedeu mais $180 diários para a sua ração. É um ótimo enfermeiro, porque sabe executar curativos importantes em feridas e úlceras; sabe sangrar, aplicar ventosas etc.; é zeloso e cuidadoso neste serviço; porém de conduta relaxada, e portou-se tão mal na qualidade de comprador, por alguma trapaça que foi excluído no dito emprego; o de contínuo também o não exerce bem porém o tenho conservado porque no tratamento de enfermos... as externas não há quem o possa substituir.

"O Irmão Procurador do Hospital o tem conservado e mantido sempre sob suas vistas e tem me ajudado a reprimi-lo. Como é rapaz e não tem vícios incorrigíveis, espero que para o futuro tenha boa conduta.

"Possuímos um pardinho, livre, de 14 anos de idade, que estava no hospital acompanhado do pai, pobre e velho que morreu, e o deixou em orfandade. Em novembro de 1836 passou à qualidade de servente, recebendo a ração de servente e a roupa que precisa. Pouco ou nada faz, tem-se conservado por comiseração; é provável que algum parente o carregue.

"Vicente Moreira Bittencourt, porteiro e comprador, foi admitido a 15 de dezembro de 1836, somente para o emprego de porteiro, recebendo 2$000 mensais e $160 diários para ração. No mês de janeiro do corrente ano foi encarregado do serviço de comprador em lugar de Luiz Mariano. É um excelente empregado; é muito fiel, muito exato em suas obrigações e merece toda a contemplação.

"Domingos Monjollo, preto, preso sentenciado, que se achava entre as galés do Cubatão, por haverem boas informações de sua conduta, a Mesa o pediu para servente do hospital ao exmo. presidente, que nos concedeu seus serviços; veio para o hospital a 15 de dezembro de 1836; recebeu ração de servente e o preciso vestuário. É ótimo servente, e até agora tem se conduzido muito bem.

"João Martins Vianna, praticante da botica, é menino de 14 anos de idade. Foi recebido para ajudar ao serviço da botica e aprender à farmácia, no dia 1º de março do corrente ano; recebe unicamente $160 diários. Faz o serviço do que lhe encarregam, mas por ora nada sabe de farmácia.

"Evaristo Avelino, barbeiro e cabeleireiro do hospital; serve de partido que começou no dia 1º de março do corrente ano, tem obrigação de ir duas vezes por semana ao hospital fazer as barbas e cortar cabelos e além disso aquelas vezes que precisas forem para raspar cabeças etc.; recebe 2$000 mensais, somente. Passei-lhe o diploma de empregado do hospital, que o isenta na forma da lei, do serviço das Guardas Nacionais. Cumpre muito bem suas obrigações.

"Alfano Álvares: entrou no hospital na qualidade de servente, a cuja condição passou a 21 de maio do corrente ano, recebendo somente a ração de servente, e o preciso vestuário. É um pardo livre, de ... anos de idade; não posso por hora informar bem o que ele seja; parece-me ser um pouco madraço e persuado-me não substituí-lo no hospital.

"Passo agora a patentear-vos o quadro do movimento dos enfermos desde o dia 1º de outubro de 1831, dia em que se restaurou o Hospital de Caridade desta Vila como já vos disse, até hoje 22 de julho de 1837. Depois apresentar-vos-ei somente o quadro de enfermos no decurso deste ano passado".


O pequeno hospital da Misericórdia em 1836, ao lado da Igreja de S. Francisco de Paula, existente havia uns cinqüenta anos naquele lugar (Antiga reconstituição de Benedicto Calixto)
Imagem também publicada com a matéria, com essa legenda (note-se que a imagem está assinada como B. de Cesare, Santos/1903 e foi transformada em foto por José Marques Pereira, que assinou à esquerda)

Bondade

A comemoração de mais um centenário da Santa Casa da Misericórdia de Santos induz-me a pensar - nesta quadra revolta em que vivemos - nas excelências das virtudes humanas, das quais a Bondade é a compendiação perfeita e o vértice necessário, na pirâmide preciosa da beleza moral.

Logo nos alvores da colonização do território paulista - quando o homem europeu exercita os primeiros receosos tentames da adaptação vital e soergue o espírito nos anseios da empresa sobre-humana da penetração do planalto, cujo mistério vedavam as escarpas da Serra do Mar e o sombrio mundo da selva americana - ao prodigioso esforço do desbravador intrépido se ajuntou, para multiplicar-lhe os alentos, o pensamento religioso, e, para edulcorar-lhe o caminho aspérrimo das tribulações que fatalmente havia de encontrar, um sentimento de solidariedade na dor para com os seus irmãos, peregrinos na mesma jornada de fadigas.

Ilustram sempre a história de S. Paulo, como uma legenda em escudo heráldico, esses dois motes simbólicos: Deus e caridade.

Quando se completou o drama da ocupação da terra e os troncos da progênie paulista solidamente se enraizaram no solo fecundíssimo de Piratininga, ainda e sempre, como um pecúlio glorioso, transmitido de geração em geração, os mesmos traços fundamentais da psicologia deste povo - religião: pensamento, transcendentalizando-se nas cogitações do Absoluto; e altruísmo: sentimento, enlaçando na comunhão cordial do Amor todos os seres humanos - subsistem e consolidam-se cada vez mais.

Banhar a fronte no dilúculo que vem do espaço azul e caminhar de mãos dadas com o semelhante, ulcerado pelos espinhos da vida, é, na verdade, a melhor de todas as sabedorias e a única que não põe os míseros mortais em contradição com a lei suprema e universal - a Harmonia.

S. Paulo nasceu sob esta estrela propícia; e, por isso, o seu progresso, que de ano para ano se acentua, não tem tido nem terá facilmente uma só solução de continuidade.

Em toda a sua evolução histórica, a instituição de Braz Cubas, firmemente assente na cidade de Santos pelo impulso vigoroso do ilustre fidalgo português e depois reproduzida nas restantes cidades do Estado, como que foi o sinal de bom augúrio para as iniciativas de povoamento deste vasto território; como que o monumento singelo mas significativo a atestar aos necessitados e infelizes que neste mundo a Piedade não é uma palavra vã e que as lutas do egoísmo, da brutalidade e da perfídia calam os seus tétricos clamores junto das paredes de um hospital.

A cidade de Santos, não deixando passar despercebida a grande data de hoje, e cultuando, com legítimo desvanecimento, uma glória que a acompanha desde os tempos da sua feliz fundação, dá a todo o país um eloqüente exemplo de adiantamento social do seu povo e uma prova bem convincente de que nesta terra, onde o trabalho é a grande e obedecida lei, há sempre uma mão que se estende para o desamparado e uma solicitude para aqueles que a doença atormenta nos seus atrozes calvários.

Fazer a história da Santa Casa de Santos seria abrir um livro inédito de sacrifícios heróicos e, às vezes, obscuros.

Seria, em grande parte, a história da própria cidade, onde não há nenhum grande acontecimento que não se reflita também na vida interna deste modelar estabelecimento de assistência pública.

Quando alguma calamidade procura feri-la, logo se erguem os santenses de todas as classes e, especialmente, os que muito têm, a fim de protegê-la.

Deve estar ainda na memória de todos a terrível catástrofe do Monte Serrat, em 1928.

Numa madrugada, o morro deste nome, adjacente ao edifício da Santa Casa, desabou, levando de envolta as casas da pobre gente que nelas habitava.

Registraram-se centenas de mortes, e uma dependência da Santa Casa foi atingida pelo desabamento.

Pois foi tal o sentimento de mágoa, que enlutou a cidade, que, em poucos dias, uma subscrição para a construção de um novo hospital alcançou uma elevada soma.

Os santenses querem à Santa Casa como a um padrão dos nobres sentimentos de altruísmo que os exornam.

Por isso, a cidade hoje exulta e veste-se de galas para chantar na galeria dos tempos mais um marco imorredouro, assinalando aos pósteros que, entre todas as cidades do Brasil, ela se distingue, conforme a legenda do seu brasão, por uma subida Bondade - virtude entre todas excelsa, qualidade só, que é sublime.

Domingos Pimentel


Aspecto do hospital em 1902, ao fim das reformas iniciadas em 1896 pela Provedoria Júlio Conceição e a Comissão de Obras formada pelos batalhadores José Caballero e Manoel José Martins Patusca. Vê-se, ainda, a antiga Maternidade, na frente do hospital. Com esta reforma, o hospital de Santos passou a ser considerado como o o maior do Brasil naquela entrada de século. A curiosidade principal desta fotografia é o grande desmonte que se nota ao fundo no Monte Serrat, deslocamento verificado no dia 10 de fevereiro de 1901 e repetido em maiores proporções 27 anos depois
Imagem e legenda publicadas com a matéria

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