O espião Barbosa: mais para Agente 86 do que para James Bond
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Barbosa, araponga desastrado, espionava a Câmara de Santos
Carlos Mauri Alexandrino
1980. Setembro. Dia 3. Tempo escuro e chuvoso. A capa do
velho Cidade de Santos dividia-se entre a prosaica morte do jornalista Samuel Wainer (fechando uma fase do jornalismo brasileiro), uma
manobra que se articulava para eliminar a eleição municipal marcada para novembro daquele ano (afinal concluída) e o terrorismo de direita que
grassava pelo País, ainda "apenas" queimando bancas de jornais que vendiam a chamada "imprensa alternativa" - aqui em Santos, vitimou o jornal
Preto no Branco, da Cooperativa dos Jornalistas, que em um único dia perdeu todos os anunciantes e toda a rede de distribuição, sob
ameaça de bombas de uma certa "Falange Pátria Nova", braço caiçara dos terroristas do "Comando de Caça aos Comunistas".
Mas aquela capa trazia mais: o destaque era bem santista e estava totalmente afinado
com o tempo que se vivia - "Escândalo na Câmara", mancheteava o jornal em seu estilo violento, nu e cru, com o qual celebrizou infalível adereço do
bolso de trás das calças de qualquer trabalhador santista.
O escândalo em questão era a descoberta de um sistema clandestino de escuta, que
servia para que o então prefeito biônico Paulo Gomes Barbosa espionasse o Legislativo Santista, o mesmo que agora, eleito vereador, pretende
dirigir, sob os auspícios do Esquema Mansur - um balcão de negócios já instalado, que articula, se me entendem, o controle da Câmara Municipal para
o futuro governo do PPB.
Araponga - Araponga ao Sul do Equador sofre: na falta de sofisticação
tecnológica, acabaram ligando os microfones da Câmara ao velho e indefectível fio do destino, literalmente. E o destino do fiozinho danado, que
percorria escondidinho as sinuosas curvas e arestas das portas e colunas do Paço, era o gabinete do prefeito nomeado.
O vereador Carlos Mantovani Calejon, então no PMDB, fez a denúncia no plenário - mas
não deu tempo de o pessoal abrir a boca de espanto, porque outros poderes, como se dizia antigamente, se alevantaram: o próprio presidente da Câmara
na ocasião, Washington Di Giovanni, confirmou a escuta e confessou que mandara instalar, ele mesmo, o sistema, a pedido de Barbosa.
Segundo a versão de Di Giovanni, Barbosa queria ouvir em seu gabinete "as baboseiras
do PMDB" e, por tão nobre motivo, não teve dúvida em instalar os (in)devidos fios. Barbosa confirmou que a coisa havia ocorrido mesmo assim, como
relatado pelo presidente do Legislativo.
Mas aí, num detalhe, a coisa pegou: e as sessões secretas? Sim, caro leitor, naquele
tempo os vereadores também faziam "sessões secretas", fechadas ao público e à imprensa, onde se dizia tudo que não se podia dizer no plenário aberto
- essas vergonhosas sessões só viraram história anos mais tarde, quando o jornalista Ricardo Marques, do mesmo Cidade de Santos, conseguiu
"traficar" um gravador para dentro de uma das misteriosas sessões. A transcrição das conversas foi o bastante para que elas fossem extintas. Você
pode imaginar o que continham - pode ir fundo, e até exagerar, que não vai errar: discutiu-se desde supostos subornos até ameaças de morte contra
jornalistas, passando pelo porte de armas no plenário etc., etc., etc.
Sessões secretas - Voltando à nossa história: tanto Washington Di Giovanni
quanto Paulo Barbosa garantiram que o sistema era desligado nas tais sessões secretas. Claro que ninguém acreditou.
Um outro vereador, Renato Lemos Guimarães, então também no PMDB, disse que o sistema
de escuta incluía muito mais coisas e disse aos jornais acreditar que inclusive os telefones dos vereadores estivessem sob vigilância eletrônica.
Havia quem garantisse que tudo era repassado ao Serviço Nacional de Informações (SNI) diariamente, via Cenimar, o braço do "serviço" na Marinha.
Em três dias o escândalo repercutia na Assembléia Legislativa, pela voz de Emílio
Justo, e no Congresso, por Del Bosco Amaral, ambos do PMDB - este tomou a decisão de levar o caso, pessoalmente, ao então ministro da Justiça,
Ibrain Abi-Ackel, aquele que se notabilizou muito menos como jurista do que como contrabandista de pedras preciosas. Mas essa é uma outra história.
Acabou, como seria de esperar, tudo em pizza. Em dezembro, o caso santista já estava
esquecido e não moveria moinhos, como as águas passadas. No dia 9, um tresloucado David Chapman abateria a tiros o poeta John Lennon; no dia 17, um
Juiz destemido condenaria a ditadura pela morte de Manoel Fiel Filho nos cárceres do Doi-Codi; no dia 21 perdíamos Nélson Rodrigues e ficaríamos
pobres de sua presença.
Operação O Cruzeiro
- Os tempos de ferro, porém, reservavam outras histórias. Durante toda a manobra do araponga tresloucado, uma outra operação estava em curso, de
efeitos e vieses até mais graves. As estranhas entranhas do poder absoluto armavam arapucas. O nome era "Operação O Cruzeiro". A vetusta e
combalida revista havia sido adquirida por um jornalista obscuro, de nome Alexandre Von Baumgarten - o leitor de boa memória vai lembrar desse nome.
Desde 1962 Baumgarten era agente secreto do SNI, o cérebro da polícia política do
regime. Foi encarregado de tornar a revista O Cruzeiro, que havia sido a mais importante da década de 50, num poderoso instrumento de defesa
política da ditadura.
A publicidade mantenedora deveria vir do próprio governo, mas daria na vista se fosse
uma coisa direta, como argumentava o então chefe do "serviço", general Newton Cruz. Vai daí que, empresas públicas, setores empresariais e, claro,
os prefeitos nomeados da segurança nacional, seriam "preferenciais".
Para esses anunciantes "gentilmente compelidos", o jogo também não era tão ruim:
ficavam de bem com o "serviço", de onde provinha o real poder da ditadura, sua moradia e "lar, doce lar". Era uma espécie de salvo-conduto.
Entre os maiores - Para encurtar: em 1981 a Prefeitura de Santos, pelas mãos do
biônico Paulo Gomes Barbosa, anunciou tanto em "O Cruzeiro" quanto o Banco do Brasil e a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, por
exemplo. Deu de goleada em "coisinhas" como a Nuclebrás, o Proálcool, a Zona Franca de Manaus, a Sudene, a Frota Nacional de Petroleiros, a
Embratel, o Pis-Pasep, a Embraer, vários bancos, a Prefeitura do Rio, vários governos de Estado e da própria Secretaria de Planejamento do poderoso
Delfim Neto, onde foi iniciada toda a operação, através de uma empresa de investimentos chamada Capemi.
Alexandre Von Baumgarten foi assassinado em 1982, muito provavelmente a mando do
próprio SNI, conforme fica claro no diário do jornalista, feito para chantagear e garantir-lhe a vida contra uma "queima de arquivo". Não garantiu.
A única testemunha era um bailarino chamado José Carlos Polila, que viu quando
militares embarcaram Baumgarten e sua mulher em um barco, no Rio de Janeiro, para uma viagem sem volta - três tiros na cabeça, atestou o legista
Harry Shibata, o mesmo que perdeu seus direitos de exercer a medicina, depois de comprovadas falsificações que fazia nos laudos dos presos políticos
mortos sob tortura, alguns anos depois.
Baumgarten está enterrado na sepultura 269, quadra 45, do Cemitério São Paulo, na
Capital. Sua casa em Guarujá, na praia de Pernambuco, foi vendida. Polila foi assassinado em abril de 96 e não poderá repetir nos tribunais que
reconhecia, entre os militares que embarcaram o jornalista em sua última viagem, o próprio general Newton Cruz, em pessoa.
Yellow Cake - Baumgarten deixou um livro inacabado, chamado "Yellow Cake", Bolo
Amarelo, nome que se dá ao urânio enriquecido que, com mais algumas operações, vira plutônio, matéria-prima da bomba atômica - detalhava a operação
clandestina, executada pelo então governador Paulo Maluf, para contrabandear o material para o Iraque.
O serviço secreto de Israel, o Mossad, não só descobriu tudo, como conseguiu
fotografar os aviões embarcando o material em São José dos Campos e repassou a história e as fotos para o jornal O Estado de São Paulo (basta
uma consulta aos arquivos). Semanas depois, Israel faria um ataque aéreo secreto às usinas de processamento do Iraque - uma das operações mais bem
sucedidas da história militar, orientada por satélites norte-americanos, pela primeira vez.
Com a exceção natural dos mortos, hoje todos os personagens dessas histórias - há
muitos outros, que hora dessas entrego a você, leitor - estão unidos e coesos. Não é curioso? Não? Poxa! |